Viagem extraordinária

Viagem extraordinária

Ficção científica hard de Verne criou plataforma para a afirmação de autores como Michael Crichton e William Gibson, e gêneros como o steampunk e cyberpunk

Jules Verne nasceu em 1828 em Nantes, cidade portuária que fora o lar dos duques da Bretanha e que seria severamente bombardeada na 2a Guerra Mundial. Hoje, Nantes mantém o Museu Jules Verne e realiza anualmente o Festival Utopiales, um dos principais eventos europeus de ficção científica.

Verne morreu em 1905 como um dos autores mais lidos do mundo. Mas no final da vida parecia frustrado, especialmente pela negativa da Academia Francesa de Letras em acolhê-lo. Cem anos depois, sua fama e influência ainda se fazem sentir. E mal nos lembramos de quem eram os beletristas do seu tempo, como pressentiu Raymond Roussel: “Verne continuará a existir, quando todos os outros autores de nossa época já estiverem esquecidos há muito tempo”.

Muitos dos seus 60 livros da coleção Voyages extraordinaires são hoje chamados de ficção científica pelo nosso olhar retrospectivo. O nome da coleção batizou a principal forma do gênero feita na França no século 19 (na Inglaterra o gênero era conhecido como “romance científico”). Sua proposta de “resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, físicos e astronômicos recolhidos pela ciência moderna e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria, a história do universo” parece dever tanto ao seu editor Pierre Hetzel quanto às suas próprias ambições. Hetzel cooptou-o para a sua publicação Magasin d’éducation et de récréation. Antes, Verne escrevera comédias e operetas para os teatros de Paris.

Em Viagem ao centro da Terra (1864), Da Terra à Lua (1865) ou Vinte mil léguas submarinas (1869), Verne explorou a ciência de sua época, de maneira cuidadosa e didática. Difundiu as idéias de Darwin no primeiro livro; antecipou a necessidade do posicionamento equatorial das bases de lançamentos de foguetes (o Cabo Kennedy) e a “amerissagem” das naves que reentram na atmosfera no segundo; imaginou o submarino como arma de alcance estratégico no último. Defendendo o seu método, criticou a fantasia científica de H. G. Wells, Os primeiros homens na Lua (1901), que partilha o mesmo tema com o romance verniano de 1865. Nascia aí o eterno debate da FC em torno do rigor científico.

De fato, ele não previu ou descobriu o dirigível, o submarino, o foguete, o autômato, como muitos pensam, mas extrapolou – imaginando um desenvolvimento possível – as idéias que já circulavam. Seu mérito talvez esteja mais em dar uma forma tão concreta e palpitante às suas visões, que elas pareciam mais reais do que a realidade. Quando Santos Dumont, um fã de Verne, foi à Europa inteirar-se dos últimos desenvolvimentos do balão dirigível, surpreendeu-se com o fato de que ele ainda não fora inventado, ao contrário do que sugeriam as narrativas do escritor. E dentro do espírito verniano, Dumont partiu para inventar o dirigível e muito mais.

Verne começou a ser imitado ainda em vida. O visionário artista Albert Robida povoou o futuro com imagens de dirigíveis, escafandristas e submarinos em obras como Le XXe siècle (1883), La vie électrique (1890) e La guerre au XXe siècle (1887), além de ilustrar os fascicules escritos por Pierre Giffard, La guerre infernale, explorando um lado mais pessimista.

Os fascicules foram publicações populares – os dime novels franceses – que circularam especialmente entre 1907 e 1959, muitas vezes explorando o romanesco e a ficção científica de influência verniana, como nas novelas publicadas em Voyages lointains, aventures étranges, ou nos seriados Aventures fantastiques d’un jeune parisien, de Arnauld Galopin, e Les voyages aériens d’un petit parisien à travers le monde, um recordista de tiragem, escrito por Marcel Priollet. O incansável pequeno parisiense também esteve no espaço com Les aventuriers du ciel, de R. M. de Nizerolles. Outras séries de aventuras dinâmicas foram Les Robinsons de l’île volante, do mesmo de Nizerolles, e Les gangsters de l’air, de José Moselli.

A maioria desses autores acabou esquecida, mas eles podem ter contribuído para estender a influência de Verne para dentro do século 20 – como o fez Hugo Gernsback, editor americano natural de Luxemburgo. Criador da expressão science fiction, Gernsback foi o responsável pela criação do mercado especializado para a FC, com sua revista Amazing Stories, de 1926. Para indicar aos autores americanos o tipo de história que desejava imprimir na revista, republicou histórias de Verne (assim como de Poe e Wells).

No Brasil, O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar, trai a influência de Verne nessa viagem extraordinária pelo interior do país – assim como A filha do inca (1927), de Menotti Del Picchia, e um romance tão tardio quanto O homem que viu o disco voador (1958), de Rubens Teixeira Scavone. O próprio Verne “andou por aqui” com o romance amazônico de 1881, A jangada, embora nunca tivesse de fato colocado os pés no Brasil. Como em muitas das suas viagens extraordinárias, sua jornada era pela imaginação, inspirada pelos relatos de outros – mas ao falar de uma aldeia flutuante descendo o Amazonas, ele nos sugere a imagem da fábrica flutuante do malfadado Projeto Jari.

Se Verne foi imitado, também imitou. É o caso do helicóptero gigante de Robur, o conquistador (1886). Verne o teria aproveitado da obra de um seu imitador, o americano Luis Senarens, que escrevia uma série de dime novels estrelada pelo herói Frank Reade (de 1876 a 1913). Pierre Versins, criador da notável Encyclopédie de l’utopie et de la sf (1972), lista extensivamente os temas que Verne teria emprestado de autores franceses e ingleses dos séculos 18 e 19. Até mesmo o “plano” de resumir os conhecimentos científicos da época teria sido tentado antes (sem sucesso, ao contrário de Verne), segundo Versins.

É bom lembrar que essa “interpolinização” é típica dos gêneros populares, e talvez um dos méritos de Verne tenha sido o de ter-se posicionado no centro desse processo. Não obstante, muitos pesquisadores se perguntam no que ele seria único para a FC. Afinal, outros autores, vários dos quais com habilidades literárias ou imaginativas superiores, já faziam viagens extraordinárias antes dele.

Verne escrevia a FC hard do seu tempo. “Sou um escritor cujo trabalho é registrar coisas que parecem impossíveis, mas que todavia são incontestavelmente reais”, como afirma o professor Aronnax, o narrador de Vinte mil léguas submarinas.

A FC hard representa para muitos o “núcleo em torno do qual gira a ficção científica” (nas palavras do editor americano David Hartwell). Nem sempre Verne acertava, porém. O tema da Terra oca, que ele herdou de uma de suas principais influências, Edgar Allan Poe, é uma impossibilidade, assim como a sobrevivência dos tripulantes da cápsula espacial disparada de um canhão. O que conta é a intenção de extrapolar estritamente a partir do saber científico corrente.

O seu didatismo esconde, contudo, um aspecto pouco reconhecido pelos críticos: sua ficção era ancorada no presente. Embora tenha tratado do passado histórico e pré-histórico, e escrito umas poucas narrativas ambientadas no futuro, Verne referia-se ao agora, ao conhecimento fixado pelo homem do século 19. Não importava que falasse de dinossauros ou da Atlântida submersa, sua ficção exsudava uma forte sensação do contemporâneo, integrando-se ao contexto das publicações populares em que seus romances apareciam. Os interesses cotidianos das pessoas do século 19 – viagens, descobertas e feitos científico-aventurescos – eram expandidos e tornados maravilhosos pelas suas viagens extraordinárias; a ciência e a tecnologia vinham impregnar a experiência do homem de então.

Em termos atuais, o seu método e a sua ancoragem no presente estariam vivos em um Michael Crichton, que tem uma característica partilhada com Verne – o fato de ser um best-seller. De fato, foi o primeiro best-seller nacional americano da FC no pós-guerra, com O enigma de andrômeda (1971), e continua em alta. Ele porém faz um uso cínico dos temores contemporâneos em torno de ciência e tecnologia – uma estratégia que Verne não aprovaria.

O cyberpunk, movimento surgido dentro da FC, mas que a transcendeu, tem como ideólogo Bruce Sterling, um declarado fã de Verne, que admite: “Partilho a tendência de Verne de escrever viagens fantásticas onde as pessoas vagam rapidamente pelos cantos mais estranhos do mundo. É um bom modo de colocar um bocado de dados em um texto, sem perder o interesse do leitor”. Sterling enxerga no cyberpunk um tipo de FC hard. Como Verne o fazia, o cyberpunk extrapola desenvolvimentos imediatos de tecnologias atuais, mas para um futuro próximo. E assim como o escritor francês utilizou muitos personagens americanos ou ingleses – países na vanguarda da produção científica no século 19 –, os autores globalistas do cyberpunk foram buscar a vanguarda de novas tecnologias e comportamentos no Japão e nos Tigres Asiáticos.

A influência verniana está mais presente no steampunk, subgênero que Sterling criou com o outro guru do cyberpunk, William Gibson, quando da publicação do romance The difference engine (1992). Trata-se de um tipo de FC recursiva, que retorna às raízes do gênero, no século 19. Sterling: “O nosso plano original para o livro apresentava Verne como um personagem em The difference engine. Por sorte nós recuperamos o juízo e não o usamos. Desde então eu escrevi introduções para edições de dois romances de Verne, A volta ao mundo em oitenta dias e A ilha misteriosa”. O steampunk esteve muito em voga durante os anos 1990, antes de se tornar uma forma especialmente popular nos quadrinhos e no cinema, especialmente com A liga extraordinária.

