Carlos de Assumpção e Valério Corrêa: para caminhar mais um pouco na memória do tempo
Há muitas histórias, isso é certo, que, por desconsideradas pelas narrativas hegemônicas, precisam ser redescobertas, revistas, recontadas e revalorizadas. Quando um poeta como Carlos de Assumpção se torna um dos nomes mais falados, ouvidos e lidos da poesia do país, é necessário que, conjuntamente com ele, apareçam outros que, apesar de terem lhe marcado, caíram no esquecimento.
Se não fosse através de Carlos de Assumpção, quem, hoje, saberia quem foi Valério Corrêa, um poeta completamente desconhecido de todo meio poético, crítico, acadêmico, jornalístico, editorial e de todo o Brasil? Se não fosse Carlos de Assumpção, Valério Corrêa seguiria, talvez para sempre, na cruel vala do esquecimento de um país avesso a resguardar sua memória, sobretudo quando ágrafa e quando diz respeito à de negros, indígenas e de todos que lutaram e seguem lutando por um país diverso, inclusivo, mais justo e mais equânime.
Em certo momento da entrevista que fiz com Carlos de Assumpção para a revista Cult, publicada em março de 2020, no número 255, respondendo à pergunta sobre quem são os poetas mais importantes para ele, deixando-nos saber que “quem mais me influenciou foram os cururueiros de Tietê”, ele menciona Langston Hughes, Carlos Drummond de Andrade, Garcia Lorca, Solano Trindade, Luís Gama, Gonçalves Dias, Castro Alves, Machado de Assis, Cuti, Miriam Alves, Cristiane Sobral e Akins Kinté. Além desses, mais um comparece: “E, também, com uma quadrinha só, o Valério Corrêa, que só tinha uma quadrinha, que é o que restou da poesia dele. Ele era um poeta repentista, que andava pela cidade. De vez em quando, era preso, porque fazia crítica ao poder. Prendiam-no então por vadiagem. Antigamente, quando queriam prender, eles prendiam por vadiagem”. No poema “Canção de amor”, que consta em Não pararei de gritar; poemas reunidos (Companhia das Letras, 2020, por mim organizado), entre os poetas com “vozes imortais” de sua terra – Tietê –, o primeiro que comparece é Valério Corrêa:
Abram a janela.
Deixem o vento trazer nas suas asas
Lembranças da minha terra.
Eu quero ouvir as vozes imortais de seus poetas,
Valério, Cornélio Pires, Joaquim Cruz, Luís Martins, Aécio,
Rossini, Euclides, Gomide, Josias, Fuzilo e outros mais.
Eu quero ouvir todas essas vozes imortais.
Valério Corrêa fora amigo de Cirilo Carroceiro, avô materno de Carlos de Assumpção que, entretanto, não o conheceu, pois aquele já havia falecido quando nosso poeta nasceu (em 1927). A quadrinha a que Carlos de Assumpção se refere é:
Me chamo Valério Corrêa
Sobrenome de – Garcia;
Na boca de quem não presta,
Valério não tem valia.*
* Nesse momento, sigo a versão da transmissão oral da família de Carlos de Assumpção, que estende o primeiro verso para oito sílabas, ainda que o pronome inicial seja pouco pronunciado. A versão da revista Leitura para Todos preserva o verso inicial com 7 sílabas. Nas variações da oralidade, de suas acomodações e de seus ritmos, o que vale é termos as duas versões para serem lidas e futuramente exploradas.
Ela lhe foi transmitida oralmente pelo avô e pela mãe, como um dos poemas que ouviu cedo na vida e memorizou, marcando-o para sempre. A importância de Valério Corrêa se deu, certamente, por ser um poeta negro, “enjeitado da pátria”, com questões dos negros, um poeta da oralidade, repentista, que vagava pela cidade, com quadras bem-humoradas, criticando o poder e constantemente preso por “vadiagem”. Em todos os sentidos, um poeta do contrapoder, contra as graves e violentas forças institucionais e estatais, um poeta, enfim, da resistência negra. Para Carlos de Assumpção, Valério Corrêa era um dos que mais tinham valia e segue sendo um dos que mais valia têm.
