Wendy Goldman: A direita tira o foco do governo virando as pessoas umas contra as outras

Wendy Goldman: A direita tira o foco do governo virando as pessoas umas contra as outras
A historiadora Wendy Goldman, que estará no Brasil entre os dias 26 e 29 de setembro (Divulgação)

 

 

Em outubro de 2017, a Revolução Russa completa cem anos. Embora a União Soviética tenha implodido sob intensa corrupção estatal, seus primeiros passos, suas convicções e seus momentos de estabilidade ainda podem inspirar movimentos sociais na busca pelas mudanças que o capitalismo tem falhado em permitir.

“Em toda a parte, as pessoas sentem a mesma necessidade de justiça e mudanças daquela época, embora as circunstâncias sejam diferentes”, diz à CULT a historiadora Wendy Goldman, professora do Departamento de História da Carnegie Mellon University especializada em estudos políticos sobre a Rússia e a União Soviética e autora do livro Mulher, Estado e revolução (Boitempo, 2014), no qual analisa a Revolução do ponto de vista das mulheres.

Goldman vem ao Brasil no final do mês para participar do “Seminário internacional 1917: O ano que abalou o mundo”, que acontece entre os dias 26 e 29 de setembro, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Organizado pela editora Boitempo e pelo Sesc, o evento trará, além da historiadora, nomes como Antonio Negri, Michael Löwy, Tariq Ali, Christian Dunker, Djamila Ribeiro e Esteban Volkoy – neto de Trotsky – para discutir o legado da Revolução.

Isso porque, ironicamente, mesmo um século depois, longe da Rússia, com novas formas de expressão e novos problemas políticos e estruturais, as mesmas bandeiras hasteadas naquele momento ainda movem boa parte dos movimentos sociais, especialmente o feminismo, segundo a historiadora: “Ativistas e revolucionários de todo o mundo se basearam no legado da Revolução, inspirados pelos sonhos revolucionários”, escreve, no prefácio da edição brasileira. “O capitalismo está ficando sem respostas”, afirma.

Em entrevista À CULT, a historiadora fala sobre o legado da Revolução à nova esquerda, aborda a cooptação dos movimentos sociais pelo capitalismo e rebate a ideia de que a esquerda está morta: “Enquanto houver opressão, a luta continua”, diz.

Seu livro, Mulher, Estado e revolução, aborda o contexto da Revolução Russa e o difícil período que a precedeu. Que paralelos podem ser traçados entre aquela época e os dias de hoje, em relação à sensação política das pessoas?

Na Rússia de 1917 havia uma crise política e social, exacerbada pelas dificuldades da Primeira Guerra Mundial. Era um contexto muito mais duro, diferente do atual. No entanto, é possível perceber a mesma fome por justiça e mudança, enquanto os movimentos sociais ainda engatinham, sem unidade entre grupos e lideranças de esquerda, por exemplo. Acho que a grande diferença entre os dias de hoje e a época revolucionária russa é que, atualmente, muitas pessoas estão envolvidas em movimentos por mudanças, mas focadas em assuntos e problemas específicos, como a igualdade de gênero, a melhoria de salários, a proteção ambiental, a reforma das leis de imigração ou a justiça racial. Na Rússia pré-revolucionária as pessoas simplesmente queriam alimentar suas famílias.

Em meio à crise econômica e política global, discursos de ódio contra grupos vulneráveis se intensificam – enquanto a esquerda parece ter dificuldade de reação. Acredita que a esquerda esteja morta ou inerte?

Não acho que os grupos de esquerda estão mortos ou dormindo. É difícil colocar em perspectiva, já que este é nosso presente, mas vivemos um período de reação aos anos 1960 e 1970, quando pipocaram esforços anticolonialistas no terceiro mundo, e quando atividades revolucionárias nos Estados Unidos e na Europa se organizaram para combater o imperialismo e os interesses do capital. Foi um esforço imenso, monumental, e acredito que a esquerda de hoje continua a reagir a tudo isso de forma interna, em cada país, dando a impressão de inércia. Mas, embora nos falte um projeto comum de governo e uma base social forte – a habilidade de mobilizar as massas -, o período de retração que vivemos atualmente não vai durar para sempre.

Por quê?

