Wilson Alves-Bezerra: o múltiplo

Wilson Alves-Bezerra: o múltiplo
O poeta, tradutor e professor Wilson Alves-Bezerra, autor de "Malangue malanga", entre outros (Foto: Mariana Ignatios)

 

A poesia brasileira contemporânea tem nos presenteado com poetas e poemas de diferentes dicções. Entre os múltiplos lançamentos, nem sempre conseguimos apreender vozes que se destacariam não fosse também a algaravia em torno da poesia que muitas vezes impede o recorte de versos vigorosos para que se possa ouvi-los e lê-los com o tempo alongado que a viagem pelos bons poemas reivindica.

Há ainda aqueles que levam ao limite as potencialidades do poético. É o caso de Wilson Alves-Bezerra, para quem a invenção, a crítica e a tradução compõem a partitura do lugar que o poeta orquestra no mundo. Instâncias inseparáveis, que aliadas à atividade acadêmica, configuram um contexto criativo muito singular, rigoroso, sem dúvida, mas múltiplo, tanto no que concerne às várias faces de atuação de Bezerra quanto, no plano da criação, especificamente, a experimentação de formas fronteiriças da poesia em tensão com a prosa, no deslocamento abissal de ideias, imagens, sonoridades que se articulam em mosaicos como se fosse possível emprestar às palavras uma tripla dimensão (som, sentido, cor). É o caso dos poemas de Vertigens (Iluminuras, 2015, vencedor do Jabuti)

……………………………..XIII.
……………………………..A língua do Líbano avança no Mediterrâneo,
……………………………..como se avsita do céu. Os negros vão colorindo os
……………………………..franceses e seus pães. O sangue ainda não chega
……………………………..dos mares, mas bate-se a gente no metrô. Meus
……………………………..[…]

Ou ainda em Malangue malanga, projeto artesanal da VA Cartonera (2019), que revisita certo Huidobro, Lezama, Leminski e as galáxias haroldianas, revisitando, portanto, e ao mesmo tempo, o plurilinguismo de Finnegan´s wake, num caldeirão em que português, francês e outros idiomas cantodançam no espaço da página.

……………………………………..2
……………………………………..O soroche me despacha pal costado del monte.
……………………………………..Me duermo mascando folhas amargas. Corazón
……………………………………..Esparramado na cama. O trem não dá tréguas nas
……………………………………..Terras da serra. LA lana del llama pa Lima mamita.

Além desses, não poderia deixar de retomar aqui o manifesto Pau do Brasil (Urutau 2016,2017, 2018) que homenageia a verve oswaldiana, fazendo atravessar a poesia com a crônica política, ácida, irônica. O livro teve sua primeira edição quase simultaneamente ao golpe e seguiu por algumas reedições ampliadas, tanto quanto ampliada de caos se configurava a realidade brasileira. Composto de citações, trechos de notícias e outras referências, a bricolagem é que salta aos olhos, ou os olhos do poeta é que saltam diante da realidade irreal do Brasil. Deste Brasil que bordeja o impossível de dizer, interditando vidas, mais e mais.

Da prosa destaco Vapor barato (Iluminuras, 2018), que marca a estreia do autor como romancista. O romance, construído totalmente em discurso direto, apresenta linguagem ágil, sem nunca ser árida; a erudição do personagem, suas referências à cultura erudita e à cultura pop ficam patentes. A citação de outros discursos e sua mobilização ao longo de Vapor barato garantem o desafio ao leitor que esperaria encontrar apenas um personagem plano evocando suas dores particulares enquanto o mundo desaba. Em Vapor barato o sujeito e o mundo, seja seu mundo ou aquele que o circunda, equilibram-se na fragilidade da existência em tempos tão sombrios, em que o desamparo ganha maior envergadura justamente porque há falência do papel do estado, dos meios de produção cultural, das relações entre as pessoas em níveis que superam o de outros momentos históricos. Mas, curiosamente, é neste momento em que as utopias parecem arrefecidas que elas encontram uma brecha para firmar-se como ponto de estofo, de tal modo que se poderia dizer que Vapor barato procura – enquanto obra literária – ser de um lado o desconforto, a denúncia do quadro mencionado acima, e de outro seu ponto de estofo.

A estratégia de construção do romance em discurso direto a meu ver é bem-sucedida sobretudo porque encena um diálogo entre um analisante e seu analista, ou seja, insere o leitor no divã ou na posição de “escuta” e tem o mérito de “isolar” esse mesmo leitor do mundo exterior ao consultório, na medida em que ao concentrar toda ação nesse espaço viabiliza o mergulho do leitor no drama do sujeito tanto quanto estão mergulhados os personagens, analisante e analista. A demanda do analisante é também a do leitor – a de amor. O sofrimento, mesmo que seja do intelecto, é este o caso do personagem principal, é agudo.

A riqueza do relato coloca o personagem mediano no centro da ação e isso é também um mérito. É no dilema da classe média intelectualizada que a tensão discursiva se constrói de um lado mostrando, evidentemente, a angústia, a falta, as falhas, mas de outro, a grande ironia e até mesmo a hipocrisia com que essa classe, nós, os “intelectuais de esquerda” ou até mesmo os mais conservadores que pendem para a direita levamos nossa vida apreciando o cubículo pequeno-burguês em que se situa nosso eu. Mas de outro lado, a experiência da leitura nos humaniza, na medida em que nos denuncia e amplia o espaço por onde manobramos nossas emoções, nossos afetos, nossas bandeiras.

Tradutor de Quiroga e Gusmán, talvez seja seu trabalho mais recente aquele em que a paixão pelo objeto plasma-se ao exercício tradutório. Falo de Sou uma selva de raízes vivas (Iluminuras, 2020), tradução de poemas de Alfonsina Storni e um ensaio biográfico que retoma suas raízes suíças e o lugar da migrante na Argentina. O projeto contou com uma bolsa de residência tradutória do programa Coincidencia 2020, da Casa dos Tradutores Looren e da Fundação Pro Helvetia, da Suíça.

Em 2020 vem à luz Catecismo moreninho, álbum em que a vocalização do poema é acompanhada de musicalidade e efeitos sonoros variados, ora alucinantes, ora angustiantes. A disponibilização das faixas no Spotify reconfigura os limites do suporte: o poema sai da página e encontra a oralidade, transita por outras bordas, invade outras praias. Bastante crítico do ponto de vista social e político sem abrir mão das características estéticas já mencionadas, a obra foi publicada em livro, em primorosa tradução do poeta e crítico venezuelano Jesús Montoya no início deste ano (Catecismo salvaje, El Taller Blanco Ediciones, Colombia).

Mas talvez seja na série O sétimo selo que a verve crítica, a invenção, o diálogo entre linguagens seja mais contundente. É o caso do poema “Jaula”, oralizado com acompanhamento de Bird Food – DJ Freedem. Reproduzo aqui trechos do poema, ressaltando que é preciso ouvi-lo para integrar-se a ele:

………………………….Do fundo da jaula
………………………….duzentos milhões de almas
………………………….na falta de uma rapadura
………………………….roem a aba do espírito nacional.
………………………….O espírito festivo, acolhedor, unívoco
………………………….celebra a morte
………………………….na falta da possibilidade de escolher
………………………….viver
………………………….no país,
………………………….ilhéu
………………………….ou bolha
………………………….que se chamou outrora
………………………….a Terra de Vera Cruz.

………………………….À míngua,
………………………….morde o cachorro
………………………….a língua.

………………………….Menina, você lambe as cinzas do tempo,
………………………….por dentro você rói os dias que lhe habitam.
………………………….Do fundo dos olhos do massacre,
………………………….do fundo da boca violada,
………………………….da memória ferida,
………………………….ouve-se
………………………….como grita a minha alma enforcada na minha tripa.

………………………….[…]
………………………….Eu sou o fim da esperança
………………………….e da nostalgia.
………………………….Eu sou o inimigo que você escolheu para lhe matar.
………………………….Minha boca cheia de lamentos
………………………….repete-se no tempo que não passa.
………………………….Eu sou a miséria sem cachaça.
………………………….A queda do meu corpo na calçada.
………………………….Abri mão das esperanças,
………………………….vós que entrais
………………………….na jaula nacional.

………………………….[…]
………………………….Não tarda agora
………………………….Não finda.

………………………….E você escolheu a dedo,
………………………….tão cedo,
………………………….o gatilho com a mão do inimigo.

………………………….[…]
………………………….O magistrado enquanto me julga pisa
………………………….na placenta da minha alma
………………………….enforcada na minha tripa.

Forma e conteúdo se enlaçam para dizer do país das catástrofes, (à míngua/morde o cachorro/ a língua). Ritmo e assonâncias, sobretudo em /i/, fazem esvair pelo corpo do poema o corpo dos mortos pela Covid-19, pelos extermínios nas periferias, pela fome e pelo frio, esvai-se do corpo da sociedade amortecida, enjaulada, “miséria sem cachaça”, “alma enforcada na tripa”.

É certo que o cenário do poema é distópico, não só a vida se esgarça, essa matéria “tão fina”, quando “existirmos a que será que se destina”, entretanto, é a ironia que perpassa o texto que reverte o sinal de menos, justamente por ser sinal de menos. Lembremo-nos: menos com menos é mais, também no poema. A ironia, por onde as analogias (para falar com Octavio Paz) e a indignação sangram, de algum modo repropõem a experiência, como se o poema abrisse um grande enigma da esfinge: quem somos nós, afinal, os que entregam as próprias tripas para que delas se faça nossa forca? Ou no campo simbólico do poema, e também naquilo que o real toca em nós ao lê-lo e ouvi-lo, as tripas são a força? A razão da dor intestina que supurada nos extrapola e nos faz seguir? Na tensão poema distópico/poesia pós-utópica, crítica do futuro, capaz de olhar as ruínas com as lentes do princípio-realidade, “Jaula”, paradoxalmente, convida-nos, afinal, à liberdade.

Enquanto houver jaulas como esta com que Bezerra nos apresenta, teremos a chave, mas é preciso atenção. Estamos a um passo de perder a possibilidade de acertar a fechadura, a luta é já numa Odisseia que nos põe sem rumo em direção a Ítaca; ou se nos põe em Ítaca, nem mesmo nosso cão, que morde a língua à míngua, pode nos reconhecer. Como reencontrar os remos e os rumos, pisar novamente a terra agora irreconhecível com passos de Antígona sobre sepulturas? É o que nos pergunta este poeta múltiplo, polúmetis. Toda pergunta é uma chave para a liberdade. Respostas não há, “mas os pés descalços as inventarão”, é o que responderia outro grande poeta.

Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna “Musa militante”.


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