Villa-Lobos e a invenção da música brasileira

Villa-Lobos e a invenção da música brasileira

Nome de shopping e de praças, Villa-Lobos ainda tem boa parte de sua produção pouco conhecida

Camila Frésca

Neste mês uma série de eventos – entre concertos, lançamentos de CDs e livros, simpósios – visam celebrar a principal efeméride da música brasileira em 2009: os 50 anos da morte de Heitor Villa-Lobos, ocorrida no dia 17 de novembro de 1959. Figura bastante popular – quem nunca ouviu falar dele, ou deparou com uma foto do compositor acompanhado do habitual charuto? –, Villa-Lobos é nome de shopping, parque, museu e inúmeras escolas de música espalhadas pelo país. No entanto, sua obra é incomparavelmente menos ouvida do que seu nome, e na verdade muito de sua produção é desconhecido mesmo dentro do meio musical. Igualmente, dados biográficos e aspectos fundamentais para compreender sua trajetória musical são pouco conhecidos ou inconsistentes.

Autodidata

Villa-Lobos nasceu no Rio de Janeiro a 5 de março de 1887. Teve sete irmãos e recebeu as primeiras lições musicais em casa. O pai, músico amador, tratou de ensiná-lo a tocar violoncelo (instrumento que ele próprio tocava) ainda criança, adaptando um espigão (apoio que fixa o instrumento ao chão) a uma viola. Além das aulas com o exigente progenitor, mais tarde Villa-Lobos passou a frequentar o ambiente musical boêmio carioca, tocando violão com os chorões, e consta que em 1904 se matriculou no Instituto Nacional de Música para ter aulas de violoncelo num curso noturno – porém não existem registros de que tenha frequentado as aulas nos anos seguintes.

É espantoso pensar que esse foi, provavelmente, todo o “estudo” que proporcionou a Villa-Lobos escrever o conjunto de sua obra – mesmo se levarmos em consideração que muito do que produziu se caracterizou justamente por peculiaridades advindas de sua falta de conhecimentos musicais formais.

O pai de Villa-Lobos faleceu em 1899, aos 37 anos, e, após algum tempo vivendo com a mãe, consta que em 1905 Villa partiu para suas famosas viagens pelo Brasil, nas quais teria coletado muito material folclórico e se inspirado para mais tarde escrever a mais autêntica “música brasileira”. Ao menos é o que afirma a maioria de seus biógrafos, amparados em declarações do próprio compositor. No entanto, Paulo Renato Guérios – que em 2003 lançou um livro que pode ser considerado um dos mais importantes estudos já escritos sobre o compositor – afirma que existem poucos dados empíricos capazes de provar tais fatos, ou mesmo de elucidar a trajetória de Villa-Lobos entre 1905 e 1912. Na verdade, pode-se afirmar apenas que ele realizou duas viagens: a Paranaguá, onde trabalhou por um ano como atendente no comércio local, e a Manaus, para onde seguiu, como violoncelista, para realizar um concerto com uma companhia artística. Ou seja, foram deslocamentos ligados ao trabalho e à busca de subsistência, bem longe de supostas expedições de pesquisa.

Ao voltar para o Rio, em 1912, passou a trabalhar como músico de orquestra em sociedades sinfônicas, cinemas e cafés. Começou também a compor e, a partir de 1915, reuniu esforços para, com alguma regularidade, promover concertos de obras suas. Foi depois de um desses concertos, realizado em 1921, que foi chamado para participar da Semana de Arte Moderna em São Paulo, no ano seguinte.

A essa altura, Villa-Lobos já desfrutava de algum reconhecimento, com diversos admiradores entre a elite econômica e intelectual carioca. Após sua participação na Semana, sua fama chegou também a São Paulo e seus amigos começaram a articular sua ida a Paris, passo mais do que natural – à época considerado imprescindível – na carreira de um músico brasileiro que começava a despontar.

A França no Brasil e o Brasil na França

O estudo de Paulo Guérios traz uma tese bastante interessante sobre a passagem de Villa-Lobos por Paris e sua importância crucial para o despertar do compositor como “músico brasileiro”.

Os anos que antecederam sua partida para a Europa foram de afirmação profissional. Para tanto, Villa procurou mostrar que sabia compor segundo padrões em voga entre os músicos eruditos cariocas, o que significava dominar as estéticas italiana (bel canto) e, sobretudo, alemã (Wagner) e francesa (Saint-Saëns). Da mesma forma, para ser aceito por seus pares, ele evitava a incorporação de elementos ligados à cultura popular – sua produção durante a década de 1910 é fortemente marcada pela influência francesa e quase ausente de elementos estéticos da música popular, com a qual ele tinha intimidade. Estando um passo adiante em relação a seus pares, Villa compunha ainda de acordo com compositores vanguardistas para o gosto carioca, como Debussy.

No entanto, ao chegar a Paris, em 1923, encontrou um cenário cultural em que as ideias de Debussy eram contestadas por uma nova vanguarda musical, formada por nomes como Erik Satie e o chamado Grupo dos Seis. A valorização do “exótico”, advindo de culturas distantes e estranhas ao universo francês, estava em alta, conforme atesta Tarsila do Amaral em carta escrita aos pais meses antes da chegada de Villa-Lobos: “Não pensem que essa tendência brasileira na arte é malvista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio país. Assim se explicam o sucesso dos bailados russos, das gravuras japonesas e da música negra. Paris está farta de arte parisiense”. Dessa forma, foram especialmente valorizadas pelos músicos locais as obras em que Villa-Lobos utilizava elementos de sua cultura natal.

“O fato de Villa-Lobos ter começado a compor músicas brasileiras a partir de 1923 deveu-se não à descoberta de que ele teria uma essência brasileira, mas sim a um processo de transformação que foi colocado em marcha por uma série de mecanismos sociais de atribuição de valor (…) Assim, quando Villa-Lobos chegou a Paris em 1923, toda uma série de pequenos contatos e interações (…) agiu no sentido de convencê-lo aos poucos da imperiosa necessidade de sua conversão, de sua transformação em um compositor de músicas de caráter nacional. Como consequência, ele deixaria de tentar compor de acordo com as regras estéticas de compositores franceses, tão valorizadas no Brasil, para tentar retratar sua nação musicalmente, um projeto especialmente valorizado na França”, afirma Guérios. Com essa tese, o pesquisador vai ao encontro de outro que se debruçou sobre esse período da produção de Villa, José Miguel Wisnik. Wisnik afirma que a conjunção entre a personalidade de Villa-Lobos e o contexto brasileiro, especialmente a renovação simbolizada pela Semana de Arte Moderna, é que teria impulsionado a incorporação de elementos populares em sua música após 1922.

Essa motivação que teria levado Villa-Lobos a escrever músicas de caráter nacional é sem dúvida um ponto crucial a ser esclarecido, para não cairmos em reduções simplistas ou na ideia um tanto ingênua de que subitamente ele teria “acordado” para o maravilhoso manancial musical de sua terra e abraçado a corrente estética nacionalista. Não que o compositor desconhecesse ou desprezasse o repertório popular e folclórico; na verdade o que está em questão é mostrar que ele tinha plena consciência das escolhas que fazia e estas estavam vinculadas a projeções e demandas que possuía como artista. A partir disso, o próprio Villa interpretou, ressignificou e até mesmo criou passagens de sua biografia no intuito de mostrar que, desde os primórdios de sua carreira, buscava (ou era até mesmo um predestinado a) fazer sua música “atingir um ideal”. Daí a conveniência, por exemplo, de enxergar suas viagens pelo Brasil como expedições etnomusicológicas que visavam coletar material que mais tarde seria usado em suas obras.

Nada disso, no entanto, tem a intenção de denegrir ou tirar o brilho da personalidade e da obra de Villa-Lobos. Na verdade, é fascinante perceber como essa complexa formação e cristalização de uma imagem se dá, contando com a participação intencional e ativa de seu protagonista.

