Vamos levar a pandemia viral a sério?
Enfermeira do Hospital Espanhol, em Salvador, centro de tratamento da Covid-19 (Foto: Paula Fróes/GOVBA)
A crise global, sanitária e social provocada pela Covid-19 em 2020 revelou as consequências das políticas econômicas neoliberais das décadas anteriores sobre os corpos vivos. A opção política e ideológica por processos de privatização e desmantelamento dos sistemas nacionais de cuidado e atenção à saúde produziu mortes e potencializou o sofrimento da população. A aproximação entre neoliberalismo e necropolítica tornou-se ainda mais evidente.
O modo hegemônico de compreender e de atuar no mundo (a que se convencionou chamar de “racionalidade neoliberal”) passa necessariamente por decisões que autorizam a morte. Dos grandes empresários ao trabalhador precarizado (que se percebe, também, como um empresário-de-si e trata os outros como concorrentes a serem vencidos ou inimigos a serem neutralizados), as respectivas decisões são tomadas a partir de cálculos de interesse que visam quase que exclusivamente a ampliação dos lucros e a obtenção de vantagens pessoais.
Porém, grande parte da população permanece sem compreender a relação entre esse modo de pensar, o crescimento do número de mortos e as opções políticas condicionadas pelo neoliberalismo. Isso porque foi construída uma espécie de “véu” sobre os mecanismos de sociabilidade, de produção e de reprodução do capital (e da vida), bem como sobre as opções políticas neoliberais, que passaram a ser vistos como naturais e inevitáveis.
Da mesma maneira que as vítimas da violência policial e de outras manifestações de arbítrio estatal, os pacientes sem tratamento adequado nos hospitais públicos são também efeitos de uma determinada racionalidade, de um modo de ver e atuar que tanto produz uma rede de poder capaz de extrapolar os limites legais quanto faz com que parcela da população passe a ser etiquetada de “matável”.
Deixar morrer tornou-se um mandamento neoliberal sempre que o custo da vida reduzir os lucros e prejudicar o objetivo de acumulação tendencialmente ilimitada do capital. A racionalidade, hoje hegemônica, busca o lucro sobre os corpos, os mortos, as crises, os desastres, as pandemias etc.
A crise sanitária, econômica e social global de 2020, porém, abre um horizonte de possibilidades. Há, a partir dela, um campo em disputa pelos atores sociais. Como em toda crise, gera-se um momento com potencial de ruptura. A palavra “crise”, vale lembrar, aparece na Roma Antiga como um termo médico para designar o momento decisivo em que se define se um paciente doente irá morrer ou, a partir da própria doença, se curar.
Em resumo: diante de cada crise, que sempre é a consequência de um determinado modo de ver e atuar no mundo, diversos caminhos e possibilidades se abrem.
O mundo pós-pandemia vai ser definido a partir da resolução de uma questão prévia: a manutenção ou não da racionalidade neoliberal. Insistir na naturalização do modo de pensar e atuar neoliberal, que considera a busca do lucro e de vantagens pessoais o único objetivo “racional” (ao mesmo tempo em que trata as pessoas como objetos negociáveis), pode levar a dois horizontes catastróficos (apresentados como naturais e inevitáveis, como toda manifestação neoliberal).
Nos países em que o pensamento autoritário se instaura sem maiores dificuldades, nos quais o conhecimento e a ciência são demonizados enquanto a violência é sacralizada, as mortes causadas pela Covid-19 são tratadas como positividades (da mesma maneira que a eugenia era tratada como positividade pelos nazistas no século passado). Nos cálculos de interesse levados a cabo pelos “técnicos” desses países, em que a morte e a violência estrutural produzida pelo funcionamento “normal” do capitalismo são naturalizadas e percebidas como inevitáveis, as mortes em razão da pandemia viral serão consideradas “ganhos” equivalentes aos que seriam obtidos com a destruição dos sistemas de proteção trabalhista e previdenciário. Assim, o Estado, utilizado como um instrumento a serviço dos detentores do poder econômico, funcionou e continuará a funcionar como uma agência indutora de mortes (que vão se somar ao projeto genocida dos indesejáveis em curso há muitos anos), dando concretude ao objetivo de controlar e neutralizar os indesejáveis aos olhos dos detentores do poder econômico. Essa lógica, o aprofundamento do pensamento autoritário e o aumento de práticas flagrantemente antidemocráticas, não desaparecerá no mundo pós-pandemia. Ao contrário, o medo de novas pandemias (transformado em medo do outro) reatualizará o paradigma imunológico (nesse particular: HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2017), que justifica o uso do poder por uma agência estatal (em especial, da violência) para conter a população em nome da luta contra o vírus.
Com isso, nos países de baixa densidade democrática, ter-se-á o aprofundamento de um paradigma repressivo de governo dos homens e das coisas baseado no poder disciplinar, no obscurantismo e na naturalização de mortes evitáveis em nome dos interesses de poucos.
Porém, uma das principais características da racionalidade neoliberal é a plasticidade, ou seja, sua capacidade de se adaptar aos mais variados contextos e ideologias. Assim, em países que conseguiram construir uma cultura minimamente consistente de respeito aos direitos e garantias fundamentais (vida, integridade, saúde, trabalho etc.), a lógica neoliberal atuará a partir de mecanismos e dispositivos mais engenhosos e sofisticados. A partir da necessidade de adoção de políticas de confinamento e distanciamento social, mas principalmente em razão da manipulação política do medo da pandemia, novas estratégias (tipicamente biopolíticas) passarão a ser postas em prática e naturalizadas. Serão potencializadas técnicas de psicopoder, que fazem o indivíduo tanto naturalizar a exploração (aumento das horas de trabalho em home office, novas precarizações do trabalho, redução dos salários etc.) quanto fornecer informações (que serão exploradas pelo mercado e utilizadas politicamente pelos governos).
Nesses países em que o exercício explícito da violência ainda é capaz de chocar, ter-se-á um novo paradigma de governo das pessoas e das coisas. Nesse novo paradigma, a ideia de segurança sanitária passará a ocupar papel de destaque como justificativa para o afastamento de direitos fundamentais como o da intimidade e o da inviolabilidade frente ao Estado (sobre o tema, vale ler Tempêtes microbiennes, de Patrick Zylberman, Gallimard, 2013). O medo da morte diante do risco de novas pandemias fará com que conquistas da civilização que representavam limites à ação do Estado sejam deixadas preventivamente de lado. No lugar do poder disciplinar, dar-se-á a opção preferencial pelo recurso do psicopoder.
A racionalidade neoliberal, portanto, fará com que se insista em fazer do Estado um instrumento a serviço do mercado e dos detentores do poder econômico, prestando auxílio financeiro a empresários e a instituições financeiras, restringindo a liberdade dos cidadãos em nome do medo da contaminação, eliminando os espaços de intimidade, reduzindo a liberdade das pessoas, reatualizando o poder disciplinar e aumentando o controle biopolítico sobre a população.
Mas, diante de um quadro de crise, também se pode construir saídas novas e originais, revolucionárias, a partir de outro modo de ver e atuar no mundo. Apresentar caminhos alternativos para o mundo pós-pandemia é um desafio, mas também um dever ético. Construir coletivamente outro mundo possível em relação ao qual qual cada pessoa se perceba responsável ainda é um sonho, mas pode se tornar realidade.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano