Breve homenagem a Wagner Schwartz II

Breve homenagem a Wagner Schwartz II
Wagner Schwartz em frente ao quadro de Anita Malfatti que inspira nova performance encenada na MITsp (Foto Mário Miranda Filho)

 

Pouco depois de sua performance La Bête no MAM-SP, Wagner Schwartz foi alvo de ataques virulentos em manifestações conservadoras, que ocorreram em frente ao museu. Naquela ocasião, a sanha dos defensores da ordem, da família e dos bons costumes transfigurou em perversidade o toque de uma criança no corpo nu do artista. Na linha de Lygia Clark e Hélio Oiticica, Wagner Schwartz oferecia sua pele como materialidade da obra, esgarçando limites da linguagem. A boa notícia é que o artista não sucumbiu à ferocidade dos moralistas de plantão. Volta agora ao circuito paulistano, pela Mostra Internacional de Teatro (MITsp), com A boba, referência à pintura de Anita Malfatti. Mais uma vez, dissolve fronteiras entre teatro, dança, pintura e performance.

Segurando uma réplica do quadro de Malfatti, a performance inicia-se com a fracassada e insistente tentativa de manter a obra de pé. Sem encontrar o eixo de sustentação capaz de fixá-la em algum ponto do palco, Wagner Schwartz coloca aos poucos o protagonismo de seu corpo em cena.

Depois das sucessivas provas malogradas de equilibrar a pintura no chão, entrega-se à cena de estabilizar, sempre sem sucesso, a peça na parede. Junto ao quadro cambaleante, seu corpo se estende por ela e arma um desenho que transborda os limites do enquadre e da figura nele representada.

Na configuração subsequente da performance, coloca A boba entre suas pernas, lugar aparentemente mais seguro. Nem nesse novo arranjo, entretanto, a estabilidade pode ser encontrada. Num movimento violento, a obra passa a ser lançada com força de um lado a outro, e aos poucos os gestos bruscos dão lugar a um ritmo de dança. Múltiplos e contínuos lances recebem pulsação nesse vai e vem. O corpo ganha cadência – obra e artista finalmente encontram-se numa conversa, que, porém, dura pouco.

Cedo a pintura de Malfatti torna-se carga. Seu peso pede o esforço dos braços, alçados, então, acima da cabeça – corpo e movimento estão à serviço da obra artística. Para acompanhá-la, o artista move-se em velocidade acelerada. Ofegante, ainda a mantém soerguida com os braços, até ficar esgotado pelas exigências da arte. Finalmente, abraça-a. A necessidade de proteção imposta pela obra parece ultrapassar a importância de seus limites corpóreos. A performance tem seus últimos registros cênicos com uma combinação de espasmos sucessivos e exaustão. O compasso do corpo remete aos movimentos do sexo, mas a face do artista exprime dor. Falta-lhe fôlego. Enfrentar embates com a peça de Malfatti, que sobrevive intacta nessa tensa relação, significa extenuar membros e órgãos.

A boba é peça que não pode ser vista isoladamente. Em entrevista recente à Mônica Bergamo na Folha de S. Paulo, o artista afirma: “não consigo não fazer o que eu faço. É impossível não ser artista”. A frase indica que a enxurrada de ataques vivida em 2017 abriu mais um campo de dúvidas no já árduo trabalho de persistir rente ao fazer artístico. Daí a identificação com Anita Malfatti.

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Em 1914, Hermann Bahr publica seu clássico Expressionismo. Ali descreve a experiência de choque, quase sempre sentida pelo filisteu de seu tempo. Atordoado pelas obras expressionistas, o burguês – ou, pode-se acrescentar, o protótipo proletarizado dele – mantinha-se calado. Considerava recomendável não emitir juízos precipitados, apenas pautados em sensações desagradáveis que pudessem emergir na apreciação de uma peça artística. Tinham sido elas a enganarem seus antepassados – escutando-as, os ignorantes do passado bradaram ataques a obras de arte, que depois se tornaram valiosas e consagradas. É bom alvitre, pensava o filisteu, que se pretendia cultivado na primeira década do século 20, perguntar-se sobre os motivos que teriam despertado sentimentos estranhos em seu espírito. Entretanto, mesmo essas causas poderiam ser traiçoeiras e não mereciam confiança, restando-lhe apenas o silêncio como estratégia na qual poderia se fiar. O medo perfazia as relações da burguesia, dita progressista, com as artes; isto é, quando o filisteu sentia certo pavor diante da obra, interpretava-a como prenúncio de que o objeto artístico era digno de admiração e respeito. O aprazível perdia, então, seu lugar no território estético, e o que causava desconforto ou pânico aparecia como algo a ser enaltecido.

Hoje, a timidez e o silêncio dos incomodados filisteus deram lugar ao esbravejar descomedido, ao ataque atroz, à impetuosa violência. Numa espécie de revival dos valores que alimentaram os critérios de seleção de artistas e obras para a exposição Arte degenerada da Alemanha nazista (1936), os ocupantes do poder e seus apoiadores inveterados não têm mais vergonha de sua ignorância. Orgulham-se dela e bradam em alto e bom som seus vulgares ranços moralistas. Nós, como Wagner Schwartz, assistimos atônitos e abatidos aos incontáveis insultos. É importante, porém, continuar a existir. E cada obra produzida no presente resulta de uma profunda e pertinaz resistência.

Daí a razão de celebrar a obra de Wagner Schwartz. Ela persiste rente aos acontecimentos atuais e responde de forma vigorosa à brutalidade sofrida por ele e por outros: “Fui torturado”, declara, “hoje, a atualização da palavra tortura é linchamento virtual. Sofri fisicamente todos os ataques contra mim”. Sua descrição é de uma experiência vertiginosa. “Fiquei sem chão”. Teve que buscar ajuda para dar contornos ao seu sofrimento. Mas foi dessa seiva que extraiu os fios com que compôs A boba.

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Mal fatta, mal fatti, Malfatti. Os significantes metonímicos do nome de Anita remetem à qualificação dada à artista por Monteiro Lobato em Paranoia ou mistificação, artigo publicado em 20/12/1917 no jornal O Estado de São Paulo – um século antes dos ataques a La Bête. O filisteu paulista, que não se envergonhava de seu racismo, também não apelava para o silêncio ou a timidez quando o assunto eram as vanguardas ou o expressionismo de Malfatti. Sobre a exposição da artista em 1917, declara:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. […] A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a natureza, e interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento. Embora eles se deem como novos, precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação.

Cabe aqui destacar outra sequência reveladora de significantes: decadente, degenerado, anormal, teratológico, bichado no nascedouro ou “gênero degringolismo”, como ainda se refere às vanguardas e à artista em particular em outra ocasião. Teratologia é nome que designa monstruosidade ou especialidade médica voltada às anomalias e malformações, oriundas de perturbações do desenvolvimento embrionário ou fetal. Malfatti tinha, de fato, uma malformação do braço. Marca que talvez tenha concedido estofo material ao seu impulso pelas artes, pelas vanguardas e pelo modernismo paulistano. Seus traços nasciam das tensões com sua “anomalia”, vivida psíquica e fisicamente.

Em palestra recente, dada no MASP, Paulo Herkenhoff mostra como os juízos críticos de Monteiro Lobato estavam pautados em nosso código civil de 1916. Advogado e promotor público, o escritor e fazendeiro acompanhou a substituição de ordenações afonsinas, manoelinas e filipinas pela instituição do código que, de acordo com Orlando Gomes, teria nascido velho. Suas feições ficaram estacionadas no século 19 e os sistemas patriarcal e escravocrata podem ser claramente nele reconhecidos. Relendo a crítica de Monteiro Lobato, Herkenhoff identifica o lugar dado à artista pelo escritor: o do menor e do louco. Anita, como eles, estaria destituída da autoridade capaz de inscrevê-la como protagonista da história.

“Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem amabilidades sempre quando elas pedem opinião”. A opinião de Monteiro Lobato, porém, coloca-o no lugar de emissor da Verdade incontestável. Sua verdade, todavia, é o que mostra Herkenhoff, está impregnada de preconceitos conservadores e retrógrados, todos eles rebuscadamente moldados. Diante de uma sociedade na qual a monstruosidade e a precariedade são regras, o insensato é cobrar véus que encubram suas mazelas e dores ou as reproduzam compulsivamente. Na vida privada, Malfatti resguardava o defeito sob elegantes xales, mas sua arte carregava a verdade de sua chaga. Seu traço de nascença não é imperfeição em si. Trata-se de algo lido socialmente como característica degradante, que só pode ser escondida, disfarçada, enfeitada.

Existem obras, contudo, que não são reféns de máscaras. Também são refratárias ao verniz. Brotam de modo visceral. Esse é o estilo de Wagner Schwartz. Daí que em A boba, seu corpo não é representação simbólica das dores de Malfatti. Estas são o estigma em torno do qual afetos identificatórios do artista afloram e apelam por uma forma.

Face à monstruosidade dos termos moralistas e condenatórios, que destituem a diferença singular de seu lugar legítimo de existência, Wagner Schwartz expande a linguagem de seu corpo em torno do vazio, impossível de ser contemplado pelos clichês pentecostais, falsamente aderidos à força moral e aos bons costumes.

A boba
Quando: Até 24/03
Onde: Teatro Cacilda Becker, rua Tito, 295 – Lapa, São Paulo
Quanto: Ingressos aqui

Alessandra Parente é psicanalista e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP

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