Verdades e mentiras

Verdades e mentiras

Maurício Santana Dias

Mais que qualquer outra peça teatral ou obra narrativa de Luigi Pirandello, Assim É (Se Lhe Parece) acabou encarnando, para o bem e para o mal, aquilo que se convencionou chamar de “pirandellismo”, ou seja, uma das formas de relativismo extremado que eclodiram nas artes e no pensamento de inícios do século 20.

Mas nem Pirandello nem essa peça em particular podem ou devem ser lidos segundo a bitola do pirandellismo, que no fim das contas se reduz àquilo que Benedetto Croce tachou peremptoriamente de “má filosofia”.

Escrita e encenada pela primeira vez em 1917, portanto em momento pouco anterior à famosa trilogia metateatral – Seis Personagens em Busca de Autor (1921), Cada Um a Seu Modo (1923) e Esta Noite Se Improvisa (1929) –, Assim É…, pelo achado do título e não só, tornou-se quase uma expressão de uso corrente para expressar algo que hoje parece até óbvio: que não existem verdades, ou melhor, uma verdade, mas apenas versões e pontos de vista.

No entanto, se a peça – que é declaradamente uma “peça de tese”, cujo subtítulo diz Parábola em Três Atos – pode ser lida como uma demonstração em ato da morte da Verdade (em última instância, morte de Deus), há nela um segundo eixo que vai além, ou se põe aquém, desse problema de ordem, digamos, metafísica.

Vejamos. A trama da peça é de grande simplicidade e, como bem observa Alcir Pécora em seu ótimo posfácio, praticamente carece de ação: uma cidade italiana de província vê-se em polvorosa com a chegada de um núcleo familiar atípico, constituído pelo senhor Ponza, que vem ocupar o cargo de secretário na prefeitura, acompanhado da esposa e da senhora Frola, sua sogra.

O motivo de toda a celeuma dá-se não só pela quebra do trio tradicional da família – pai, mãe e filhos(as) –, mas especialmente pelo comportamento inusitado de seus integrantes.

Incapazes de se furtar à curiosidade geral dos que os cercam, os protagonistas da peça veem suas vidas logo devassadas e passam a dever explicações sobre seu comportamento “desviante”. E é aí que surgem as primeiras complicações. Interpelada por seus vizinhos, a senhora Frola, que não mora com a filha e o genro, apresenta uma primeira versão segundo a qual o genro, por um amor obsessivo-possessivo, não permite que ela visite a filha, já que esta, segundo Ponza, não seria a filha de Frola, mas sua segunda esposa, com quem ele teria casado depois da morte daquela.

Histeria coletiva

Em seguida, o senhor Ponza expõe uma versão oposta e não menos coerente ou plausível, afirmando que a pobre Frola havia enlouquecido com a morte da filha e, por piedade, ele e sua nova esposa faziam uma espécie de cena a fim de que a sogra vivesse na ilusão de que a filha continuava viva.

Diante da indecisão que se instala, a cidade, representada nas figuras do Conselheiro Agazzi, do Prefeito, do Comissário e de senhores e senhoras que acorrem em busca de notícias decisivas, faz todas as diligências para descobrir de que lado estaria a verdade. Acontece que a família vem de uma cidadezinha arrasada por um terremoto (lembremo-nos do devastador terremoto de Messina, em 1910), e os poucos sobreviventes não são capazes de fornecer testemunhos decisivos.

Pirandello então executa uma segunda torção na peça: confrontados com a aporia e a impossibilidade de decidir quem seria o louco da trama, os pacatos cidadãos da cidade entram num estado de histeria coletiva e instauram um autêntico interrogatório a fim de extrair a verdade dos forasteiros – o Outro –, não hesitando em recorrer à tortura psicológica e à intimidação autoritária.

Tanto o senhor Ponza quanto a senhora Frola acusam a violência a que são submetidos e ameaçam abandonar a cidade. É então que, intimada a comparecer diante de todos, ao final do terceiro ato a senhora Ponza surge no gabinete do Conselheiro Agazzi, vestida de preto e com um véu espesso que lhe oculta a face, e profere a mais famosa frase da peça: “Para mim, sou aquela que se crê que eu seja”, assumindo a condição de fantasma e abdicando de toda a subjetividade.

O pano desce sobre a gargalhada de Laudisi, cunhado do Conselheiro Agazzi, que na peça funciona como uma figura metadramática, comentando as cenas e postulando a inexistência de uma verdade.

Dito isso, é preciso lembrar que Assim É… deriva diretamente da novela A Senhora Frola e o Senhor Ponza, Seu Genro, em que a figura espectral da senhora Ponza jamais se dá a ver. No teatro, sua aparição é de grande impacto, mas ao mesmo tempo, por seu caráter alegórico, dilui algo que, na novela, permanecia no campo do discurso e das relações sociais.

Sua fala enfatiza exclusivamente a derrocada da Verdade, obscurecendo o outro polo da peça e da novela: a violência de que todos participam, como vítimas e carrascos, em nome da coesão social.

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