Como herança de Valério Corrêa – e de toda uma tradição que Carlos de Assumpção conhece muito bem –, esse modo das quadras populares em sete sílabas (em redondilha maior) tematizar, muitas vezes com ironia, mas sempre com contundência, a vida do negro do Brasil está espalhado pelos livros do poeta. Fora poemas em que essas formas se misturam a outras, elas se mostram em “Identidade”, “Pedras”, “É preciso que saibamos”, “Eu sou negro” e “Salada (quadrinhas)”. Deixo aqui algumas como exemplo:
Muita gente esquece irmão
Esquece maldosamente
Que negro tem coração
Tal como tem toda gente
Deus devia meu irmão
(É o que sempre tenho dito)
Dar ao negro coração
Mas coração de granito
O homem negro é como o boi
Não sabe a força que tem
Se soubesse não levava
Chicotada de ninguém
Minha prima é mestiça
Não é negra como eu sou
Alguém a chamou de negra
Minha prima desmaiou
O jornalista racista
Bateu as botas morreu
Deve ter ido pro inferno
Antes ele do que eu
O que, até poucos meses atrás, Carlos de Assumpção nunca soubera é que a quadrinha que ele tanto ama e imaginava ser a única a ter restado do poeta, não era nada menos do que uma – logo a primeira – das “Trovas do Valerio” que foram recentemente descobertas por Marcio Pereira, docente de Literaturas Africanas da UNESP de Assis. No dia 16 de março de 2021, recebi uma mensagem eletrônica, em que o pesquisador me dizia:
Bom dia Prof. Alberto Pucheu:
Recentemente eu li uma reportagem sua com o poeta Carlos de Assumpção em que ele lembra de um outro poeta chamado Valério Corrrêa. Eu descobri num arquivo uma foto e um poema desse poeta. O mesmo poema de que o Carlos de Assumpção cita uma quadrinha. Eu acho que esse material é inédito e seria um belo presente para o poeta Carlos de Assumpção.
att
Marcio R Pereira
Docente de Literaturas Africanas -UNESP-Assis
Tão logo, no mesmo dia, lhe respondi, o professor e pesquisador, mais uma vez, muito gentil e generosamente, me retornou:
Olá Alberto, Boa tarde
Estou enviando para você o material que tenho aqui. Acho justo você mostrar para o Carlos de Assumpção.
Seria uma forma de prestigiar o seu trabalho e sua trajetória como pesquisador. Minha intenção era escrever um artigo sobre esse material mas poderíamos escrever ou divulgar essa informação em conjunto. O que você acha?
Eu assisti seu documentário e li as matérias sobre o poeta. Não conheço o museu de São Carlos. Sempre ensaiei para ir mas estou num lugar bem desmapeado.
grande abraço
Marcio
Passei o contato de Carlos de Assumpção para o Marcio que, entretanto, preferiu que, ao menos para a primeira abordagem, eu mesmo falasse com o poeta sobre a descoberta feita por ele. Liguei para Carlos de Assumpção, perguntando-lhe: “Seu Carlos, quem é o poeta de que o Senhor mais gosta?”. Ainda imbuído do susto pela pergunta inesperada, depois de titubear por um ou dois nomes, ele o mencionou: “Valério Corrêa!”. “E como é a quadrinha dele, Seu Carlos?” Imediatamente após Carlos de Assumpção ter, mais uma vez, recitado a quadrinha do Valério (“Me chamo Valério Corrêa/ Sobrenome de – Garcia;/ Na boca de quem não presta,/ Valério não tem valia.”), emendei lendo para ele todas as outras quadrinhas das “Trovas do Valerio”, que eu mesmo tinha acabado de ler, contando-lhe em seguida a história que havia ocorrido no mesmo dia.
