Uma revolução em busca de seu auge

Uma revolução em busca de seu auge

Iniciadas há duas décadas, as graphic novels ou romances gráficos são uma saída possível para o quadrinho inteligente e sofisticado

Gonçalo Jr.

Há 20 anos, em abril de 1987, uma série de quatro volumes lançada pela editora Abril prenunciou, para o leitor brasileiro, a revolução nas histórias em quadrinhos que começara nos Estados Unidos, no ano anterior, com a mesma publicação: O Cavaleiro das Trevas, escrita e desenhada por Frank Miller – até então, um ascendente artista que conseguira dar vitalidade à moribunda revista O Demolidor. Embora historicamente o pioneirismo seja atribuído a Will Eisner (1917-2005) – que teria criado o termo graphic novel ao lançar em formato de livro a história em quadrinhos Um contrato com Deus (Brasiliense) –, foi Miller quem deflagrou uma nova era nos comics. A ele logo se juntaria o inglês Alan Moore, que também em 1986 lançou a saga apocalíptica Watchmen.

Em apenas quatro anos, os dois artistas criaram obras fundamentais que deram aos sempre discriminados comics, um status nunca antes visto e os levaram para as seções de literatura dos grandes jornais e revistas, assim como às publicações especializadas em livros. Miller e Moore imprimiram aos quadrinhos uma densidade e complexidade narrativas, além de sofisticação, que até então só eram vistas vira nos grandes escritores. Prisioneiros da linguagem direta e econômica dos desenhos e dos balões, ao longo de oito décadas, deram, ao público,em forma de gibi principalmente entretenimento, humor, aventura etc.

Chegou a existir um esforço de diversificação para o policial e o terror após a Segunda Guerra Mundial, mas ele foi abortado com o código de censura adotado pela própria indústria em 1954 como forma de afastar a pressão dos moralistas – estes diziam que as revistinhas induziam ao crime, à prostituição e ao homossexualismo. Nem mesmo os quadrinhos adultos – para universitários, em especial –, criados nos anos de 1960 na Europa a partir de Barbarella, a heroína sexual de Jean-Claude Forest, conseguiu ir muito longe. Apesar da temática erótica e da publicação em álbuns de luxo deste e de outros personagens na Itália e na França, predominava o caráter de diversão dos quadrinhos.

Com O Cavaleiro das Trevas, uma releitura do mito de Batman, criado por Bob Kane em 1939 – seguido do extraordinário Watchmen (em parceria com David Gibbons) –, algo de realmente novo aconteceu. Miller publicou outras obras-primas na mesma linha: Batman: Ano Um e Elektra Assassina, ambos com David Mazzuchelli – e Ronin. O autor foi transformado em celebridade e convocado a escrever o roteiro do segundo filme da série Robocop, o que o afastou por meses dos gibis. Moore, que experimentava novas idéias desde a década de 1970, sedimentou a pedra fundamental com V de Vingança – ilustrado por David Lloyd.

Em uma entrevista que concedeu à revista Comics Interview em 1990, Frank Miller lembrou que um dos efeitos da experiência como roteirista de filme foi que passou a apreciar a liberdade que tinha nos quadrinhos a qual havia muito menos na indústria do cinema. “Isso me encorajou a levar as idéias mais longe, a agarrar mais as chances e também a trazer um pouco mais de senso de diversão para o que eu estava fazendo. Eu queria que as histórias em quadrinhos fizessem melhor uso do que elas podem fazer. Não é coincidência que tenha sido a história em quadrinhos que criou o super-herói. A forma produziu a criação, porque na forma, mesmo antes de Jack Kirby e especialmente a partir dele, o visual da página da revista a levou a um tipo de ação extravagante – não tanto as limitações de expressão.”

Para Miller, todos os projetos na linha das graphic novels na segunda metade da década de 1980 realçaram as cores, o papel bom etc. “O que estou falando é das vantagens que os quadrinhos têm sobre os outros meios, sua principal característica, o que eles podem fazer de melhor. Quadrinhos não são prosa… E a minha impressão pessoal é que há um perigo de se perder muitas das virtudes da história em quadrinhos por não se fazer uso da vitalidade visual de que a forma é capaz, assim como do humor.” Observações assim levariam-nos a acreditar que ele criava tudo com a consciência de explorar as potencialidades da linguagem dos quadrinhos.

Em Elektra lives again, por exemplo, ele dividiu parceria com Lynn Varley, que coloriu a história, enquanto ele a escreveu e desenhou. “Eu chamei de pintura, de arte de decoração, é difícil encontrar um rótulo.” A revista foi pensada, repensada por ele, que teria jogado metade das páginas que desenhou no lixo. Pelo que podia ver, prosseguiu ele, um quadrinho era chamado de dark nos primeiros anos da graphic novel se não estivesse de acordo com a doçura e a leveza do mundo perfeito do código de quadrinhos. “Fantasia sempre tem origem, e o mundo real do qual as fantasias são tiradas não é nenhum paraíso. Todas as vezes que penso ter feito uma coisa divertida, as pessoas chamam de dark (risos).”

Miller deve muito a Will Eisner, considerado “o pai dos comics modernos” ou “o maior criador de quadrinhos de todos os tempos” e que teve uma carreira de mais de 60 anos. Os dois, aliás, lançariam, em 2005, Eisner/Miller (Dark Horse), um livro de bate-papo entre eles, fundamental para entender a ­contribuição que deram aos comics. Eisner ­começou a levar os quadrinhos para um outro nível artístico desde que criou The Spirit, em 1940, um anti-herói em forma de paródia que aparecia em histórias curtas, sempre de sete páginas, publicadas em suplementos de jornais.

Depois da Guerra, suas histórias chegaram ao auge com experimentos antes nunca feitos, como incursões freqüentes em outros gêneros, mormente o cinema e a literatura. Mais que isso, mostrou múltiplas possibilidades de narrar com desenhos – deu tridimensionalidade, brincou com a luz e o sombreamento e, em alguns momentos, fez de seu personagem principal apenas um coadjuvante. Ao dar um corte com a planificação tradicional, incorporou muito da linguagem cinematográfica, com grandes planos e o uso de grande angular.

Em 1977, depois de um bom tempo longe dos quadrinhos, Eisner lançou Um contrato com Deus. Achava que fizera algo diferente dos quadrinhos tradicionais, por isso colocou na capa do livro um selo com o conceitual graphic novel. Sua obra foi recebida pela crítica como “um trabalho maduro e complexo focado na vida de pessoas ordinárias no mundo real”. Depois, citou como inspiração os livros de Lynd Ward, que produzia romances completos em xilogravura. Com Miller e Moore, o termo começou a ser adotado pela mídia para definir o que os dois estavam fazendo – na verdade, desde a década de 1960, Richard Kile usou a expressão em algumas publicações.

Estava aberto, assim, o caminho para uma série de experimentos dirigidos a leitores mais maduros: a reformulação de vários super-heróis, a afirmação dos quadrinhos de autor – até então se valorizavam muito mais o personagem e a marca da editora – e, o mais importante, a proliferação de editoras independentes, como a Dark Horse, abertas a idéias mais ousadas e até de vanguarda. Começaram a aparecer roteiristas e artistas como Neil Gaiman (Livros da magia e Orquídea negra, além da série Sandman), Art Spiegelman (Maus), David Mazzuchelli, David Gibbons, Howard Chaykin (American Flagg e Black Kiss), Mike Barr e Brian Bolland (Camelot 3000), Paul Chadwick (Concreto), Terry Moore (Estranhos no paraíso), Brian Azzarello e Eduardo Risso (Cem balas), só para citar alguns.

Um dos desafios para críticos e estudiosos desse fenômeno nessas duas décadas tem sido conceituar o que realmente significa uma graphic novel. Para alguns, numa explicação mais simplória, é uma espécie de livro, normalmente contando uma longa por intermédio através dos quadrinhos. Costuma ser usada para definir as distinções subjetivas entre um livro e outros tipos de histórias em quadrinhos. Pode ser adotado para qualquer forma de quadrinho ou mangá de “longa duração”. Seria o análogo à prosa nos comics ou ao romance, na literatura. Pode ser aplicada ainda a trabalhos publicados anteriormente em quadrinhos regulares de banca ou produzidos especificamente para publicação em formato de livro.

Eddie Campbell, no ensaio que publicou em 2004, afirmou que a expressão seria mais bem empregada para descrever um movimento artístico, um evento contínuo, do que uma forma. Como “antecedentes” do romance gráfico citou os livros de xilogravuras de Lynd Ward. O conceito, portanto, teria cerca de 30 anos, apesar de o nome ter sido utilizado casualmente há uns dez anos antes pelo mercado. Uma vez que se encontra ainda em desenvolvimento, disse Campbell, é possível que se tenha alterado totalmente a médio ou longo prazo a definição. “Se algo parece certo é que não deve ser usado para indicativo de um formato comercial.”

O mais importante, na sua opinião, é o intuito do autor, mesmo que o uso de graphic novel surja após a publicação original. “Os temas dos romancistas gráficos são toda a existência, inclusive as suas próprias vidas. Os artistas desprezam os ‘gêneros’, os clichês, apesar de conservarem uma perspectiva alargada.” Seus autores, prosseguiu ele, jamais pensariam em empregar o termo romance gráfico quando se encontram entre os seus pares. Referem-se normalmente ao seu “último livro” ou ao seu “trabalho em curso”.

A graphic novel viveu seu grande momento até o começo da década de 1990. Mudou a indústria dos quadrinhos, rompeu com a censura, permitiu ampla liberdade aos autores, libertou-os das amarras do código de censura moral, deu-lhes status de artistas, estimulou o aparecimento de editoras independentes e fez perceber que era possível explorar o gênero super-herói num nível mais denso, inventivo e reflexivo. Nos últimos dez anos, porém, mesmo com sedimentação do formato, ainda se espera uma nova safra de obras monumentais como as realizadas por Miller, Moore e Gaiman. Como acontece com a literatura, talvez algo de novo comece a ser fermentado em breve.

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