Enorme acervo

A obra de Villa-Lobos é vastíssima e dela só conhecemos uma pequena parte, quase a ponta de um iceberg. Na década de 1920, ele escreveria os Doze Estudos para violão, dedicados a Andres Segovia. O músico declarou que a obra representava, na literatura violonística, o que são os Estudos de Chopin para o piano. Nessa mesma década, aliás, ele escreveu obras capitais: além dos estudos, a série de Cirandas e Cirandinhas para piano, as Serestas para canto e piano e a revolucionária série dos Choros, ciclo de 14 obras (embora as duas últimas nunca tenham sido localizadas) para diferentes formações que vão do violão solo a orquestras gigantescas.

Já após retornar de sua segunda estadia em Paris (entre 1927 e 1930), Villa se dedica a outro ciclo fundamental, o das Bachianas Brasileiras. Ao mesmo tempo em que, colaborando com o governo de Getúlio Vargas, desenvolvia um inédito programa de educação musical da população por meio do canto orfeônico, escrevia essa série de obras, que buscavam unir a estética de Bach ao universo musical brasileiro. Para diferentes formações, as noves peças, escritas entre 1930 e 1945, utilizam canções folclóricas e urbanas e alguns de seus trechos estão entre os mais populares do compositor, como a tocata da Bachiana Nº 2, “O Trenzinho do Caipira”, e a “Ária (Cantilena)” da Nº 5.

Mas há muito mais. Com um catálogo que ultrapassa mil títulos, Villa-Lobos escreveu também óperas, concertos para violão, piano, violoncelo, 12 sinfonias, fantasias, música sacra, muita música de câmara – incluindo 14 quartetos de cordas –, diversas obras orquestrais, canções e outras peças essenciais para a literatura pianística, como o Ciclo Brasileiro, a Prole do Bebê e o Rudepoema.

Porém, nem todo desconhecimento acerca desse enorme acervo se deve apenas ao desinteresse do meio musical. Uma das principais dificuldades para interpretar a obra de Villa-Lobos reside nas partituras. Além de existirem peças ainda em manuscritos – o que faz com que sejam ignoradas por intérpretes e orquestras internacionais, que só tocam obras publicadas –, muito do que foi editado apresenta uma quantidade enorme de erros e precisa de revisão urgente. A Academia Brasileira de Música (ABM), criada pelo próprio Villa-Lobos em 1945, está tentando dar continuidade a um importante projeto nesse sentido. Num acordo com a Max Eschig, que detém os direitos de boa parte da obra sinfônica de Villa, a ABM realizará uma edição crítica das peças, revisando o material que está nas mãos da editora francesa. A Academia oferecerá o material revisado gratuitamente para a Max Eschig, que por sua vez cederá a ela a exploração de partituras de Villa na América do Sul.

Mesmo com tais dificuldades, a obra de Villa-Lobos tem ganhado cada vez mais atenção dos músicos nacionais e do mercado internacional. Uma importante iniciativa fonográfica nesse sentido foi a gravação integral da obra para piano do compositor (em oito CDs) pela pianista Sonia Rubinsky para o selo Naxos, distribuído para todo o mundo.

Nesta celebração motivada pelos 50 anos de morte de Villa-Lobos, é bastante animador perceber que esforços recentes como a recuperação de suas partituras, a gravação de suas obras e a revisão de sua biografia concorrem para fazer dele mais do que um nome explorado para fins esdrúxulos (como shoppings ou conjuntos residenciais) e esvaziado de seu real sentido: o de maior compositor que o Brasil já produziu.

(1) Comentário

  1. Villa Lobos, nunca foi um serviçal da música europeia. Compôs para os índios, negros, caipiras, caboclos, e lavadeiras de seu país, foi um mestre do encanto musical de seu povo. Os intelectuais que me desculpem, mais
    Vocês, só são intelectuais e nada mais.

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