O que o pesquisador Marcio Pereira descobrira é que, em fevereiro de 1914, no número 108, do “anno IX”, a revista A leitura para todos publicara uma matéria, não assinada, intitulada “Um poeta analphabeto”, referindo-se a ninguém menos que a Valério Correa, incluindo uma fotografia do poeta feita por Liborio Guarnieri. Importante frisar que o número 1 da revista salientava que se tratava de uma publicação mensal que buscava “cumprir o vasto programma a que a obriga o seu titulo mas que, pelo seu feitio e pelo seu preço, é antes de tudo destinada ás nossas classes populares”, ou seja, a revista buscava inserir a leitura nos meios populares. A matéria trazia uma primeira frase surpreendente: “O Brazil é a terra dos poetas”. Entre irônica e séria, a frase é colocada ao lado de outras que comporiam, então, nossas obviedades nacionais, tais quais: “Somos um país essencialmente agrícola”, “Rumo ao mar”, “Ordem e progresso”, “Paz e amor”…
Certamente, poderíamos ter tido outro país se, ao invés do lema positivista equivocado e constantemente fracassado, nossa bandeira trouxesse em seu centro a frase: “O Brazil é a terra de poetas”. Encampando esse “poeta analphabeto”, a revista assumia que, “sob o Cruzeiro do Sul”, somos, popular e fundamentalmente, um país tanto negro quanto indígena, escolhido pelos poetas gregos e romanos para, como dito, reencarnarem por aqui. Para nós, não é pouca a surpresa de, anos antes, inclusive, da Semana de Arte Moderna, ter sido possível imaginar ou, ao menos, induzir imaginações alheias à possibilidade de que os homeros, arquílocos, safos, sófocles, virgílios, horácios, lucrécios, catulos e tantos outros teriam de ser buscados aqui também em poetas indígenas e negros, como, então, entre outros, em Valério Corrêa, o “poeta analphabeto”.
Oscilando, ainda propositalmente, entre a seriedade e a ironia, o texto, em seu introito, apropria-se de críticos e poetas dos mais respeitados da época para traçar uma distinção entre “versejadores”, que “pululam” por todos os lados, e poetas, bem mais “raros”. Apesar disso, imediatamente, a matéria traz à tona o fato de que “são inúmeros os cultivadores da poesia no campo”, que “têm a inspiração fácil e curam todas as suas maguas cantando singelas quadras”. A introdução do texto termina com uma conclusão: “É essa a poesia sã”.
Imediatamente após a introdução, ressalta-se que a revista recebe com frequência, de seus “agentes no interior”, cartas que trazem versos de “‘tropeiros’ e outros matutos”, poemas “com uma beleza encantadora”, “muitos d’elles são perfeitos”. É nesse contexto que Valério Corrêa é introduzido, sendo chamado de “um poeta de verdade”, com “versos cantantes, melodiosos”, “pitorescos”, mostrando o valor do “cancioneiro”. A série de quadras de Valério Corrêa chegou à revista por uma carta, enviada à direção da revista em 18 de julho de 1913, por um certo Plinius, antecedidas por algumas notas biográficas.
Como o leitor verá, pela carta de Plinius, sabemos que o poeta é nascido na Bahia por entre 1846 e 1849, que, na data do envio dos poemas, ele vivia em Tietê há mais de 55 anos, contando então com algo em torno de 65 ou 68 anos, que se encontrava no momento muito doente e, por isso, andava “speenético e macambúzio”. Pelo texto, sabemos igualmente que Valério Corrêa é um poeta popular, amado por crianças e velhos, por brancos e pretos, sendo sempre muito afável com todos, com temperamento expansivo, com veia poética improvisadora, respondendo sempre em versos às perguntas que lhe faziam pelas ruas. Plinius já havia transcrito essas trovas do poeta para o papel, pois afirma em sua carta que, não fosse a doença do momento, pediria a Valério Corrêa para recitar muitas outras de suas trovas para igualmente transcrevê-las. Em anexo à carta, é colocado então o grupo de poemas intitulado “Trovas de Valerio Corrêa”. Das trovas, como habitualmente na cultura popular, é dito finalmente que elas são para “quebrar as tristezas e monotonias da vida”.
Por esse encontro que, a partir de Carlos de Assumpção, ora se dá entre Valério Corrêa, Carlos de Assumpção, Marcio Pereira e eu, deixamos aqui, mais uma vez na revista Cult, que vem prestando um serviço excepcional para a poesia, este texto, mas também o do professor da UNESP, uma entrevista que fiz no dia 24 de abril deste ano com Carlos de Assumpção sobre Valério Corrêa e as fotocópias de “O Poeta Analphabeto” com as trovas de Valério Corrêa tais quais publicadas, em fevereiro de 1914, na revista A leitura para todos. Com isso, espero tanto quebrar, ao menos um pouco, as muitas tristezas e monotonias da vida do Brasil de nosso tempo, ofertando-lhe uma saúde poética e política, quanto estimular leitores e pesquisadores a, através de Carlos de Assumpção, conhecerem o que restou impresso da poesia oral e popular de Valério Corrêa. E, como afirma o poeta na entrevista aqui presente, “não vamos deixar esse povo desaparecer, quem sabe, fazer caminhar mais um pouco na memória do tempo”.
Clique aqui para ver as páginas da revista Leitura para todos na íntegra.
Carlos de Assumpção e Valério Corrêa: uma herança da combatividade
Entrevista a Alberto Pucheu
Seu Carlos, como o Senhor conheceu a poesia de Valério Corrêa?
Eu conheci a poesia do Valério Corrêa através da minha mãe. Minha mãe lidava com poesia. Ela era presidente da Sociedade 13 de Maio de Tietê. Ela treinava os filhos dos associados em falar poesia, fazia rodinhas de poemas. Se falava muita poesia, principalmente, a poesia romântica, como Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves… De vez em quando, ela dava umas quadrinhas também. Havia um pastor protestante em Tietê que fazia umas quadrinhas referentes ao 13 de maio. Se comemorava muito o 13 de maio naquela época. O pessoal ouvia que o 13 de maio não valeu quase nada, não é? Ou nada. Alguma coisa valeu, sim. Então, ela reunia em casa filhos dos associados da Sociedade Beneficiente 13 de maio. Eu a ouvia ensinar poesia para os meninos e jovens que lá iam e comecei a criar gosto pela coisa também. Um dia, conversando com os meninos, ela falou de um poeta que, de repente, surgiu nas ruas Tietê, cercado de crianças, falando poesia. Era um poeta repentista, um poeta analfabeto, chamado Valério Corrêa. Ele surgiu de repente nas ruas de Tietê e viveu lá por muito tempo.
Minha mãe quando o conheceu era menina ainda. Inclusive, ele ia à casa do meu avô, do meu avô materno, porque eles eram amigos. O meu avô tinha muita amizade com ele. Ele gostava de tomar um “melzinho”, o meu avô também gostava de tomar um “traguinho”, então, ele passava pela casa do meu avô, batiam um papo, tomavam umas e outras, depois ele ia para as ruas de novo. Olha, nunca ouvi falar onde ele morasse em Tietê. Não me lembro da minha mãe ter falado de casa. Eu tenho a impressão de que ele morava na rua, mas devia de ter casa, não é? A impressão minha é que ele vivia sempre na rua. Sendo analfabeto, muita coisa dele se perdeu. Lá em Tietê, ficou no imaginário popular apenas uma quadrinha, que é assim:
Me chamo Valério Corrêa
Sobrenome de Garcia;
Na boca de quem não presta,
Valério não tem valia.
