Umberto Eco, um homem dos livros

Umberto Eco, um homem dos livros
Umberto Eco: Apesar do carrossel de atividades, Eco é, indiscutivelmente, um homem dos livros (Foto: Divulgação)

Umberto Eco percorre, com naturalidade, a semiótica, a estética, a linguística, a história da literatura e a cultura de massas. Seu pensamento mora em algum lugar entre São Tomás de Aquino e Pierce; Abelardo e Karl Popper. Salta do texto à imagem; da Idade Média às redes informáticas. Se cai nos abismos da controvérsia, sabe como sair deles. Autor de cinco romances, ganhou fama mundial ao publicar, em 1980, O nome da rosa, thriller com páginas inteiras em latim, reflexões sobre a escolástica e a lógica e uma imersão na atmosfera monástica do medievo europeu.

Hoje, aos 77 anos, o intelectual italiano afirma que fica entediado se não faz muitas coisas ao mesmo tempo. Tradutor de textos ingleses e franceses do século 19, é autor de mais de 200 prefácios e um notório especialista em James Joyce (“Economizar em cima de Joyce” é um dos principais ensaios de seu livro Os limites da interpretação). Atualmente assina a curadoria de um projeto artístico no Museu do Louvre, em Paris, juntando arte, história e música. A programação inclui um olhar “contemporâneo” sobre as coleções clássicas do museu e uma série de espetáculos que dialogam com seu trabalho.

Graças ao convite, Eco passa os meses de novembro e dezembro na capital francesa, onde presidiu um colóquio sobre a vanguarda italiana dos anos 1960 – afinal, foi baseado no contato com artistas como Lucio Fontana, Alberto Burri e Piero Manzoni que elaborou o conceito de “obra aberta” (1962), seu modelo teórico para explicar a arte contemporânea. Convidou o compositor e DJ francês Laurent Garnier para o encerramento do evento, no dia 13 de dezembro, num concerto-projeção que pretende misturar John Lee Hooker, Charles Trenet, música eletrônica e música concreta. Finalmente, lotou a livraria do museu nas duas sessões de autógrafos de seu novo livro, Vertige de la Liste, que percorre a história da arte e da literatura com base na ideia da lista, da enumeração.

Da Wikipédia a Berlusconi

Nascido em Alexandria – não a do Egito, fundada em homenagem a Alexandre, o Grande, mas a do Piemonte, às margens do Rio Pó, fundada em homenagem ao papa Alexandre III –, Eco passou boa parte de sua vida na Universidade de Bolonha, a mais antiga da Europa, fundada em 1088. Titular e professor de honra da cadeira de semiótica (aposentado), é hoje diretor da Escola de Ciências Humanas da mesma universidade. Ensinou temporariamente em Yale, na Universidade Columbia, em Harvard e no Collège de France. Sua vida desenvolve-se, então, numa alternância constante entre as atividades na academia, a carreira literária e a imprensa – é colunista da revista semanal italiana L’Espresso, na qual escreve, entre uma infinidade de temas, sobre Berlusconi e Wikipédia. A Wikipédia ele aprova com ressalvas e garante que corrige, pessoalmente, as imperfeições que encontra no verbete a seu respeito. “A Wikipédia confirma as teorias do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, de uma comunidade (científica) que através de um tipo de homeostase elimina os erros e legitima novas descobertas, continuando assim a carregar o que ele chamou de tocha da verdade (…) Quando eu uso a Wikipédia, emprego as técnicas utilizadas pelos acadêmicos profissionais: leio sobre um determinado tópico e depois comparo a informação com material encontrado em três ou quatro outros sites.” Quanto a Berlusconi, ele reprova, também com ressalvas: “O problema da Itália não é Berlusconi, são os italianos como um todo”, escreveu o escritor num artigo recente em que convidava a intelectualidade italiana a se posicionar.

“Em 1931, o fascismo impôs aos professores universitários – 1.200 na época – um juramento de fidelidade ao regime. Apenas 12 recusaram e perderam seus empregos. Talvez os 1.188 que ficaram tivessem razões nobres. Mas os 12 que disseram não salvaram a honra da universidade e, definitivamente, a honra do país.”

Eco diz ter conhecido Berlusconi no tempo em que este era ainda um homem jovem que fazia negócios no setor da construção, mas que cogitava passar às mídias de massa e, para sondar o terreno, marcou um almoço com intelectuais. O escritor esteve presente junto com um amigo. “Encontramos este tipo que não diz praticamente nada na mesa, a não ser algumas pequenas besteiras. Partimos com o pretexto de que já era tarde. Na escada, disse a meu amigo: ‘Que imbecil que nos fizeram encontrar…’ E foi assim que perdi a chance de tornar-me o número 2 da Itália.” (A propósito, o italiano é o “número 2” na eleição da revista norte-americana Prospect em torno do maior intelectual vivo do mundo, atrás de Noam Chomsky).

Paixão pelos livros

Independentemente dos números, Umberto Eco é um homem que circula. Dizem as más línguas que tirou a barba para poder passear com mais tranquilidade na última Feira de Frankfurt. Residente em Milão, passa de três a quatro dias por semana em Bolonha, onde é uma espécie de mito – quase todas as vitrines ostentam seus títulos, como uma mãe orgulhosa do filho pródigo. Os moradores da cidade garantem que ele praticamente não sai da universidade, mas de vez em quando é visto comendo pizza cercado por seus estudantes em alguma trattoria barata do centro. A maior parte das antigas livrarias de que gostava foi substituída pela megastore da rede Feltrinelli, que ocupa o número 1 da Piazza di Porta Ravegnana. Ele lamenta e não lamenta: “As velhas livrarias tinham livreiros sábios, que davam bons conselhos, mas havia certo ar de sobriedade que intimidava os leitores iniciantes. Atualmente, vejo a juventude mais à vontade ao folhear os livros dentro destes prédios de oito andares”.

