Vamos levar o neoliberalismo a sério?

Vamos levar o neoliberalismo a sério?
O Chile autoritário de Pinochet foi o primeiro grande laboratório experimental de um governo neoliberal (Foto: Reprodução)

 

Um pouco da história do neoliberalismo

A constituição histórica do que conhecemos hoje sob a rubrica de neoliberalismo remonta a um conjunto mais ou menos ordenado de fenômenos que podem ser repertoriados de modo a extrair desses acontecimentos o balanço de seus impactos e a construção de seu sentido de conjunto. De um ponto de vista político, a crise da economia norte-americana a partir de 1929 – que se expandiu ao estatuto de uma crise estrutural do próprio capitalismo – impulsionou uma tendência geral ao ostracismo das diretrizes básicas do liberalismo econômico, sobretudo do paradigma do laissez-faire como política dominante entre os Estados até aquele período.

A década de 1930 se iniciava com uma crise profunda do liberalismo e do capitalismo de mercado, que coabitava naquele momento com o sucesso inconteste da economia planejada socialista, de viés soviético. No seio do próprio capitalismo, a resposta àquela crise abriu espaço para uma recuperação do papel do Estado no controle dos juros e na manutenção da taxa de desemprego, advogada pela Escola de Cambridge de linhagem keynesiana. Reativos tanto à tendência “estatista” do keynesianismo, quanto à derrota do liberalismo frente ao socialismo, um grupo de economistas e pensadores passaram a defender a urgência, naquele momento, da produção de uma resposta organizada capaz de promover um novo projeto liberal de dimensão econômica, moral, política e intelectual, erguido das cinzas da tradição liberal derrotada historicamente.

Em agosto de 1938, aquele grupo de intelectuais se reuniu em Paris, no chamado Colóquio Walter Lippmann, que outorgava para si a tarefa histórica de construir um novo liberalismo. Entre os membros do colóquio figuravam influentes personalidades do chamado ordoliberalismo alemão, como Wilhelm Röpke e Alexander Rustow; e igualmente dois grandes expoentes da chamada Escola Austríaca: Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Naquela altura, Mises era conhecido como um importante representante do individualismo metodológico de linhagem austríaca, que entendia que o valor econômico de um bem não é tributário de suas propriedades objetivas, mas apenas pode ser deduzido a priori a partir de aspectos subjetivos articulados da ação humana. Nesse sentido, o valor de uma mercadoria depende da conjugação do interesse subjetivo dos indivíduos naquele bem, de modo que, quanto maior for o número de pessoas interessadas em um produto, maior será seu valor. Abria-se, assim, a via para a teoria dos preços de Hayek, que entende que as ações individuais atomizadas e dispersas na sociedade podem ser finalmente coordenadas em um mercado livre, de modo que o preço de cada mercadoria se torna a expressão evidente dessa coordenação. Os preços seriam, portanto, uma fonte de informação natural e espontânea a respeito dos ajustes e desajustes do mercado, uma vez que o mercado tende a reajustar autonomamente a coordenação entre oferta e demanda, encontrando naturalmente um ponto de equilíbrio em que os preços oscilem dentro de uma margem estrita

Mesmo já amparados por um arcabouço conceitual que esses autores entendiam ser capaz de fazer frente ao avanço keynesiano e socialista, a presença dos titãs da Escola de Viena não foi suficiente para direcionar os resultados do Colóquio Walter Lippmann nos moldes que esses autores desejavam. A irrupção da Segunda Guerra Mundial termina por apagar a centelha inaugurada naquele colóquio, de modo que o projeto de construção de um novo liberalismo apenas poderá ser retomado nove anos depois. Tendo ganhado notoriedade pela publicação de seu mais conhecido trabalho, O caminho da servidão (1944), Hayek enfim assume a frente de uma organização que será tratada por seus membros como uma “internacional liberal”, que se inicia com a reunião de um grupo que formará a chamada Societé du Mont Pèlerin, em 1947, na Suíça. Desta vez, o projeto ganha novo fôlego econômico graças ao financiamento e a participação direta da Foundation for Economic Education e do Volker Fund (que pressiona de forma deliberada alguns dos membros da Societé a evitar determinados temas de pesquisa, como os monopólios privados, por exemplo), e passa a contar igualmente com o comando direto hayekiano na escolha e reunião de intelectuais, empresários, banqueiros e economistas interessados no desenvolvimento de um projeto de sustentação liberal dos mercados abertos contra aquilo que consideravam serem os interesses inimigos do liberalismo. Pode-se dizer que o sistema de disseminação ideológico pautado na multiplicação de think tanks privados é um dos frutos principais da Societé Mont Pèlerin.