Em Tietê, ele era conhecido por essa quadrinha só. Falava-se também que houve uma pessoa de Tietê, um farmacêutico, que talvez gostasse demais dele, que fosse um fã dele, que anotou muitas quadrinhas dele. Mas o farmacêutico acabou falecendo e tudo isso se perdeu.
Nessa matéria da revista Leitura para Todos que o Marcio Pereira descobriu, é dito que quem enviou a carta com os poemas do Valério foi uma pessoa chamada Plinius. Eu suspeito que esse Plinius possa ser o farmacêutico de que o Senhor fala. O Senhor se lembra do nome do farmacêutico?
Não me lembro, nunca ouvi falar o nome do farmacêutico.
O Senhor tinha quantos anos quando sua mãe recitava e ensaiava esses poemas?
Uns 9 anos, mais ou menos. Acho que, na época que minha mãe conheceu o poeta, que tinha contato com ele, ela devia ter uns 10 anos, menina ainda. Ela, inclusive, costumava dizer pra gente que, criança, falava assim: “Ô, Valério, faz um versinho pra mim!”. E ele fazia na hora. O “versinho” queria dizer uma quadrinha, uma trova. Ele fazia na hora uma quadrinha. Pena não ter ficado nada, em Tietê não tem nada.
Agora o Marcio encontrou essas coisas. O Valério fez muito mais do que isso, mas algumas coisas, pelo menos, foram encontradas. O Senhor sabe que o Valério é nascido na Bahia?
Então, lá em Tietê se tem essa notícia, de que ele teria vindo da Bahia para lá. O motivo pelo qual ele foi para lá ninguém sabe. Nunca fiquei sabendo, tampouco, se ele era casado, solteiro, o que ele fazia além da poesia. Eu acredito que ele fazia só poesia. Outra coisa interessante é que ele teve uma vida mais ou menos atribulada lá, segundo o que minha mãe contava. Ela dizia que ele fazia crítica social nas quadrinhas dele. Criticava personalidades tieteenses, criticava autoridades, criticava juiz de direito, promotor, criticava a sociedade. Ele era amado por Tietê, o povo gostava demais dele. De vez em quando ele era preso. Às vezes, parecia que nem existia motivo. “Cadê Valério, que ninguém tem visto ele pelas ruas de Tietê?”. Estava preso. Aí, o povo fazia pressão e ele acabava saindo da cadeia, porque ele não havia feito nada senão críticas, e críticas às vezes incomodam as pessoas.
Eu me lembro que, quando eu era moço, nós conversávamos sobre ele com a boca cheia, com orgulho, com prazer mesmo de ter tido na cidade um poeta como aquele. Daí é que nasceu – eu acho – a minha vontade de ser poeta. Um dia, eu falei para minha mãe: “Mãe, eu acho que vou ser poeta, eu tenho vontade de ser poeta como o Valério Corrêa, para combater esse racismo, essa desigualdade que existe aqui nessa terra”. Minha mãe chorou. Sabe por que ela chorou? Ela estava acostumada a ver a história dos poetas românticos, que morriam cedo. Ela temia que, sendo poeta, eu logo iria embora. Eu já estou com 90 anos e ainda escrevendo alguma poesiazinha.
Tem uma marca muito grande do Valério Corrêa na sua poesia. Ao longo de toda sua obra, do primeiro livro até o último, o Senhor também fez muitas quadrinhas sociais.