Porque o capitalismo simplesmente não tem solução para os números crescentes de desempregados e sem posses, nem para a destruição do meio ambiente ou para outras questões urgentes. Os Estados Unidos, por exemplo, escolheram resolver seus problemas sociais por meio de encarceramento em massa, uma “solução” que afeta majoritariamente as pessoas negras, pobres e desempregadas. Existe uma porcentagem maior de pessoas na prisão hoje nos Estados Unidos do que a União Soviética no auge do terror do governo Stalin, entre 1937 e 1938. A prisão não é uma solução de longo prazo para a pobreza, as drogas e o desemprego. E o capitalismo está ficando sem respostas. É assim que vamos voltar a agir.

Há espaço para algum tipo de revolução ou qualquer ato de rebeldia será rapidamente apropriado pelo capitalismo?

Enquanto houver opressão, a luta continua. “Fazer revolução” significa impor uma mudança completa nas relações de classe, que inclui a alteração dos proprietários dos meios de produção e, claro, uma mudança de governo. A revolução sugere a possibilidade de recriar economias que servirão às pessoas, e não pessoas que servem a uma economia incapaz de sanar suas necessidades. Fazer a revolução significa destronar o livre mercado; tirar seu status de “deus” dominante. Ainda há espaço para isso. Agora, sobre apropriação, as ideias revolucionárias são, de fato, sempre apropriadas pelo capital para vender produtos, e não há como evitar isso. Mas há algo de que nos esquecemos com frequência: as possibilidades produtivas do capitalismo também podem ser apropriadas pela revolução, de alguma forma.

As redes sociais, ao mesmo tempo em que amplificam as possibilidades de manifestação, também defendem interesses mercadológicos. Como essa falsa sensação de “estar fazendo alguma coisa” impacta a política?

As redes sociais são uma ferramenta como qualquer outra. Elas não podem substituir a construção física de um movimento social, mas certamente podem ajudar a disseminar os ideais que levam às ações propriamente ditas. Elas promovem um meio rápido de comunicação entre as pessoas. Mas, como qualquer ferramenta, as redes podem ser usadas de diversas formas, para diferentes interesses: a direita e as empresas também as utilizam, e muito, para seus propósitos. Além disso, as redes certamente deixaram mais rápido o ciclo das notícias e das informações, facilitaram a propagação de notícias falsas e estão impactando profundamente a mídia impressa, alterando aquilo que conhecíamos tão bem há décadas. Mas acho que os efeitos a longo prazo de tudo isso ainda estão por vir.

Os movimentos pelos direitos humanos, em especial o feminismo, têm se democratizado pelas redes sociais, tornando-se assuntos “na moda”. Como vê essa relação?

Na verdade, acho ótimo que os ideais feministas e dos direitos humanos tenham entrado na moda. Isso significa que jovens mulheres e homens vêem algo de positivo nessas ideias, e que podem adotá-las com o tempo. Quando ideias radicais entram na moda, significa que elas obtiveram sucesso. Muitos movimentos que uma vez pareceram radicais, como o sufragismo, agora nos parecem naturais. Há cem anos, a violência doméstica era aceita como algo “normal”. Os camponeses russos, para citar um exemplo, tinham um ditado: “Quando você bate na sua mulher, a sopa fica mais gostosa” – ou seja, se as esposas tivessem medo de seus maridos, elas trabalhariam melhor em casa. Hoje em dia, esse tipo de provérbio já não é comum, nem muito menos aceito. O movimento das mulheres fez muito para ajudar mulheres a escapar da violência doméstica, para explicar aos homens que este tipo de ação é inaceitável e para ensinar às jovens garotas que este comportamento não deve ser tolerado. As mulheres criaram um ambiente melhor e mais forte para as mulheres.

Mas as mulheres e outros grupos continuam vulneráveis.  

É importante notar que a mudança está acontecendo, mas, assim como a Revolução Russa, não vem do dia para a noite. A mudança ocorre, também, de forma desigual. As escolhas e condições para as mulheres em certas classes e em certos países são melhores que em outros. Mas acredito que nossos problemas, enquanto mulheres, são os mesmos, e que podemos nos encorajar mutuamente. Penso que seria maravilhoso que a liberdade conquistada a duras penas pelas mulheres se tornasse “moda” nestes países também.

Mulheres, Estado e Revolução mostra como as mulheres foram centrais não só para a Revolução Russa, mas para a Revolução Francesa. No entanto, é como se a participação feminina tivesse sido apagada. Por que não houve, ainda, uma revolução de mulheres?

As conquistas das mulheres não foram apagadas; foram incorporadas. Seguimos adiante para um lugar melhor. Se olharmos para a estrutura familiar camponesa e patriarcal do passado, ou para a posição das mulheres nas famílias urbanas da virada do século 19, ou ainda para as mulheres na aristocracia, é óbvio que as mulheres no mundo industrializado de hoje têm muito mais escolhas de vida, de parceiros, de sexualidade, de educação, além de autonomia, liberdade e independência. Não dá nem para comparar. Estes ganhos são resultado da luta dos movimentos sociais, mas também do que nós, mulheres, fizemos por nós mesmas. As jovens de hoje continuam a criar possibilidades para mulheres, especialmente nas áreas das ciências, da medicina, da tecnologia e no mercado em geral. Elas têm lutado pela igualdade no mercado de trabalho, pela atenção ao assédio sexual, pelo tratamento respeitoso às doenças femininas como o câncer de mama, e pela liberdade sexual e de escolha. Acho que fizemos muito para educar a sociedade sobre estupro e desigualdade de gênero, e isso gerou avanços tremendos no reconhecimento dos direitos LGBT, que estão ligados aos nossos. Embora ainda tenhamos um longo caminho pela frente, acredito que as mulheres já fizeram sua própria revolução.  

Em seu livro, você menciona que muitas mulheres russas se opuseram, de início, aos esforços do Estado soviético para acabar com a opressão de gênero. Atualmente, a classe trabalhadora brasileira tem adotado um discurso conservador, distante de sua realidade e de suas necessidades. Por que esse tipo de contradição continua acontecendo hoje?

A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, é um perfeito exemplo disso. Muitos trabalhadores e muitas pessoas pobres das áreas rurais votaram nele, atraídas pela promessa de empregos e da resolução dos problemas econômicos causados pela desindustrialização do país. Ele não fez e nem fará nada disso, mas a questão é que a direita tem sido muito eficaz ao tirar o foco do governo virando as pessoas umas contra as outras: brancos contra negros, americanos contra imigrantes, os pobres contra os ainda mais pobres – e todos contra os desempregados. Isso é feito através de campanhas que culpam imigrantes pelo desemprego generalizado; campanhas que pedem pelo fim dos programas públicos, por uma reforma tributária que retire “privilégios” dos pobres e pelo corte de taxas. Os grupos que mais se beneficiam dos programas de Trump são os muito ricos, mas a classe trabalhadora simplesmente não percebe isso, já que a direita os convence de que o maior problema são os pobres e sua isenção fiscal. Acho que as pessoas precisam olhar muito cuidadosamente para os reais interesses das políticas que defendem, e isso é uma questão de educação política, que está em falta. Mas acredito que os trabalhadores que votaram em Trump (ou em seus “correspondentes” ao redor no mundo) perceberão em breve que ele não beneficiará ninguém além de seus companheiros bilionários.

No Brasil, assim como na União Soviética, a promessa de um país socialmente mais justo fracassou quando a burocratização estatal resultou em corrupção. É possível evitar essa relação direta entre corrupção e burocratização?

A corrupção é um assunto sério, ligado tanto à escassez quanto a tradições, hábitos de governo, controle populacional e, algumas vezes, à própria legislação. A corrupção, no entanto, nem sempre está de mãos dadas com o Estado ou com os serviços públicos. Nos EUA, por exemplo, temos poucos problemas com a corrupção relacionada às escolas públicas, ao transporte público, e o nosso governo – não que ela não exista, mas é consideravelmente menor do que em outros países. Na União Soviética, onde o Estado dominava todos os setores, a corrupção se tornou um problema na era Brezhnev, ou seja, relativamente tarde na história do país. Isso porque o governo tentou lutar contra a corrupção criando logo no início comissões investigativas de trabalhadores e camponeses para fiscalizar o trabalho estatal. Durante a Segunda Guerra Mundial, um período em que faltava tudo, o Estado estabeleceu grupos de trabalhadores para checar as cantinas das fábricas regularmente para garantir que ninguém estava roubando comida dos trabalhadores. Então sim: é possível evitar a relação direta, mas é necessário um enorme e constante esforço.

Seminário Internacional 1917: O ano que abalou o mundo
Onde: Sesc Pinheiros, r. Pais Leme, 195, Pinheiros, São Paulo – SP
Quando: 26 a 29/09
Quanto: R$ 18 a R$60

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