Pois que, à parte toda a circulação e apesar do carrossel de atividades, Eco é, indiscutivelmente, um homem dos livros – do recolhimento, portanto. A quase totalidade de seus escritos romanescos ou teóricos fala de livros, sobre livros ou sobre bibliotecas. Bibliófilo inveterado, tem em sua estante 1.200 obras raras. É dessa dialética da reclusão e da circulação que nasce sua figura.

Junto com o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, lançou no ano passado N’Espérez pas vous Débarrasser des Livres (“Não Espere se Livrar dos Livros”, publicado em Portugal com o título A Obsessão do Fogo e ainda inédito no Brasil), uma conversa dos dois mediada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonac. Ali, insiste no ponto que defende desde o começo das mídias eletrônicas: o livro como objeto não vai desaparecer, é insuperável, tal qual a roda ou o martelo:

“Você pode levá-lo para sua banheira sem ter medo de morrer eletrocutado; pode ler numa ilha deserta, enquanto o pobre Robinson Crusoé não saberia o que fazer com as baterias descarregadas de um e-book. Este livro em papel sobrevive mesmo que o deixemos cair do 5º andar de um prédio, mas tente fazer o mesmo com um livro eletrônico!”

Ordem da multiplicidade

La Vertige de la Liste (Vertigine della Lista, no original em italiano) é um ensaio inteiramente construído em torno de listas, catálogos, relações, enumerações. Ao longo de exemplos visuais e literários, Umberto Eco propõe-se a dissecar o uso dessa espécie particular de representação e analisar as diferentes formas de listagem criadas ao longo dos séculos. Recém-publicado na França, o livro estrutura-se com base na ideia de enumeração como recurso recorrente na história do registro verbal e visual, por ser hábito próprio da mente humana e ferramenta de compreensão.

Na Europa, o volume foi publicado nos mesmos parâmetros editoriais que História da Beleza (2004) e História da Feiúra (2007), como se formassem uma trilogia sobre história da arte. Fartamente ilustrados, seduzem pelo caráter visual, mas deixam frustrados dois tipos de leitores: aqueles que esperavam do autor um novo trabalho de semiótica ou filosofia da linguagem e aqueles, em maior número, que aguardavam ansiosamente um novo romance labiríntico – o último foi A Misteriosa Chama da Rainha Loana, em 2004.

Neste Vertige de la Liste, o argumento desenvolve-se com base em uma separação fundamental aos olhos do autor: uma divisão entre listagens “finitas” (como a lista de convidados de um jantar ou a dos mandamentos) e um segundo tipo, criado apenas para dar a dimensão do incomensurável ou mesmo do infinito. Enquanto o primeiro grupo nasce da necessidade de enumerar as partes de um todo, o segundo surge, ao contrário, porque o todo é extenso demais para ser enunciado/representado, mas pode ser “entrevisto”. É por essa segunda espécie que Eco se interessa especialmente, estabelecendo em torno dela o que define como uma “poética do et cætera”.

Para ilustrar seus propósitos, o volume abre um leque bastante amplo de exemplos. Começando com uma enumeração da Ilíada (a lista de navios feita por Homero para tentar descrever a imensidão do exército grego), o autor percorre 75 trechos literários de diferentes épocas: de Dante a Calvino, de Rabelais a Rimbaud. Está lá, por exemplo, o desfile de diferentes tipos humanos criado por Edgar Allan Poe para descrever a metrópole moderna em seu “O Homem da Multidão”. Está lá, também, uma série de textos medievais, grande especialidade do autor.

Ritmo e redundância

“Existem listas, por exemplo, em que, menos que o conteúdo ou os elementos citados, importa mais o ritmo ou a redundância. L’enumeratio é uma forma recorrente na literatura medieval, mesmo quando os termos da lista não parecem coerentes, pois trata-se de definir as propriedades de Deus, que, por definição, não podem ser anunciadas por meio de ‘similitudes dessemelhantes’”.

Numa reunião de exemplos tão ou mais interessante, Eco busca mostrar como a forma do “etc.” pode ser aplicada à pintura ou à fotografia: “A Monalisa tem como fundo uma paisagem que certamente continua para além da moldura, mas ninguém se pergunta até onde vão os bosques (…) ninguém pensa que Leonardo teria sugerido que eles se prolongam ad infinitum. Outras obras figurativas, porém, nos deixam com a impressão de que o que vemos não é um todo, mas uma amostra de uma totalidade maior que é impossível de ser ali abarcada.”

Partindo desse princípio, o livro é inteiramente ilustrado por obras cujo conteúdo parece escorregar para além do representado, do Jardim das Delícias, de Bosch, até uma vista aérea da cidade de Los Angeles fotografada em preto e branco. No capítulo especial sobre as enumerações em tempos de mass media, as embalagens de sopa reunidas por Warhol são o principal exemplo.

Reunião de todos os tipos de listas desordenadas, caóticas, despropositadas, Vertige de la Liste faz descobrir uma língua sem um objetivo, procurando ordenar de todas as maneiras possíveis um mundo em sua extensão e multiplicidade. Ironias à parte, trata-se, enfim, de uma grande lista de listas – mais uma das acrobacias teóricas do autor.


GABRIELA LONGMAN é jornalista e doutoranda em Teoria Literária pela USP


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