É interessante. É também uma tradição portuguesa. Lá de Portugal, nós temos o Bocage, por exemplo, que gostava de fazer poesia picante. O Bocage tem uma quadrinha que fala assim [cita de cor]: “Mulher não guarda segredo/ Eu sei de uma que guardou./ Mal acabou de ouvir/ Veio um raio que a matou”. Hoje, não se pode falar assim com as mulheres, com o empoderamento das mulheres, é perigoso. Mas ele era um grande poeta, o Bocage. Eu acho que vem de lá e através de muitos poetas brasileiros analfabetos como o Valério Corrêa, que gostavam de fazer quadrinhas, que tinham facilidade em fazer quadrinhas, que achavam que a quadrinha era um instrumento de luta. As quadrinhas são importantes também porque hoje em dia as pessoas têm pressa, a gente tem de sintetizar a coisa. A quadrinha é breve, dá um soco só. Eu penso assim, para mim a poesia é luta, e acho que para o Valério também era assim. Eu devo ter herdado dele essa combatividade.
Ah!, houve uma ocasião, em São Paulo, em que eu estava desempregado e eu ia à Biblioteca Pública Mário de Andrade, na Avenida da Consolação. Lá, tinha um acervo de jornais antigos e eu pedia para ver os jornais da época de 14 de maio de 1888, para ver o que tinha acontecido com a libertação. Tinha muita coisa, tem um acervo riquíssimo, a Biblioteca Mário de Andrade.
Os poemas, as quadrinhas, do Valério Corrêa não saíam nos jornais da época de Tietê, saíam? Ele era mais um poeta das ruas, do povo…
Não, parecia que ele era evitado, a imprensa local não tinha muita vontade de publicar a produção dele. Durante muito tempo, ele era muito conhecido. Hoje não sei se tem alguém que ainda o conheça, mas sempre ouvi dizer que nós tínhamos tido em Tietê um grande poeta chamado Valério Corrêa.
No seu poema “Canção de amor”, o Senhor fala dos poetas de Tietê, das “vozes imortais” de sua terra. Em certo momento, o Senhor escreve: “Eu quero ouvir as vozes imortais de seus poetas,/ Valério, Cornélio Pires, Joaquim Cruz, Luís Martins, Aécio,/ Rossini, Euclides, Gomide, Josias, Fuzilo e outros mais./ Eu quero ouvir todas essas vozes imortais”… Tirando o Valério, esses poetas eram todos do cururu, ou não?
Esses poetas todos já faleceram, todos foram meus amigos, muitos deles foram meus amigos. Fuzilo foi o último deles. Não, nenhum deles era do Cururu. Eram poetas mais elitistas, vamos dizer assim, nenhum deles era poeta popular como o Valério Corrêa. Como o Valério Corrêa, eu conheci um Rosa, um cururueiro famoso. O cururu é uma coisa muito bonita que existe lá naquela região de Tietê, Piracicaba, Sorocaba, Capivari, Botucatu… Naquela região caipira ali, o cururu é que manda. É uma coisa linda. A gente passava a noite toda, a noite toda, ouvindo os cururueiros. Ali, no médio Tietê, tem muita coisa, a cultura é forte, nossa, negra, índia, branca, tudo misturado. Foi isso que me marcou muito, aqueles poetas regionais, pequenos poetas, tidos como pequenos poetas… Esses é com quem eu tinha mais comunhão, estava mais ligado a eles. Eles estavam ali perto de mim e falavam de coisas que eu também estava vivendo.
Como eu não conheci o Valério, eu não sei se ele tinha ligação com o cururu. Quando eu nasci, o Valério não existia mais. Tirando o Valério, alguns desses poetas de quem eu falei no “Canção de amor” publicavam nos jornais, nos jornaizinhos. Nós tínhamos dois pequenos jornais, pequena imprensa, que publicavam esses poetas. O Joaquim Cruz era professor primário, de português. Uma pessoa que marcou minha vida. Antigamente, a gente para ingressar no ginásio era preciso prestar um exame de admissão. Eu não tinha condição de fazer esse curso. O Joaquim Cruz, conversando com a minha professora Albertina Audi, perguntou se ela tinha algum aluno promissor, algum aluno que ela esperasse que pudesse ser alguma coisa no futuro. A minha mãe não tinha dinheiro para pagar um curso, mas deu um jeito.
