Universalismo e fragmentação

Universalismo e fragmentação
(Foto: Jorge Araujo/Fotospublicas)

 

Somos tão fraquinhos e contraditórios, não íntegros e disponíveis pra tanta coisa. Falamos mal do capitalismo iluminista, de razão instrumental, ocidental. Sabemos, de algum modo que não queremos bem saber como, que ele destrói o mundo, submete as vidas, regula a exclusão e a pobreza, projeta golpes periféricos de acumulação primitiva global e, com imensa facilidade, converte-se em fascismo, convocando massas que, ao se tornarem  assim, melhor assaltam a vida do trabalho e justificam o crime de Estado contra os excluídos que produz.

Mas não queremos considerar a hiperprodutividade geral, com a qual contamos todos os dias. Não reconhecemos mais no capitalismo do terror e da extinção global as projeções não realizadas de igualdade, de justiça e de racionalidade pacífica universal, que o próprio capitalismo deformou em perversão particular e industrial, e que troca por aceitação das coisas e fetichismo onde quer que esteja.

No entanto, foi o mesmo mundo moderno, cindido entre paz coletiva e guerra privada, o único que inventou tais horizontes de afetos políticos, que não entregou, por luta de classes vencidas e fixadas por uma, a ideia de justiça como a plena e simples igualdade de condições civis e econômicas dos homens, destruindo e deformando tal ideia.

Não há ideia de mundo que supere violência social e medo mítico simultaneamente, em outras perspectivas de cultura, não modernas. Mas queremos a salvação justa dos grupos identitários de mercado, ou o sonho de uma Gaia neoindia, de equilíbrio ecológico e multiplicidades míticas – esquecendo-nos sempre que há muito medo na vida, e sempre houve guerra e muita morte nos mundos que não puseram a fantasia da universalidade igualitária de razão em seu foco.

Mundos não ocidentais tinham função social da guerra, do terror, como se sabe. Daí somos anticapitalistas identitários de mercado – raciais, de gênero ou de sexo -, parciais na inscrição de nosso próprio desejo, o nosso corpo, na ordem do outro. Na melhor das hipóteses, liberais e ponto, mas sempre sem o sabê-lo. E somos anticapitalistas antineoliberais e antiocidentais ao mesmo tempo. Mas não somos socialistas, evidentemente, porque gostamos  da vida de mercado e de consumo, gerida pelo próprio capital global. O mesmo que destrói o mundo, numa boa, e preferimos um objeto de luxo lixo qualquer à lógica da identificação com os arruinados do trabalho: os condenados do desemprego, desalentados da hiperexploração e do Uber – brancos, negros, héteros, cis ou gays -, que entregamos à administração, orientados a viver sua miséria pela Jovem Pan, pela novela de televisão, pelo Instagram, pelo domingo na praça de alimentação do shopping e pela igreja evangélica da esquina.

Nosso mesmo sistema mundo do consumo, que é reprodução do Capital global. Daí somos anticapitalistas identitários de mercado e de consumo – nossa diferença dos neofascistas é que eles são pró-capitalistas identitários de consumo, um outro grupo qualquer de identidade, em meio à mesma vida – e criticamos o mundo do terror universal da gestão de vida, enquanto o usufruímos satisfeitos e lutamos para sermos gays com direito ao casamento na igreja, ou trans com direito a entrar no banheiro do sexo escolhido no restaurante, enquanto não temos nenhuma política, nenhuma solidariedade, pelos violentados mundiais do trabalho, nós mesmos.

Daí somos antiocidentais identitários neogaios. Porém,  quando um grupo fundamentalista, identitário, mítico-religioso, não democrático, que desconsidera valores universais de igualdade e de justiça, de gênero e sexo (e de acesso e direito à crítica da violência, da exploração e da destruição do outro e da natureza), não metafísico iluminista, chega ao poder, todos nos compungimos e ficamos aterrorizados porque os valores de igualdade civil e os direitos das mulheres – construídos apenas na lógica da razão universalista do Ocidente, e em nenhum outro lugar que se saiba, não realizados pela prevalência da forma capital na vida, mas que nos orienta em nossos desejos de reconhecimento e poder – não existem de nenhum modo por lá.

Nos identificamos com as mulheres violentamente perseguidas pelo Talibã, e não com os 25 milhões de desempregados e desalentados de nosso mundo de conforto industrial e de consumo. Daí atacamos o fundamento metafísico da razão emancipadora entre nós, mas não o Capital que a negou, e que usamos bem como dóceis sujeitos do consumo mundial.

Não nos interessamos pelo destino degradado dos trabalhadores na sociedade de classes. Reclamamos do Ocidente “falso” na sua universalidade, e quando em um país complexo os Estados Unidos são expulsos por um grupo fundamentalista religioso, machista, criminoso e autoritário, reclamamos da falta de perspectiva de direitos civis democráticos e de igualdade entre homens e mulheres.

Os mesmos que o capitalismo imperialista norte-americano sustenta e que o legitimam como força ideológica. Os mesmos direitos universais que apenas a história da ética própria à razão ocidental colocou como problema – no plano não realizado da filosofia – e que o poder, não universal, mas efetivo do Capital, sua razão prática da violência, não deixou que se realizassem. Ao mesmo tempo que somos felizes amantes da forma mercadoria de todos os dias, o nosso mundo e seus prazeres, sem dúvida, queremos o fim do Capitalismo. Quem sou eu?

 

Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


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