Imperadores de nós mesmos
Após a calorosa recepção lograda em 1866 por seu drama Brand – devido à contundente maneira de a peça dramatizar uma consciência liberal em luta contra a sociedade, embate que a vida social testemunhou em toda a Europa durante a década de 1860 –, Henrik Ibsen (1828-1906) deu a luz, no ano seguinte, a uma nova obra que, não fossem os excelentes trabalhos que ainda iriam sucedê-la, já teria garantido ao “viking da dramaturgia” um lugar reservado no panteão dos grandes autores teatrais do Ocidente: Peer Gynt, um poema dramático cuja ludicidade que lhe domina o centro do quadro não dissimula a alta carga filosófica que ele põe discreta, mas solidamente à margem da tela. (Para Otto Maria Carpeaux, em História da literatura ocidental, trata-se “da maior obra literária de conteúdo filosófico que se escreveu depois do Fausto” – opinião com a qual críticos do quilate de John Gassner e Harold Bloom concordam plenamente).
Ibsen concebeu um tipo universal, um rapaz mentiroso e volúvel que foge a todas as responsabilidades da vida, constituindo o que se poderia chamar de uma personalidade livre, um sujeito que não tem outro compromisso senão com ele mesmo. As fontes dessa criação tão afinada com o espírito liberal de sua época são inúmeras e diversas. Tratemos aqui de identificar somente algumas delas. Per Fugleskjelle é o nome do narrador dos contos populares “O caçador de renas das montanhas Rondane” e “Um domingo à noite na montanha Dairy”, recolhidos pelos folcloristas noruegueses Peter Christen Asbjornsen e Jorgen Moe (cujo trabalho Ibsen conhecia e admirava) e reunidos na seção “Imagens das montanhas” do livro de lendas populares da Noruega que ambos lançaram em 1848, Norske Huldre-Eventyr og Folkesagn, após extenso trabalho de prospecção etnológica pelo interior do país. Na primeira destas histórias, o narrador Per conta uma série de episódios envolvendo o lendário Per Gynt, um antigo caçador da região de Kvam. Em um deles, por exemplo, Per Gynt se encontra com uma estranha criatura que se apresenta como The Big Boyg, mote aproveitado literalmente por Ibsen no terceiro ato de sua peça quando o protagonista conversa com a voz enigmática que se identifica como A Grande Curva. Mas o dramaturgo também pode ter se inspirado em pessoas reais, no caso, em dois famosos caçadores noruegueses, cujas histórias e fanfarronices, sobretudo a respeito de brigas com trolls, atravessaram os tempos: Per Laurissen de Haagaa, morto em 1665, e Peder Olsen Hage, morto em 1785. Já episódios como o do diabo preso em uma casca de noz e o da montanha dos elfos (que batiza, inclusive, um dos contos de Hans Christian Andersen) foram retirados do patrimônio imemorial da Escandinávia, bastante valorizado pela musa romântica que presidiu a arte, a cultura e a literatura europeias nos séculos XVIII e XIX.
Dramaturgicamente, Peer Gynt guarda inúmeras semelhanças com Adam homo, poema dramático que o escritor dinamarquês Frederick Paludan-Müller publicou em 1848, cujo herói, além de ser apresentado em três tempos diferentes de sua vida – na juventude, na idade madura e na velhice, próximo à morte –, é resgatado ao final da história pelo amor de Alma, uma dedicada mulher que, tal como a Solveig ibseniana, passa a vida inteira a esperar por ele. Por fim, encerrando esta sondagem de algumas das fontes da peça, dois são os sistemas de metrificação empregados por Ibsen em seu poema dramático: ao lado da versificação clássica, o dramaturgo faz uso da métrica típica das baladas populares medievais, garantindo que os elementos feéricos e fantásticos da narrativa sejam transmitidos pela bela linguagem lítero-musical dano-norueguesa de que se serviu o dramaturgo, constituída a rigor dos variados dialetos por meio dos quais se exprimem os inúmeros personagens nos episódios de que participam.
Pois bem, a prospecção folclórica, a forma da balada popular e a variedade de dicções (no lugar de dialetos) são as principais linhas de força da encenação de Peer Gynt dirigida por Gabriel Villela no Teatro do Sesi em São Paulo, na qual Chico Carvalho – em mais uma atuação luminosa – encarna o protagonista, encabeçando um numeroso e talentosíssimo elenco. O diretor, responsável também pela adaptação do texto, a partir da tradução para o português feita por Léo Gilson Ribeiro, não eliminou os contornos filosóficos do original; preferindo, antes, somente atenuar seus modos convencionais de expressão. Assim, os fios metafísicos de Peer Gynt estão diluídos na longa tessitura folclórica e popular armada em cena por Gabriel Villela, que novamente faz uso de seu inesgotável tear cujas engrenagens estão sempre sendo lubrificadas por aquele tipo de “brasilidade universal” em que o diretor é mestre.