Tirando o Valério, aqueles poetas todos do “Canção de amor” eram brancos. Negro, era só eu. Alguns anos atrás, o Fuzilo, que gostava muito de mim e trabalhava na FM em Tietê, me chamou para falar uns poemas na estação de rádio. Eu fui e falei o poema “Canção de amor”. Ah, a família do Joaquim Cruz telefonou para a estação, querendo me parabenizar e me agradecer por eu ter lembrado do poeta. Nossa Senhora, como não me lembrar dele, um homem que foi maravilhoso comigo.
É muito bonito o poema, uma grande homenagem à cidade de Tietê e a seus poetas.
A intenção foi essa mesma. Eu pensava assim: não vamos deixar esse povo desaparecer, quem sabe, fazer caminhar mais um pouco na memória do tempo.
O Senhor está sendo responsável para a gente guardar a memória do Valério Corrêa. O Senhor deve ser hoje o único vínculo para que a gente possa guardar essa memória. O Senhor acabou ganhando uma visibilidade muito grande, nacional, então, é muito importante que o Senhor possa trazer essa luz ao Valério Corrêa e a esses outros poetas que foram tão importantes para sua vida. É bonito isso: o Valério foi importantíssimo para o Senhor quando o Senhor era menino e, agora, o Senhor, já idoso, está mostrando a importância do Valério Corrêa.
Que coisa, né?! Eu acredito que sim. A intenção é essa mesma. Ele é que me encaminhou na vida para escrever poemas de combate ao racismo que existe nessa terra e que muita gente não quer ver. É como malhar a cabeça na parede, porque dizem que aqui não existe racismo, e a gente sofrendo a coisa na pele.
Isso com o Valério Corrêa vai ser muito bonito, muito bom para Tietê e muito bom para a poesia, para a poesia interiorana, para mostrar que a poesia tem força, que a poesia não morre fácil, não, não desaparece fácil como fumaça, não. Isso vai ser uma coisa boa, isso vai ser muito útil, vamos pôr a palavra útil, isso vai ser muito útil para nós todos.
E, em um país como o Brasil, que tem uma memória tão curta, que deixa no esquecimento muita coisa importante, sobretudo as tradições orais, não escritas, as tradições negras, indígenas, que não guarda a memória da ditadura, um país que tem uma memória muito precária.
Nós lembramos mais de coisas lá de fora do que aqui de dentro. Uma coisa horrível. Parece que nós não gostamos de nós mesmos. Eu penso que a gente não se aceita, que a gente é complexado, um complexo nacional. Muitas vezes, a gente acha que lá fora é muito mais bonito, e muitas vezes a gente também acha que aqui é mais bonito e que é maior que todo mundo. Mas, no fundinho, acho que nós não nos aceitamos ainda. No dia em que nós nos aceitarmos, nós vamos desabrochar. A minha política… a minha poesia… poesia e política para mim parece que estão sempre juntas, está vendo? A minha maneira de fazer minha poesiazinha é política, para nós conhecermos nós mesmos, buscarmos nossas coisas, trazermos nossas coisas à tona, nos orgulharmos do que é nosso. O Brasil está precisando despertar. Parece que tem urgência.
Valério Corrêa e Carlos Assumpção: cacos a iluminar uma história desconhecida
Marcio Roberto Pereira
Assim é a vida, assim é a literatura, assim é a arte: cacos. Partes que se complementam. Alguns fragmentos se perdem, precisando, entretanto, apenas de tempo e curiosidade para serem vistos. Para certos artistas, um verso, uma trova ou um poema contribui para iluminar um pouco mais a vida.
Foi na busca por uma informação sobre José Veríssimo, crítico paraense que publicara uma História da literatura brasileira em 1916, que me deparei com uma foto de “um poeta analphabeto”, chamado Valério Corrêa, e com poemas dele enviados por um leitor à revista Leitura para todos, destinada a “informar, instruir e deleitar a todo mundo, ocupando-se de tudo que a todos interessa”.
