Universos mínimos

Universos mínimos

Jo Takahashi

Estátua de Matsuo Bashô em Iwate, no Japão

O que pode caber num poema de apenas 17 sílabas, conciso como uma pedra e leve como uma pluma? Um pouco mais do que o universo, diriam os antigos poetas japoneses do século 13 que praticavam o haiku, este poema que inundou o mundo ocidental e ficou mais conhecido como haikai, e no Brasil, aportuguesado, virou haicai. A rigorosa métrica de 5-7-5 sílabas, que encanta também por sua sonoridade, foi herdada de outra forma poética mais ancestral, o waka, um pouco mais longa é verdade, mas mesmo assim de apenas 31 sílabas, igualmente compacta e até musical, daí se dizer que os poetas japoneses  “cantavam seus poemas”.

A obra magistral do waka reúne mais de quatro mil poemas escritos entre os séculos 7 e 8 e compilados sob o título Man’yôshu: miríades em folhas. Man’yôshu, além de ser a mais antiga antologia poética publicada no Japão, é certamente um primoroso exemplo de uma obra democrática, que reuniu poemas escritos não só por representantes da alta nobreza, entre eles até imperadores e imperatrizes, como também por  soldados, agricultores e, obviamente, poetas, e também anônimos, homens e mulheres que entendiam que o processo criativo sempre passava por uma interpretação das transformações do mundo. Folhas, no caso do título da antologia, teria um significado intrínseco que vai de palavras (e daí por extensão, poemas) a eras, ou épocas. Tão vago e amplo quanto sugestivo em sua forma aberta de significação. No esforço ainda maior de extrair um extrato da concisão essencial, deu-se autonomia à parte superior do waka, composta de versos de 5-7-5 sílabas, e foi criado o mais curto poema canônico do mundo, o haiku, uma maneira de poetar sem rimas, sem título, para falar da transformação das estações e, por que não, daí, sobre o universo em mutação, em absolutas e integrais 17 sílabas.

Um exercício de compactação semântica? Contorcionismo retórico? Muito antes de o arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe1 declarar a máxima: “o menos é o mais”, os poetas japoneses se alinhavam no eixo da própria estética japonesa para criar esse extrato da síntese. Desse mesmo eixo nasceu, entre tantas outras manifestações artísticas, o jardim japonês, um simulacro miniaturizado do mundo, ou até, se quiserem, de uma utopia reconstituída. Sim, podem brincar: desse mesmo pendor pela compactação teriam nascido os rádios transístores e o walkman.

Bruno Taut2, arquiteto alemão que se refugiou no Japão na década de 40 fugindo do nazismo, identificou nas linhas da Villa Imperial de Katsura, na cidade de Kyoto, antiga capital japonesa, a gênese da estética modernista, representada pela síntese das formas e a modulação dos espaços. Nos poemas haiku, eles podem ser traduzidos pela economia de palavras e pelo rigor à sua métrica. Mas essa constatação vai além dos preceitos da plástica puramente formal. Nos jardins da Villa Imperial de Katsura, um outro elemento fundamental do paisagismo japonês se baseava na interatividade entre o espectador e a paisagem criada. Passear pelas trilhas de pedras sobre as águas do lago era mais do que um exercício cinestésico. O reflexo do espectador na água fundia-se com o cromatismo das folhas e flores e, em noites de lua cheia, com uma virtualidade celestial.
Ou seja, a obra em si, seja ela um jardim, seja ela um poema, só se completaria com a participação do espectador/leitor e somente através dela teria o seu universo semântico desenhado por completo. A obra criativa, no Japão, é gestada para ser propositalmente incompleta e imperfeita, ao contrário de todos os dogmas clássicos da arte ocidental.

Na cerimônia do chá, o chanoyu3, por exemplo, servir e tomar o chá transformam-se em ato. Ato estético: sorver não o líquido apenas, mas, junto, a essência de uma cultura que preservou elementos não visualizados por uma ótica do lógico ou verbalizados por um discurso dialético. Ato processo: porque a interação é convergente: dentro e fora se confundem, as fronteiras desaparecem. Do ato de perceber o espaço, o recinto, as dimensões físicas do estar. E do ato de sentir, na palma da mão, a aspereza da cerâmica da tigela retorcida – estudada imperfeição! – onde é servido o chá. Apreciar o arranjo mínimo da flor na alcova. E projetar-se ao jardim, que se insinua paisagem do universo. E o próprio jardim se projetando, como um simulacro do paraíso.

Gozo de uma atmosfera profunda. Porque a contemplação em si passa a ser meta e não processo. Refinado despojamento. Porque compreender a imperfeição como um estado de arte é materializar a humildade. E abreviar: o elogio ao mínimo é no mínimo atingir o extrato das coisas.

