O silêncio retumbante de Walter Hugo Khouri
Walter Hugo Khouri durante as filmagens de 'As filhas do fogo', em 1978 (Foto: Acervo família Khouri)
As melhores mentes da arte parecem condenadas ao esquecimento, certamente por conta da demanda utilitarista que consome poéticas densas e as substitui por um regozijo raso e imediato. No cinema, essencialmente um produto da comunicação de massa, essa condição do sucateamento da memória é explícita. Se por um lado novos artífices se revelam a cada ano, com seus trabalhos crivados de uma identidade própria, por outro, figuras de renome que abriram caminhos às novas gerações parecem diluídas na ingratidão historicista.
Em 2019, o cineasta paulista Walter Hugo Khouri completaria 90 anos. Mas até o mais dedicado estudante de cinema, hoje, perguntará: “Quem foi ele?”. A despeito de novas pesquisas que resgatam e reinterpretam a história do cinema brasileiro, a poética de Khouri amarga um ostracismo virtual imposto por anos de uma análise superficial de sua trajetória. Considerado cerebral e elitista, o cineasta é dono de uma das obras mais complexas, instigantes e plurais do cinema mundial, influenciadas pelo que de melhor houve na produção de filmes de vanguarda.
“Os filmes se fazem através de mim. Não sou eu quem os faço”. Assim falava Walter Hugo Khouri, que estudou filosofia na USP, mas em vez de concluir seus estudos no extenuante ambiente acadêmico, optou por migrar sua percepção da aridez existencial para as telas do cinema. No início dos anos 1950, quando a cena paulista acumulava alguns dos melhores e mais ambiciosos estúdios, a saber, Vera Cruz, Cinematográfica Maristela e outros, o diretor debutou com uma produção já grandiloquente, O gigante de pedra (1954). Desse filme pouco restou, mas o material iconográfico da época, hoje cuidadosamente mantido pelos herdeiros do cineasta, revela o compromisso de Khouri com um cinema de entretenimento muito além dos dramas datados e das comédias escrachadas que inundavam a cinematografia da época. Seu filme seguinte, Estranho encontro (1958), produzido nos escombros administrativos da Vera Cruz, plantou a semente genuína de sua autoralidade. Um misto de drama moral com suspense psicológico, muito influenciado pelo trabalho de Ingmar Bergman – apresentado à audiência brasileira pelo próprio Khouri, em sua coluna de crítica para O Estado de S. Paulo –, o filme apresenta um complexo jogo de amores interesseiros, relações alienantes, desejos reprimidos e finais infelizes. Seguiram-se Fronteiras do inferno (1959), aventura ao melhor estilo de John Ford, e Na garganta do diabo (1960), drama de época ambientado nas Cataratas do Iguaçu, que lhe valeu um prêmio no Festival Internacional de Mar del Plata. Somente em 1963, no entanto, com A ilha, é que Walter Hugo Khouri veria o reflexo de um trabalho nas bilheterias. Muito inspirado por A aventura (1960), de Antonioni, a saga de alguns burgueses despreocupados, que se veem isolados numa ilha deserta onde se encontra um tesouro escondido e onde as piores matizes comportamentais vão dar as cartas, chegou aos cinemas exatamente no mesmo momento em que um jovem grupo de cineastas nascidos uma década depois de Khouri começava a se consolidar. Era a geração do Cinema Novo, imbuída da iconoclastia juvenil que declarava guerra ao filme nacional alienado e trazia para as telas o que considerava a face verdadeira do povo.
Liderados por Glauber Rocha (1939-1981), os cinemanovistas empreenderam uma cruzada que repudiava o que consideravam isenção ideológica e lutavam para que a audiência visse a si própria ao assistir a seus filmes. Favelas, cangaço, repúblicas imaginárias, negociatas políticas e alegorias históricas passaram a temas recorrentes do cinema realizado na Bahia e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, ainda sob a ressaca da crise dos estúdios, cineastas do calibre de Roberto Santos, Rubem Biáfora e Anselmo Duarte tateavam uma forma de viabilizar algo ao mesmo tempo crítico e popular, mas os cinemanovistas os tinham em baixíssima conta, acusando-os de um cinema pernóstico. Talvez tenha sido Walter Hugo Khouri o que mais sentiu o embate estético, já que, em 1964, despontava como um dos grandes nomes do cinema nacional e preparava aquele que viria a ser seu trabalho mais reconhecido, Noite vazia. Este, sim, totalmente influenciado pela cinematografia de arte da Europa e que, aparentemente, ignorava com solenidade o estado de coisas de uma nação paupérrima às vésperas de outro golpe militar. Com este descompasso de criatividades distintas, instaurou-se uma rivalidade alimentada pela crítica especializada, e o cinema paulista passou a ser sinônimo de descaso político.
Embora muito se tenha dito sobre a rivalidade entre os dois grupos de cineastas, nem por um segundo parou-se para vislumbrar a possibilidade de ambos praticarem uma crítica sobre a mesma condição, cada qual a seu modo. Os intelectuais politizados do Rio com sua percepção coletiva dos tempos que se apresentavam, e os sisudos e frios paulistas, que entreviam pelas frestas de prédios de luxo a garoa perpétua caindo sobre um vazio abissal, produzindo um ensurdecedor silêncio da alma. Enquanto o Cinema Novo examinou a condição humana pelas vistas das desigualdades de classe e seus efeitos no coletivo, Khouri preferiu se voltar para o paulistano cosmopolita de posses, para estudar a discrepância entre o ímpeto e a satisfação, sob o ponto de vista do indivíduo enfadado. O personagem típico do cineasta está alheio aos problemas coletivos porque não tem maiores preocupações além de seu hedonismo. Por outro lado, suas posses não o impedem de se ver num imenso buraco negro. Enquanto Glauber Rocha tem seu cangaceiro agonizante bradando que “Mais forte são os poderes do povo”, os burgueses de Khouri ressentem-se por julgarem ter provado de todos os prazeres mundanos e confessam que até mesmo uma festa infantil “dessas bem cafonas” os faria mais felizes que as várias mulheres que amaram, as melhores bebidas que provaram e os vários países por onde viajaram. Em suma, no contexto integrado de ambos os grupos, concluímos que a carestia é um problema que o fausto hedonista não é capaz de remediar, porque o cerne disruptivo está no próprio indivíduo, sempre insatisfeito com o que tem e/ou com o que não tem.
É a partir do filme seguinte, O corpo ardente (1966), que Khouri passa a exercitar a marca que o acompanharia dali até seu último trabalho, a maneira como sua câmera invade o silêncio de suas personagens, reificando a distopia existencial e confrontando o espectador com uma cinematografia legista, que usa a decupagem e a diegese para provocar profundo mal-estar. No filme, durante uma cena em que o casal central discute uma pretensa “filosofia da arte”, as lacunas do silêncio entre uma enxurrada de jargões dos pseudocríticos e os chavões decorados dos piores livros sobre o assunto proferidos por um artista empertigado são preenchidas com o vácuo das aparências no rosto da protagonista, seu olhar sugestivo em direção a uma das convidadas, num flerte devidamente correspondido, seu enfado no casamento, seus desejos encapsulados e sua liberdade castrada, revivida na figura de um corcel negro que perambula perdido nos arredores de sua casa de campo. Mas nada verdadeiramente importante é verbalizado. Toda a essência narrativa repousa nos lapsos do discurso, como se fosse impossível comunicar a insatisfação ontológica.
E, para não dizerem que não falou de flores, em 1968, Khouri ainda colocaria a rebeldia estudantil de frente para o espelho em As amorosas, seu filme mais experimental, em que nos apresenta ao personagem-arquétipo, Marcelo, um jovem perdido entre as contradições de seu tempo, constantemente refutando ideais vazios de seus colegas universitários num momento em que se abster de um debate não era uma opção.
Ao longo dos anos 1970, Khouri teria de conciliar o recorrente exame psicológico com a demanda por um erotismo mais explícito. No entanto, não abriu mão do estilo que adotara e, com frequência, a lascívia da qual se valeu chega a sufocar o espectador, tamanha a brutalidade velada de um sexo fugaz que em nada serve aos instintos imediatos, mas revela o lado tenebroso das relações físicas fugidias. Esse torturante claustro dos impulsos da carne marca As deusas (1972), em que o cineasta recorre a uma fenomenologia característica de filósofos como Merleau-Ponty. Um casal em crise e uma psicanalista sensual envolvem-se num processo de autoanálise involuntária, isolados num sítio, onde somente a natureza irá assistir a um processo relacional falho. Assim também é em filmes como O último êxtase (1973), O prisioneiro do sexo (1979) e Convite ao prazer (1980), todos protagonizados pelo mesmo Marcelo, de sua juventude à maturidade, em busca de uma transcendência pelo sexo, que se revela inalcançável.