Em 1949, dois anos depois da fundação da Societé, Hayek publica o artigo Os intelectuais e o socialismo, em que apresenta de forma detalhada sua visão a respeito da importância do campo intelectual e de sua organização orientada na condução da opinião pública. O artigo tem a intenção de convocar os novos liberais a tomar a frente da disputa ideológica e intelectual pública, reconhecendo e mimetizando o sucesso que, naquele momento, os socialistas haviam conquistado neste campo. Hayek reconhece que a defesa de um mercado desregulado depende integralmente de formas organizadas e institucionalizadas de persuasão pública, realizadas por uma elite intelectual capaz de desenvolver teorias sobre a sociedade de mercado, e de disseminá-las.

Neoliberalismo: teoria econômica, modo de governabilidade, racionalidade, normatividade etc.

A partir da década de 1980, com a ascensão política de uma ortodoxia conservadora que se apropriou do clima gerado pela recessão que se seguiu à alta inflacionária no final dos anos 1970, um novo capítulo da história do neoliberalismo se escreve. Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos passam a combinar um discurso anticomunista a uma defesa conservadora da família e de uma menor regulação da esfera econômica por parte do Estado. Essas duas figuras públicas são responsáveis por assumir e disseminar uma transformação da linguagem política que até aquele momento era reservada aos think tanks privados e às reuniões de grupos de influência neoliberais.

O resultado da redução da complexidade do corpo social à linguagem do indivíduo e da família, somado à linguagem economicista do “gasto” para se referir a direitos sociais, produz o cenário ideal para o desmantelamento e, por vezes, para uma perseguição conservadora contra as instituições públicas que se notabilizam por sua estrutura de associação coletiva e de solidariedade social: sindicatos, movimentos sociais e associações de classe são vistos por princípio como parasitas aos que “realmente trabalham” (isto é, aos que geram lucro à iniciativa privada). A linguagem dos vencedores e dos perdedores individuais em uma disputa de mérito se naturaliza e substitui, no discurso público, a tarefa do Estado de garantir condições econômicas de justiça social para uma competição e tratamento igualitários entre os cidadãos.

Deste modo, a desconfiança intelectual de Hayek a respeito de conceitos políticos como “justiça social” e “bem comum” (que ele entendia serem exclusivamente morais, e não políticos) finalmente é traduzida em prática de governo. Por este motivo, Boaventura de Sousa Santos definirá o neoliberalismo como a “versão mais antissocial do capitalismo”, ou seja, aquela na qual a retórica fiscalista opera a serviço da degradação progressiva das políticas públicas e da implementação de uma lógica mercantil que reforça processos de exclusão social.

O ex-presidente americano Ronald Reagan e a ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher em 1982 Foto: Gerald Penny / AP
A partir dos anos 1980, Margaret Thatcher e Ronald Reagan combinam um discurso anticomunista a uma defesa da família e de uma menor regulação da esfera econômica por parte do Estado (Foto Gerald Penny / AP)

Neste sentido, é importante notar que o primeiro grande laboratório experimental da prática de governo neoliberal não fora exatamente o thatcherismo ou o reaganismo, mas antes o Chile autoritário do General Augusto Pinochet (1973-1990), que adotara o ideário da chamada Escola de Chicago em um cenário de violação aos direitos civis, supressão de garantias individuais e terrorismo de estado. Assim, a violência ditatorial dos anos do governo Pinochet propiciou o solo adequado para a implementação de um conjunto de políticas macroeconômicas e processos sociais de retração da esfera pública, em uma espiral que desativara violentamente a margem decisória dos processos populares e, em consequência, impossibilitara a esfera reivindicatória de justiça social.

Daí que a experiência histórica chilena, longe de tratar-se de uma circunstância furtiva, deva ser lida como índice do caráter regressivamente antidemocrático do neoliberalismo e da exacerbação de sua distinção fundamental face ao liberalismo clássico: se para ambos o “mercado” é a chave de inteligibilidade e de organização prática da totalidade da vida social, resta que, como bem notou Michel Foucault, para o liberalismo clássico o princípio do mercado é a troca como sinal de equivalência de valores – o que pressupõe uma “situação entre iguais” –, ao passo que, para o neoliberalismo, o princípio do mercado é a concorrência, o que pressupõe, por seu turno, o desmonte da moldura formal de direitos e uma desregulamentação que assegure, justamente, a desigualdade dos atores econômicos. De fato, ninguém menos que o próprio Hayek, em entrevista dada em 1981 ao jornal chileno El Mercurio, reconhecerá as afinidades eletivas entre o neoliberalismo e o autoritarismo: “é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”.

Posta a questão nestes termos, é possível compreender que a maquinaria neoliberal de retração da esfera pública e de captura do Estado para a maximização de lucros privados é incompatível com a experiência democrática substantiva, posto que seus processos implicam a formação (politicamente orientada) de uma crescente população de subcidadãos para os quais vale a lógica, perversa, da exclusão por “ineficiência” – ela própria um produto da desativação neoliberal dos dispositivos democráticos de cidadania social. Mas justamente aqui não se deve perder de vista a singularidade dos países de passado colonial, mormente o Brasil, cujo experimento bolsonarista, mutandis mutandis, evoca a uma só tempo o sombrio período das ditaturas da América Latina e as novas possibilidades de um neoliberalismo de teor autoritário, que reduz a própria democracia liberal à ridícula (mas violenta) paródia de sua forma vazia.

Assim, o Brasil pandêmico de Bolsonaro torna-se o paradigma da convergência entre o reestabelecimento da lógica da violência colonial – caudatária do experimento da formação não-comunitária da estrutura político-jurídica da plantation colonial – e os modernos processos, neoliberais, de formação de contingentes crescentes de grupos de vulneráveis que, marcados com os estigmas interseccionais de raça, classe e gênero, permitem a reexpansão da maquinaria de extração de mais-valia em seu caráter mais predatório. A disjuntiva tipicamente neoliberal, ou a vida ou o lucro, se explicita a ponto de, entre nós, assumir a forma insidiosa da retórica presidencial de que se trata, no apelo ao isolamento social, da defesa da saúde contra a economia.

É preciso conhecer o neoliberalismo

Hoje, o neoliberalismo costuma ser apontado como um fenômeno múltiplo e plástico, capaz de se adaptar a diferentes contextos e ideologias. Para além das questões epistemológicas, econômicas e governamentais, o neoliberalismo também é percebido por muitos como um modo de compreender e atuar no mundo que se tornou hegemônico e produziu profundas transformações nas funções do Estado (o Estado passa a estar pornograficamente a serviço dos detentores do poder econômico), no funcionamento da sociedade (instaura-se uma espécie de “vale-tudo” na busca por lucros e/ou vantagens pessoais) e na economia psíquica dos indivíduos (com a mutação do simbólico que leva a quadros de paranoia).

Conhecer e estudar o neoliberalismo, portanto, parece ser fundamental à compreensão de diversos fenômenos, inclusive a tendência à desdemocratização e o funcionamento dos governos ultra-autoritários de Donald Trump, Recep Tayyip Erdogan, Rodrigo Duterte e Jair Bolsonaro. Por essa razão, entre 23 e 25 de novembro de 2020, se realizará o Colóquio Internacional Virtual “A filosofia pensa o neoliberalismo”, com a presença de importantes teóricos, brasileiros e estrangeiros, que se dedicam ao estudo do tema. O evento é gratuito e todos os leitores da Cult estão convidados.

André Yazbek é doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor efetivo do departamento de Filosofia da UFF.

Felipe Castelo Branco é doutor em Filosofia pela PUC-RJ em Psicanálise pela UERJ. Professor efetivo do departamento de Filosofia da UFF.

Rubens R.R. Casara é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano.


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