Virando as latas do contemporâneo

Virando as latas do contemporâneo

Pessoal e marginal ao mercado editorial, o blog é um espaço de experimentação da escrita

 

Angélica Freitas, Franklin Alves, -Leonardo Gandolfi, Rodrigo de Souza Leão, Virna Teixeira, Lu Lapan, Andrei Cunha, Elisa Andrade Buzzo, Roberto Romano Taddei (http://rrtaddei.blogspot.com/), Nelson Peres… As reticências se justificam. As reticências são necessárias. As reticências são o senso de justiça inevitável a quem se volte para a imponderável inesgotabilidade que possa assumir o termo contemporâneo. Pode-se descrever esse senso de justiça e essa atitude de se voltar ao contem-poraneíssimo, como certo humor que resulta da dificuldade e da alegria do encontro, o que, muito provavelmente, defina a enunciação poética de Nelson Peres (http://nf.peres.blog.uol.com.br/): “Continuo sempre me confundindo com aquele vira-lata que fuça os lixos dos botecos da Conselheiro Ramalho.”

Um vira-lata: se considerada como a descrição de um crítico do contemporâneo, a frase de Nelson Peres parece ressaltar ainda mais as ambigüidades, arriscadas, delicadas, melindrosas, a que essa atenção se sujeita. Afinal, todo senso de justiça de que se investe uma atitude como essa releva justamente da injustiça, digamos também inevitáveis acerca dos nomes de uma lista imponderável que, infelizmente, não grassam em uma lista possível. Eis, caro leitor, uma importante justificativa das reticências da enumeração anterior. Sim, uma visada sobre a produção contemporaneíssima tem de ser temperada por uma alta dose de humildade por parte do crítico, sob pena de anacronismo imperdoável ou excessiva euforia diante de um objeto que se define justamente por sua falta de contorno preciso, seja para o passado, seja para o futuro.

Por certo, a maioria dos nomes citados é desconhecida por boa parte dos leitores eventuais dessa revista. E uma afirmação como essa não expressa, de modo algum, a subestima ou mesmo o lamento acerca da leitura no Brasil ou, mais especificamente, da leitura de poesia. Não subestimo nem lamento, ao menos nesse momento. Pelo contrário, credito o desconhecimento a certa particularidade da produção contemporaneíssima: a maioria dos nomes citados se deve a meu hábito de freqüentar blogs com a atenção de um leitor de poesia. E se, no meu caso, essa freqüentação tornou-se possível, creio que se deve a certa relevância de traços pertinentes da poesia contemporânea explorados nesse suporte por este início de século. Se o contemporâneo é uma idéia senão de impossível ao menos de difícil contorno, o faro de um crítico talvez deva guiar-se não pela pretensão de se delinear os limites de seu desenho, mas pelas pistas que ressaltam certas linhas de força que apontam para o passado e para o futuro.

 Um dos traços mais presentes nesse contexto é a articulação particular que a poesia assume com a tradução. Em boa parte, os nomes citados são de poetas tradutores, ou seja, poetas cuja atividade profissional é a tradução, e que fazem de seus blogs uma vitrine de suas experiências de tradução de poesia. Angelica -Freitas (http://loop.blogspot.com/), Virna Teixeira, Andrei Cunha (http://www.makura.blogspot.com/) mantêm entre si um diálogo franco que perpassa desde traduções acuradas de nomes que perfazem a tradição moderna, outras que apresentam autores ainda desconhecidos do público brasileiro, até, o que julgo de grande felicidade, as traduções de poemas próprios, como o caso do poema de Angelica As bruxas de Bruxelas traduzido ou recriado por Andrei Cunha sob o título Paráfrase de Freitas:

Aproveitando-me do exemplo citado, uma outra característica que perfaz essa geração de escritores mostra-se tão presente quanto me parece derivada do próprio contexto midiático em que se veicula.  O humor, composto por um misto entre certa irreverência e certo ar blasé, germina da própria consistência da publicidade peculiar a um blog. Pessoal e marginal ao mercado editorial, o blog, guardando-se as devidas diferenças, pode ser considerado uma versão digital do que o mimeógrafo foi para a geração de 1970, um espaço de experimentação de uma escrita que em muitos casos recobra a leveza e o descompromisso próprio de um suporte marcado por sua efemeridade e despretensão. Trata-se tanto do humor circunstancial da blague com direito a remissões ao minimalismo oswaldiano presente, por exemplo, na série Lengalenga de Elisa Andrade Buzzo (“Meu amor/mau humor//me ama/mioma” e “Recém casados/ressentidos” – http://caliope.zip.net/ ) quanto do non-sense paródico e fabulesco de Lu Lapan -(http://abaleiapelancuda.blogspot.com/):

Um outro traço dessa escrita periódica, também derivada da própria natureza do suporte, é a ambigüidade que assumem os textos entre a enunciação ficcional e não-ficcional. Se o blog, em seu recente começo, assumia declaradamente o tom de diário pessoal, sua recente história, sobretudo levando-se em conta os blogs de jornalistas, desdobra outras demandas que às do próprio umbigo. Pesa-nervos (http://pesa-nervos.blogspot.com/), um blog mantido por Leonardo Gandolfi, Franklin Alves e Rodrigo de Souza Leão, reveste-se de um caráter abertamente militante da divulgação da poesia e da tradução contemporânea, fazendo do suporte uma espécie de revista virtual. Mas, no que diz respeito àqueles blogs que se concentram na postagem de própria lavra, a leitura oscila entre o que se poderia considerar autobiográfico ou não, delineando uma escrita do cotidiano, uma poética de um eu deletério e auto-irônico.

E é no que tange a esse assunto que chamo a atenção do leitor para um blog em especial Sim, isto é um teste, Sr. (http://www.achuvaimovel.blogspot.com/) não citado entre os da lista que abre este texto. Se é possível condenar-se essa geração por uma escrita narcísica e que se contenta com os espelhos de uma publicação marginal ao mercado editorial de poesia no Brasil, essa crítica não pode desconsiderar certo aspecto que se delineia em uma poética que marca a contemporaneidade: o anonimato. Sim, isto é um teste, Sr. é um blog cujo autor assina apenas pela letra v minúscula. Se acessarmos seu perfil, leremos outros blogs coletivos administrados por esse v, de tal modo que não sabemos o autor de fato dos textos postados em Sim, isto é um teste Sr. Esse anonimato entre nomes me parece ser justamente o traço que de certo modo faz do narcisismo primário que se possa denunciar nas escritas do blog algo mais denso e que merece nossa atenção:

Textos dessa natureza, epigramáticos, aforismáticos, ambientados no circunstancial, a iluminação possível que provenha do chão, do dia-a-dia, anônimos, que fazem pairar inevitavelmente na cabeça do leitor a indefinição de que pertencem estritamente ao registro poemático ou da simples anotação, a poética do contemporâneo que se parece delinear, ao menos a se tirar por essas visitas que este meu texto convida, é a da dissolução ambígua do eu em um meio marcado pela proliferação dos eus, dos nomes cada vez mais anônimos quanto mais se somam. Por certo, esse passeio não é a promessa de uma qualidade absoluta, pois, como disse, a alegria do encontro muitas vezes pode ser medida pela sua própria dificuldade. E se nossa última referência convida à visita a um blog tão obscuro quanto o de textos sem nome de autor explícito, é porque, de certo modo, caro leitor, a nossa própria leitura do contemporâneo parece inevitavelmente ligada a uma aposta. Sim, isto também é um teste, Sr.

Marcelo Diniz
é doutor em Ciências da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), poeta e letrista. Autor dos livros Trecho, pela Editora Aeroplano e Fundação Biblioteca Nacional, em 2002 e Cosmologia, Coleção
Guizo, pela Editora 7 Letras, em 2004.

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