Nos anos 1980, já um consagrado artífice, Khouri elevou sua provocação e seu estilo rebuscado aos limites possíveis dentro de uma indústria cinematográfica que começava a dar sinais de decadência irremediável. Com Eros, o deus do amor (1981), colocou o espectador na pele de Marcelo, em câmera subjetiva, e consolidou seu talento para fotografar a beleza feminina como jamais outro cineasta havia feito. Mas é a polêmica do filme seguinte, Amor, estranho amor (1982), que ainda sustenta uma vaga lembrança de quem é Walter Hugo Khouri, talvez por um equívoco imperdoável das instâncias legais. Lembrado como o filme pornográfico de uma estrela do universo infantil, o filme não é nem pornográfico, nem a tal estrela é seu protagonista. Muito longe disso, Amor, estranho amor é um filme sobre a memória fragmentária de um garoto que descobre o mundo dos adultos pela verdade da prostituição de sua mãe e da corrupção política que circula pelas alcovas de um prostíbulo de luxo, confrontada com a história recente de um Brasil dominado pelo totalitarismo varguista. A atribulada situação jurídica que culminaria no embargo do filme caminhou ao lado de uma condição lastimável de produção que assolaria o cinema brasileiro a partir do descumprimento das leis de reserva de mercado da extinção da Embrafilme, em 1990.
Ainda que filmasse menos e com maior espaço entre um trabalho e outro, Khouri não deixou de levar a termo seu projeto autoral. O ano de 1993 foi especialmente importante. Recebeu convite para duas temporadas de aulas na EICTV, em Cuba, escola capitaneada por García Márquez, viu Estanho encontro e Noite vazia exibidos na TV aberta em horário nobre, conseguiu lançar nos cinemas Forever, com Ben Gazzara no papel central, ao lado de uma novata Ana Paula Arósio, projeto que se arrastava lentamente desde 1988 e, finalmente, se preparava para retomar as filmagens de As feras, derivado de um curta-metragem rodado no início dos anos 1980, mas que só chegaria ao mercado em 1998.
Em 1999, Khouri finalizou aquela que seria sua última obra, Paixão perdida, em que Marcelo, sempre insatisfeito, a despeito de sua condição social, tenta encontrar o verdadeiro amor que lhe dê alento e lhe faça lidar melhor com o estado que se encontra seu filho pré-adolescente, que parece ter frustrado seu projeto de perpetuação viril. O menino, verdadeiro protagonista da história, vive em estado catatônico e semivegetativo, traumatizado pela morte da mãe, com quem sofrera um capotamento na estrada. Sua nova cuidadora será o pivô de transformações drásticas na rotina da família. Com uma dedicação carinhosa ao menino e uma hesitante atração pelo patrão, essa cuidadora se colocará numa complexa miríade de sentimentos difusos. Novamente, no silêncio dos gestos, entreouvimos ao menos quatro possíveis sussurros submersos no minimalismo do roteiro: o luto pela perda da mãe; o desejo edípico pela mãe morta; o despertar da puberdade na beleza de sua cuidadora; e, no limite, o desejo de se tornar uma pedra, tão fria e passiva como as do jardim da mansão do pai, para consumar a renúncia ao mundo.
Walter Hugo Khouri faleceu em 2003, deixando 26 filmes, ao menos dois roteiros inéditos e várias ideias inacabadas. Sua proposta revela a intensão de um cinema total, um tipo de produção composta de elos que se unem num projeto único. Em todas as suas obras, ouvimos recorrências na trilha sonora e entendemos a coincidência de personagens e ações. Ao longo dos próximos anos, seu acervo deverá servir a estudos de maior fôlego e a esforços para reabilitar essa poética tão plural e crítica como poucas produzidas no contexto histórico do cinema nacional.
Donny Correia é doutor em Estética e História da Arte pela USP, autor de Zero nas veias (Patuá) e Corpocárcere (Patuá)