O ouvido de Clarice Lispector de olho em James Joyce

O ouvido de Clarice Lispector de olho em James Joyce
James Joyce talvez tenha sido o ponto de partida da estética ficcional de Clarice Lispector (Foto: Lipnitzki/ Roger Viollet)

 

Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta (Relicário), de Marília Librandi, vem se somar à bibliografia fundamental a respeito de James Joyce. O livro destaca a “noção de escuta na escrita” da escritora brasileira nascida na Ucrânia Clarice Lispector (1920-1977). O objetivo de Librandi “não se trata apenas de uma leitura crítica de sua obra”, “mas mostrar aos leitores de que modo se pode usar a autora como fonte teórica capaz de nos ajudar a repensar a ficção, em termos gerais, como uma prática de escuta”, uma vez que, para a professora brasileira, a escritora foi “a principal teórica do que ela chamou de um ‘escrever de ouvido’”.

James Joyce talvez tenha sido o ponto de partida da estética ficcional clariceana. O primeiro livro de Lispector, Perto do coração selvagem (1943), tem como epígrafe uma frase de O retrato do artista quando jovem (1916), do escritor irlandês: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.

A epígrafe une o romance de formação de Lispector ao de Joyce, e cria um laço entre eles, que vai além dessas duas obras. A escritora parece ter sido atraída também pela sonoridade da obra do escritor irlandês, e não por acaso: assim como Joyce, Clarice viveu entre diferentes idiomas (o russo, o ídiche – que seus pais falavam em casa –, o português) e diferentes sotaques (viveu na cidade de Recife e no Rio de Janeiro).

De modo que Joyce e Lispector tinham o ouvido aguçado para outros falares. Dessa escuta nasce uma obra escrita numa língua singular. Portanto, caberia a James Joyce o que Librandi fala a respeito da escrita de Clarice Lispector: “essa ‘mistura de línguas’ singular faz de Clarice um caso emblemático de alguém que escreve em uma espécie de língua estrangeira, o que a deixou especialmente sensível à escuta de nuances, timbres e entonações (instâncias que precedem a compreensão semântica)”.

Como não lembrar de um fragmento de Finnegans wake (1939)?

 

Behove this sound of Irish sense. Really? Here English might be seen. Royally? One sovereign punned to petery pence. Regally? The silence speaks the scene. Fake!
So This Is Dyoublong?
Hush! Caution! Echoland!

Asscolta o som do sentido do irlandês. Sério? Aqui o inglês deve ser visto. Realmente? Um soberano deu um trocadilho de um tostão. Regiamente? O silêncio insere a cena. Falso!
Então Essa é a Dublilíngua?
Houve! Calma! Ecolândia! (minha tradução)

 

A força auditiva da ficção de Joyce ganha potência máxima em Finnegans wake. Certa vez, ao ser indagado sobre a leitura hermética de seu último romance, o autor teria dito: “É tudo tão simples. Se alguém não entender uma passagem, tudo o que ele precisa é ler em voz alta […] Ouvir lança uma diferente luz”.

A respeito da relevância do ouvido e da escuta na obra de Lispector, que cabe igualmente para pensar o Finnegans wake, Librandi acrescenta que “é importante afirmar que o foco na escuta não significa que a visão seja colocada de lado”.

No livro, Joyce dá algumas pistas de que os olhos têm que ficar atentos, pois pelo menos a língua inglesa, como na frase citada acima “deve ser vista”.

Na segunda página de Finnegans wake, lê-se: What true feeling for their’s hayair with what strawng voice of false jiccup! O here here how hoth sprowled met the duskt the father of fornicationists (Que sentimento sincero por teus carpelos como que espalhando a voz de falso jacoup! O is cute is cute como pode o deustreza encontrar o pó do pai dos fornicacionistas) (minha tradução).

Destaco neste fragmento de trás para frente, nas palavras here here: os olhos veem o advérbio de lugar here, já o ouvido capta também o verbo hear. Visão e audição caminham lado a lado nesse e em outros excertos do livro. Em português se vê “é bonito é bonito”, em inglês, is cute is cute, e se escuta “escute escute”.

Na primeira parte da sentença acima o destaque vai para what strawng voice of false jiccup! (como que espalhando a voz de falso jacoup!). O ouvido também confunde. Librand cita em seu livro uma frase de outro escritor brasileiro, Oswald de Andrade, que disse: “a gente escreve o que ouve, nunca o que houve”. E a gente ouve o que passa de boca em boca, a história é uma grande fofoca, como bem destaca Joyce em Finnegans wake.

Sylvia Beach dizia que “Joyce comparava a história à brincadeira do telefone sem fio, no qual alguém sussurra alguma coisa no ouvido da pessoa ao lado, que repete não muito perfeitamente para a próxima pessoa, e assim por diante, quando a última pessoa escuta, a frase surge completamente transformada”.

De fato, a história não tem uma única versão. Aquela narrada pelo povo tem tanto valor quanto a escrita por um pesquisador. Clarice Lispector, que vivia da oralidade, dizia, como lembra Librandi, “vivo de ouvido. Vivo de ter ouvido falar”.

Como Joyce em Finnegans Wake, que disse haver one thousand and one stories all told, of the same (mil e uma histórias, todas contadas, da mesma), “Clarice escreveria em A hora da estrela”, como se lê no livro de Librandi, “vai ser difícil escrever esta história (…) Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona”.

Viver de ouvido é uma síntese de um pensamento literário e político: a fala do povo é muito mais importante do que os fatos que a história teima em reunir, categorizar e chamar de verdadeiros.

Cabe lembrar ainda, como sublinha Librandi, que a escrita de ouvido pode assumir formas diferentes dependendo da obra, mas há um traço comum que as une: “ela implica a ideia de que esses autores escrevem nas orillas (ou seja, em cenários coloniais e pós-coloniais) da tradição europeia […]”. No caso de Joyce, ele escreve nas orillas do Império Britânico.

Por fim, não se pode esquecer, diz Librandi, que “escrever de ouvido também pede leitores capazes de ‘escutar’ um texto escrito, a fim de captar precisamente aquilo que passa entre as linhas, como a forma, desenho de uma entonação, de um tom ou de um timbre”.

Lê-se em Finnegans wake: listen now. Are you listening? Yes, yes! Indeed I am! Tarn your ore ouseEssonne inne!” (Agora ouve. Tá ouvindo? Sim, sim! É claro quitou! Sê toda ouvidos. Deixossom trar).

Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta, Marília Librandi, Relicário, 304 páginas, R$ 55.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de Finnegans wake (por um fio) e Para ler Finnegasn Wake de James Joyce, ambos pela editora Iluminuras.


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