A forma é assim o projeto materializado do mínimo. Rigor é uma decorrência dessa austeridade. O rigor da forma: na estética cinematográfica de Ozu4, na concepção do espaço tradicional, no gesto contido do teatro Nô, na seqüência calculada da cerimônia do chá.

A estética japonesa não é mística – ao contrário das crenças mais comuns, baseadas talvez na idéia de que a arte japonesa esteja intrinsecamente ligada ao zen-budismo –, porque ela se insere e se integra no cotidiano: da cultura popular às artes mais refinadas, um eixo percorre as formas, as cores, os espaços, as regras ou, como se queira, os caminhos. Caminhos que nos levam às dimensões ocultas, porque o ocultamento (e não o ocultismo), nesse caso, nada mais é do que uma estratégia estética. Ocultar o óbvio. Opção pela sugestão das referências insinuantes, onde a metáfora se incumbe de rascunhar a dinâmica das idéias sem porém concluí-las, elaborando sugestões e analogias ou enaltecendo ambigüidades; enfim, patrocinando uma oportunidade para o leitor fruir pela obra e  construir uma imagem. Esse aspecto, em particular, remete-nos ao cineasta russo Sergei Eisenstein, que escreveu numa anotação datada de 1935: “O discurso interior está exatamente no estágio da estrutura sensorial da imagem, não tendo ainda atingido a formulação lógica com a qual o discurso se reveste antes de sair para o mundo”.

No haiku, a ausência de título prenuncia o despojamento do discurso, fazendo prever o tamanho da abertura que se propõe ao leitor. Num exemplo de Matsuo Basho, o maior poeta de haiku, ao lamentar a morte de seu colega, também poeta, Sengin, em 1666:

samazama no
koto omoidasu
sakura kana

quantas memórias
me trazem à mente
cerejeiras em flor

O haiku chegou ao Brasil, com conexões pela França, introduzido por Afrânio Peixoto em 1919. As sucessivas traduções, além de subtraírem as metáforas mais soberbas da elegância do não-falar e a melancolia do vazio, acrescentaram um discurso que não seria pertinente ao bom haiku. Assim, vemos em exemplos de Guilherme de Almeida poemetos com nítida inspiração nos haiku, mas a própria inclusão de títulos canaliza o olhar, induzem a mensagem para aquilo que o autor gostaria de comentar:

INFÂNCIA

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: “Agora.”

Há, porém, bons exemplos de tradução dos haiku, de Olga Savary, Paulo Leminsky e Alberto Marsicano. Deste último, uma descoberta, que sintoniza Basho a Guimarães Rosa, em Sagarana:

Velho lago
Mergulha a rã
Fragor d’água

Basho

Tatalou e caiu
Com onda espirralada
Fragor de entrudo

Guimarães Rosa

O poema da rã é a obra mais conhecida de Basho. A contemplação de um entardecer à beira de uma lagoa tranqüila, o súbito salto de uma rã rompendo a superfície estática da água, um instantâneo fotográfico, um fotofragmento da natureza, como diria talvez Eisenstein, um clipe de imagens magnificamente registrado em som e movimento. Além da tradução acima, de Marsicano, outras que merecem destaque:

No velho tanque
uma rã salta-mergulha
ruído na água

Casimiro de Brito

O velho tanque
rã salt
tomba
rumor de água

Haroldo de Campos

Haroldo de Campos, em sua costumeira ‘transcriação’, verte este poema numa colaboração gráfica com Júlio Plaza, onde o til de ‘rã’ faz eco no acento agudo de ‘água’, que se transforma num respingo, incorporando assim a sensação de movimento característico do desenho animado.

A concisão da forma leva a um suposto estado primitivo da linguagem, que pode até parecer anterior ao estado babélico da comunicação. O haiku, como poema integral, representa o estado embrionário do signo, que antecede a relação significado e significante e rebate antes que aconteça o conclusivo, por meio da tática do contemplativismo. Nesse estado de síntese, as palavras se desnudam do discursivo, deixam de ser estratégias de canalização de idéias referenciais e voltam-se aos sentidos, único elo possível de ligação entre a mente e a plenitude do universo. Essa integração entre o autor, a obra e o espectador/fruidor foi também enfatizada pelo cineasta russo Sergei Eisenstein, quando fala da “obra de arte orgânica”.

No haiku, o processo de construção da imagem, e do significante, provém certamente da estrutura composicional e ancestral do ideograma, fruto de uma coalizão de signos autônomos, capazes de gerar um novo conceito, “uma montagem de hieróglifos”, no entender de Eisenstein. Esta lógica da construção o aproxima daquilo que o mesmo Eisenstein classificava como “montagem intelectual” (in O princípio cinematográfico e o ideograma, 1929) no cinema, onde metáforas justapostas e encadeadas criam metonímias, que por fim produzem o sentido das coisas. O leitor ou o espectador, em suas respectivas funções no poema e no cinema, teriam como função interagir para criar uma montagem intelectual a partir das sugestões metafóricas. Ernest Fenollosa, orientalista norte-americano do início do século 20, chamaria esse processo de “método ideogrâmico de compor”, sistemática adotada muitas vezes por Haroldo de Campos ao decifrar e reconstruir o universo dos poemas japoneses e também na transcriação da obra do teatro Nô, Hagoromo: O manto de plumas.

Decifrar a  trajetória sígnica do haiku, do lacônico ao referencial metáfora-metonímia, foi um exercício interativo que mobilizou os poetas brasileiros de 1922, sintonizados com as tendências da arte modernista que imigrava via Europa. Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira e Luís Aranha, entre tantos outros, metabolizaram e tentaram aclimatar o haicai então recém-introduzido no Brasil, três anos antes de a Semana da Arte Moderna eclodir, por Afrânio Peixoto. Revisto hoje, ao que nos parece, o haiku ainda exerce um fascínio pela preservação de uma integridade dos mínimos, contrapondo-se até por resistência ao universo onde derivações, hibridismos e intermediações se tornaram tão corriqueiras que qualquer labirinto pode levar a simplesmente nada e qualquer brecha revela nada mais do que o óbvio.

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Notas

1 LUDWIG MIES VAN DER ROHE (1886 – 1969), arquiteto alemão, um dos pilares da Escola Bauhaus (1919 – 1933), que se instalou inicialmente em Weimar e terminou em Berlim. A escola Bauhaus foi mais do que um núcleo de estudos em design, arquitetura e artes plásticas. Por seu caráter revolucionário, foi perseguida pelo nazismo, que acreditava estar escondida aí uma “chocadeira do bolchevismo cultural”.

2 BRUNO TAUT (1880 – 1938), arquiteto alemão, fugiu do nazismo instaurado no início da década de 1930. Taut havia participado de um projeto arquitetônico encomendado pela União Soviética, razão pela qual o governo nazista teria iniciado buscas para detê-lo. Partindo de Berlim, chegou a Kyoto em 1933 e foi recebido por seu colega Ueno Isaburo, membro da Associação Internacional de Arquitetos do Japão. Dois dias após sua chegada, Taut é conduzido à Villa Imperial de Katsura, na época já designada para tombamento como Patrimônio Histórico, sem porém ter atingido o status de Tesouro Nacional. Katsura, cuja construção original foi concluída provavelmente em 1615, é considerada uma referência tanto no estilo clássico de sua arquitetura como no elegante paisagismo que sintetiza a estética paisagística do Japão do século 17, mas não era objeto de estudo no exterior. Coube a Taut a tarefa de divulgar ao Ocidente a coincidência dos princípios que nortearam a criação da estética da escola modernista, perpetuados num monumento erigido há mais de dois séculos, comparando-o ao Parthenon.

3 O chá, utilizado originalmente para manter os monges acordados durante as intermináveis meditações, serviu de pretexto para um ritual objetivando o alcance da paz através de uma tigela de chá. O monge Sen-no-Rikyu (1522 – 1591) criou a configuração definitiva para esse ritual, aplicando a filosofia zen de desprendimento, simplicidade e a extirpação de tudo o que é supérfluo para se atingir a síntese do mínimo.

4 YASUJIRO OZU (1903 – 1963), um dos mais importantes cineastas do Japão, dirigiu 53 filmes onde descreve a metamorfose da vida da classe média japonesa e seu processo de ocidentalização. Seu cinema é reconhecido mundialmente pelo seu estilo conciso e sóbrio, como um haiku, sem usar os artifícios da hipérbole de fusões ou de elipses marcadas e mesmo da dramatização dos gestos, para ser gestado pelo princípio da naturalidade. Um de seus filmes mais famosos,
Era uma vez em Tóquio (Tokyo Monogatari), 1953, foi relido por Wim Wenders, em Tokyo-Ga (1985).

Jo Takahashi
é diretor de projetos culturais da Fundação Japão

(1) Comentário

  1. Meu avô escrevia poesias sen-rio. O nome dêle era Gonzo Ishiyama, conhecido no meio literário nipônico como Ishiyama Hakutô, ou seja “cabeça branca” . Esse gênero literário talvez em extinção, foi apreciado por uma elite que se deleitavam na arte sen-rio. Pouco ou quase nada conheço, e, se alguém aprecia ou conhece esse gênero, favor entrar em contato comigo.

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