Em vez de ir ao encontro das fontes folclóricas norueguesas – o que o teria aproximado do Peer Gynt literário, responsável, aqui entre nós, pela irrupção de um espetáculo predominantemente formalista –, Gabriel Villela optou por compreender o personagem por meio da ótica de uma linguagem artística genuinamente brasileira (que não se torna, em momento algum, pitoresca). Daí, surgir uma ambiguidade fascinante em sua encenação, que investe em uma poética cênico-musical absolutamente peculiar e específica, bastante diversa da poética do texto-matriz, movimento que faz ecoar as palavras do famoso folclorista russo Vladimir Propp em “O específico do folclore”: “… geneticamente, o folclore deve ser aproximado não da literatura, mas da língua, que também não foi inventada por ninguém e não tem autor nem autores. Ela surge e se modifica de modo absoluto em toda parte onde, para isto, no desenvolvimento dos povos, criam-se as condições correspondentes”. Assim, o Peer Gynt de Villela é antes uma experimentação de linguagem, até mesmo de uma língua cênica brasileira, do que propriamente um exercício literário (de recorte dramatúrgico) norueguês.
Contrariando duplamente o próprio autor da peça – Ibsen acreditava que Peer Gynt era seu texto menos suscetível a ser compreendido fora dos países escandinavos e, além disso, que se tratava de um drama não para ser representado, e sim para ser lido; um lesa-drama, a rigor –, o encenador recria em cena um ambiente atravessado por um sentimento mineiro, brasileiro, latino, enfim, – sem nunca deixar de estabelecer muitos pontos de contato com a matriz norueguesa, como sói acontecer à arte em sua enigmática ambivalência entre o particular e o universal –, transformando o alegado lesa-drama em pura ode ao jogo teatral, cuja atmosfera é recoberta por inúmeras características do teatro desde sempre: ligeiro, burlesco, patético, idílico, satírico, tragicômico… Como se o dramaturgo romântico, cristão, escandinavo e norueguês encontrasse no diretor barroco, sincrético, latino-americano e brasileiro uma espécie de um duplo seu.
A Ibsen foi atribuído o epíteto de “Shakespeare burguês”, a partir do momento em que sua obra entrou na segunda fase, a das peças de tese sobre a mentalidade da classe média, mas talvez seja na primeira fase que ele tenha se aproximado com mais veemência do bardo inglês, justamente por seu desabrido romantismo e por sua vibrante poesia. Pois intensidade romântica e acento poético é o que não faltam à encenação de Peer Gynt por Gabriel Villela, exótica por conjugar cenografia, figurinos, iluminação, adereços e maquiagem em uma mistura da qual exala a aura de uma plasticidade inebriante. Cada um desses elementos funciona como uma espécie de nota musical de cujos cruzamentos surge uma portentosa imagem sinfônica em cena, de intensidade natural e beleza orgânica.
Sobre a música propriamente, aliás, vale destacar que as canções utilizadas no espetáculo estabelecem com as baladas populares medievais (em cuja métrica Ibsen se inspirou, como já visto) uma relação de franca simetria. A instauração em cena de climas que alternam lirismo, vida onírica e psicodelia se dá por meio da execução de canções dos Beatles – o que constitui um verdadeiro achado. A morte da mãe de Peer, Aase, é marcada pela execução de Lapinha, de Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro, um afro-samba de tom melancólico cujo refrão popular que lhe serviu de base celebra o desaparecimento de um herói valente. Certamente, este é um dos pontos altos do espetáculo, sublinhado, vale destacar, tanto pela interpretação inspirada de Maria do Carmo Soares como pela bela voz de Letícia Medella. Cômicas são as cenas em que se cantam Allah-lá-ô (Haroldo Lobo-Nássara) e Pierrô apaixonado (Noel Rosa), a propósito da relação carnavalescamente fugaz entre Peer e Anitra. (Babaya, Marco França, Dagoberto Feliz e Daniel Maia são os responsáveis, cada um assumindo uma função diferente, pela direção musical, preparação vocal e arranjos instrumentais e vocais. À exceção do primeiro, os demais também estão em cena atuando e tocando teclado, violão, clarinete, viola, guitarra e acordeom).
Outro ponto alto da encenação é a atuação do elenco, composto, além dos atores-musicistas, por intérpretes especialmente talentosos. Chico Carvalho, Mel Lisboa, Daniel Mazzarolo, Leonardo Ventura, Letícia Medella, Luciana Carnieli, Marco Furlan, Maria do Carmo Soares, Mariana Elisabetsky, Nábia Vilela, Rogério Romera e Romis Ferreira correspondem integralmente à inspirada descrição que o escritor norte-americano naturalizado britânico Henry James fez da relação do autor de Peer Gynt com os intérpretes de sua obra: “Ibsen será sempre intensamente querido dos atores e das atrizes. Proporciona-lhes um trabalho a que a natureza artística deles responde com júbilo – um trabalho difícil e interessante, cheio de coisas e de oportunidades. A oportunidade que lhes dá é quase sempre a de fazerem o que é profundo e delicado – o tipo de oportunidade que, na proporção da inteligência de cada qual, eles mais procuram. Ibsen pede-lhes que utilizem um pincel fino para pintar; e dá-lhes como tema a plasticidade da nossa humanidade”.
O destaque do elenco fica naturalmente para Chico Carvalho, cujo trabalho de corpo e voz confere ao protagonista uma energia criativa toda especial. Em plena consonância com a ludicidade geral do espetáculo, o ator incorpora uma figura que em muito lembra o ciclo Trickster estudado por Joseph L. Anderson no ensaio “Os mitos antigos e o homem moderno”, presente em O homem e seus símbolos, organizado por Carl Gustav Jung. O intérprete parece alternar as quatro fases típicas do herói embusteiro (tão bem encarnado por Ulisses, Pedro Malazarte, Macunaíma, João Grilo…), que inicialmente tem a mentalidade de uma criança e é dominado por seus desejos; posteriormente, se torna mais civilizado, corrigindo os impulsos infantis e instintivos; mais à frente surge como um herói astucioso que vence provas e batalhas, como a derrota de um gigante, por exemplo; e, por fim, se torna vítima de seu próprio orgulho, ameaçado por ele mesmo no alcance da felicidade e da segurança.
Muitas são as dicções do espetáculo, todas comprometidas acima de tudo com a emanação de uma poesia popular que Gabriel Villela sabe manejar tão bem. Entretanto, não passam incólumes na adaptação do próprio encenador a crítica ao esnobismo de classe e à falta de ética comercial, quando Peer se torna um mercador no Marrocos. (Sábato Magaldi lembra que na África o protagonista faz uma observação que “poderia estar na boca de uma personagem de Brecht”: “Afinal, um homem, tudo somado, é pouca coisa e é preciso pegar a onda conforme a maré”). Tampouco a montagem negligencia a influência que Soeren Aabye Kierkegaard (1813-1855) exerceu sobre a obra de Ibsen, especialmente em Peer Gynt, no tocante à “dramática humana”, desdobrada na vontade de o homem optar por si mesmo na encruzilhada dos caminhos da vida e de se apropriar, assim, da verdade. “O homem não se torna outro que não fosse antes, torna-se ele mesmo”, afirma o filósofo e teólogo dinamarquês. “Sua consciência se concentra, e ele é ele mesmo. Um herdeiro, mesmo herdeiro dos tesouros do universo, não os possui antes da maioridade. De maneira semelhante, mesmo a personalidade mais rica não é nada antes de ter feito a opção por si mesma, enquanto aquela que se poderia dizer a mais pobre é tudo quando fez a opção por si mesma, porque a grandeza humana não consiste em ser isto ou aquilo, mas ser si mesmo. E todo homem o pode quando o quer”. Tal poderia ser a advertência dirigida na peça a Peer Gynt, que, entretanto, ao contrário dos outros personagens da vasta galeria de tipos ibsenianos, mesmo percebendo que a opção por si mesmo não passou de engano e ilusão, não entra em desespero.
Henrik Ibsen foi o primeiro autor no teatro a tratar dos novos modos de subjetivação surgidos no século XIX, condenando o homem moderno por suas escolhas. Durante a encenação de suas peças, sugere Eric Bentley, tal condenação é dirigida sobretudo a nós mesmos, espectadores, que devemos sofrer, por intermédio de quem assume nosso lugar no palco, o que o dramaturgo deseja que soframos. Não sem ironia, Harold Bloom nos lembra que durante a encenação ou leitura de Peer Gynt “ficamos do lado dele, na verdade somos absorvidos no grande eu gyntiano”. Resta saber se tal postura implica nossa danação ou nossa emancipação espiritual. Conforme o escritor norueguês afirmou em junho de 1880, “um homem partilha a responsabilidade e a culpa da sociedade a que pertence”. Ao que poderíamos acrescentar: e do teatro a que assiste.
Peer Gynt
ONDE: Teatro do Sesi-SP (Avenida Paulista, 1313)
QUANDO: Até 18/12. Quarta a sexta, às 15h; sábado e domingo, às 15h30
QUANTO: Ingressos gratuitos, retirados com antecedência
INFO: (11) 3528-2000