Diriam alguns, diante do “problema Verne” (termo criado pelo pesquisador Thomas Clareson), que essa influência do autor nos séculos 20 e 21 é residual e que a sua contemporaneidade hoje é mais uma curiosidade sobre uma época, o século 19, em que a FC se construía – assim como o mundo tecnológico em que vivemos. O futuro próximo traria então o esvaziamento da fama duradoura do autor?

Exceto talvez pelo fato de o “problema Verne” ser mais profundo. Marcel Moré levanta semelhanças entre os seus escritos e as idéias de Nietzsche, em particular a posição do Capitão Nemo, de Vinte mil léguas, como uma espécie de super-homem nietzscheano, misantropo e disposto a perseguir seus objetivos à parte da humanidade medíocre e vil. “Dize o que tens a dizer e faze-te em pedaços!” (Assim falou Zaratustra) poderia ser o lema do aventureiro submarino, um guerreiro indiano que perdera tudo com a tirania colonialista inglesa (odiada por Verne) e que aspirava coletar o conhecimento dos oceanos do mundo para então atirá-los em uma arca selada, como uma mensagem na garrafa, quando de sua morte. Nemo financiava movimentos de libertação com o ouro recuperado de galeões naufragados e atacava o poderio naval das potências colonialistas. O super-homem nietzscheano foi bisado por Verne com Robur e seu navio aéreo.

Verne, que projetava imagem de burguês e positivista convicto, tendia para a esquerda. Moré: “Em 1889 ele se apresenta para as eleições municipais de Amiens numa lista ultra ‘vermelha’”. E Paris no século 20, um inédito publicado postumamente apenas em 1994, sugere questões sociais e o questionamento dos rumos da sociedade ocidental como presentes nele desde o início (o texto foi rejeitado por Hetzel, ainda no começo da carreira do escritor). Para John Clute, um dos principais críticos de FC, “seu último livro, L’étonnante aventure de la mission Barsac, é um selvagem ataque à pretensão do progresso ocidental de construir qualquer coisa que lembre uma sociedade ideal”, sugerindo um arco em sua obra, em que ele retorna às suas convicções iniciais. E Michel Foucault, fazendo uma análise do discurso verniano, detecta tensão entre certa imobilidade do discurso do saber científico e o desejo da aventura, numa frustrada busca pelo conhecimento do Eu.

O “problema Verne” traria embutido, mascarado pelo deslumbre tecnológico, esse dilacerante dilema entre o conhecimento do universo e o conhecimento do humano. Uma questão mais viva agora do que nunca. Viva talvez pelos próximos cem anos.

Roberto de Sousa Causo
autor do ensaio Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950 (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003) e da coletânea de contos de fantasia A sombra dos homens (Editora Devir, 2004). Lança neste ano uma antologia de ficção científica pela Editora Ática

Bibliografia básica

Verne
Precursor dos autores de ficção científica, o francês Jules Verne usou a imaginação e as histórias que escutou de marinheiros para compor suas mais de 70 obras. Nascido em 8 de fevereiro de 1828, cresceu em Nantes, cidade na foz do Rio Loire, onde se situava um dos portos franceses mais importantes. O pai, Pierre Verne, austero advogado, manda o filho cursar Direito em Paris. Lá, Jules Verne fascina-se pelas letras e por autores como Balzac, Victor Hugo e Alexandre Dumas pai, do qual veio a tornar-se grande amigo. Sua família desaprova a vontade do filho de ser literato e corta-lhe o apoio financeiro. Assim, Verne procura um emprego para ter condições de continuar escrevendo. Em 1863, publica seu primeiro livro, Cinco semanas em um balão. Ganha fama, mantida até sua morte, em 24 de março de 1905. 

Bibliografia selecionada (edição brasileira das obras)

A escuna perdida – Dois anos de Férias (I e II) – Villa Ricca

A jangada – 800 léguas pelo Amazonas – Planeta

A ilha misteriosa – Rideel

A volta ao mundo em oitenta dias – Ática

Capitão Hatteras – Rideel

Cinco semanas em um balão – Rideel

Em frente da bandeira – Livros do Brasil

Miguel Strogoff – Rideel

Norte contra Sul – Rideel

Paris no século XX – Ática

Robur, o conquistador – Livros do Brasil

Tio Robinson – Scipione

Tribulações de um chinês na China – Hemus

Um capitão de quinze anos – Rideel

Viagem ao redor da Lua – Hemus

Viagem ao centro da Terra – L&PM

Vinte mil léguas submarinas – Ediouro

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