Publicado entre os anos de 1905 e 1930, no Rio de Janeiro, o periódico Leitura para todos: magazine mensal ilustrado foi distribuído mensalmente pela empresa “O malho”, proprietária de diversas revistas como a Tico-tico (1905-1977), a Para todos (1918-1926), a Ilustração brasileira (1901-1958) e a Cinearte (1926-1942). Começava-se a transição de revistas “para serem lidas” em direção àquelas que deveriam “ser vistas”. O periódico teve duas fases: a primeira, de 1905 até 1915, e a segunda, que começou em 1919, não circulou em 1927, e terminou em 1930.
As diretrizes da revista eram: “Rapidez na divulgação, imparcialidade na escolha dos assuntos, grande difusão – trabalhando sempre para a unanimidade do público brasileiro –, facilidade na exposição – tratando os assuntos de modo a serem prontamente compreendidos sem nenhum esforço especial enriquecendo o texto com uma profusão de desenhos e fotografias, que mostrem os fatos e expliquem as coisas, antes mesmo de lida a prosa fácil e leve que os acompanha.”
No primeiro número do almanaque, que se iniciava em novembro de 1905, existia uma grande euforia com um Brasil que se modernizava por meio da fotografia, da moda, de um novo esporte chamado futebol, de um parque gráfico mais atual, da tecnologia e de muita esperança em um país do futuro.
O periódico, com 140 páginas, já na sua estreia, configura-se como um grande almanaque que dará dicas de como fazer uma boa fotografia, quais suas fórmulas e formas de revelação, passando por tendências de comportamento (como montar um aparelho automático para deixar o ambiente com ar de tabaco e, assim, aliviar o trabalho do fumante) e chegando a destacar fatos curiosos como a descoberta de uma máquina que mede a “intensidade e duração de um beijo”. Há ainda espaço para o folhetim “O laço azul”, novela romântica de Julia Lopes de Almeida, e a curiosa história, publicada nas “Notas e curiosidades”, de “João Caetano – o Africano com 135 anos.”
É no número 108, de fevereiro de 1914, da Leitura para todos que aparece a reportagem sobre o poeta Valério Corrêa. Quem seria esse poeta? A única informação que consegui apareceu numa entrevista de Carlos de Assumpção para o pesquisador e poeta Alberto Pucheu, publicada na revista Cult de março de 2020, dizendo que sobrara apenas uma quadrinha de Valério. “Era um poeta repentista, que andava pela cidade. De vez em quando era preso, porque fazia crítica ao poder. Prendiam-no então por vadiagem. Antigamente, quando queriam prender, eles prendiam por vadiagem.”
Verifiquei ainda que havia um filme chamado “Carlos de Assumpção: Protesto”, dirigido por Alberto Pucheu. A força do poeta, o som de seus poemas, o esclarecimento, do ponto de vista filosófico e combatente, tudo convida o leitor ou o espectador a participar desse canto para tecer o amanhã. Era a poesia de Valério Corrêa, poeta cuja obra completa que chegara até nós era formada por algumas trovas que, por sorte, foram transcritas, refletindo seu brilho. Entre elas, esta: “Tanto verso que eu sabia,/ Veio o tempo e carregou;/ Só o amar e querer bem/ Na memória ficou.”
A partir desse material que estava na Leitura para todos, entrei em contato com Alberto Pucheu, que prontamente começou a juntar os pedaços de informações que tínhamos: a carta de Plinius, o retrato do poeta feito pelo Sr. Liborio Guarnieri e as memórias de Carlos de Assumpção. Agora, a Cult traz à luz esse inédito material, cacos reunidos que passam a iluminar ainda mais uma de tantas faces da nossa rica Literatura Brasileira.