Um Útero é do Tamanho de um Punho de Angélica Freitas
Para Angélica Freitas e seus leitores
Um poema é sagrado. E o sagrado é sempre muito perigoso: intangível para os pobres habitantes da vida profana e, por eles mesmo, esquartejado e lapidado como se faz com o corpo do sacrifício. O poema é bode e o poema é mártir. Não o tocamos com as palavras que dizemos sobre ele, porque é o poema que nos toca com as gotas espargidas de sangue, os cristais de brilho luminescentes que escapam de seu corpo astral luminoso. Verdade, agora, o poema é útero. E se tentamos explicá-lo, eis que matamos o poema com o veneno-remédio da expressão que nunca o alcançará. Por isso é que a leitura afetiva (o que me move a escrever enquanto o poema me move a escrever) e a cronocrítica (a exposição da experiência de leitura no tempo do afeto), são o único caminho que nos leva ao texto: espiamos o poema como quem olha no buraco de uma fechadura.
Protegida por paredes e uma chave perdida, espiei pelo buraco da fechadura, e durante meses, “Um Útero é do Tamanho de um Punho” de Angélica Freitas (COSAC, 2012, 96 pp.). À primeira vista, senti inveja do título. Inveja, uma paixão menor que sou capaz de confessar por pura falta de vergonha, outra paixão – mas não tão pequena. Tive que ir muito devagar, pois nas primeiras linhas, outros afetos ainda não nomeáveis apareciam como fantasmas na forma de uma intensa vontade de chorar. (Tenho medo das emoções em estado selvagem, prefiro os sentimentos que sobre elas se elaboram e sei que pedem tempo, às vezes todo o tempo, um tempo do qual não se dispõe sempre). Por isso, dei passos atrás, demorei dias para continuar a leitura que, eu sabia, transformaria aquela fechadura no limite de um recorte, em uma grande boca devoradora. Um útero que me chama para dentro.
(A gente sabe o que nos espera, a gente que é uma mulher limpa, a gente que é uma mulher suja, a gente sabe o que nos espera logo que se abre a primeira parte desse livro da Angélica Freitas.)
Não fosse a parede, a porta e o pequeno recorte da fechadura, e eu teria entrado em luta corporal com o poema. Mas a fechadura me permitia ser aquele “puro olho do mundo” (aquele mesmo de Schopenhauer, que não está nos poemas de Angélica e que não entenderia nada do que ela diz porque um dia disse que as mulheres pensam com os ovários ou algo parecido). Mas como a cronocrítica tem permissão para tudo, muni-me disso, uns óculos aí, e continuei a espiar.
Primeiro espiei “A MULHER LIMPA”, a parte do livro em que há “uma mulher boa/é uma mulher limpa”, que vem antes de um “mulher braba”, “uma mulher muito feia”, “uma mulher sóbria”. Não posso resumir o que viveram as mulheres de Angélica, porque isso seria violentar hermeneuticamente o poema, por isso dou só esses sinais como copos de água para essas mulheres todas, porque me parece que elas vão precisar beber. Eu bebi o livro e o comi e depois o dormi e o acordei e agora deito ao seu colo como no colo de um mulher suja e esqueço do tempo dessa cronocrítica.
No meio de “A MULHER LIMPA” havia “uma canção popular (séc. XIX-XX):” . Ali aparece uma mulher no meio “das que incomodam” e “são porcas permanentes”. Amei todas essas mulheres, sobretudo “uma mulher gorda e bêbada incomoda muito mais” e depois a mulher “que era frugívora pelas circunstâncias” e a mulher “limpa como uma gaveta”. E todas elas até o fim. (Eu sou uma das mulheres de Angélica Freitas, ou todas e isso me melhora como ser humano.)
Quando espiava a mulher limpa percebia que a poesia é, em Angélica Freitas, uma atenção desmedida àquela parte da vida que ainda está viva. Então, percebi que dói.
Em “mulher de vermelho” a coisa ficou ainda mais séria, porque a ironia com que Angélica Freitas observa a vida, serviu para continuar uma classificação desclassificatória: quem não sabe que ironia é dizer desdizendo, dizer retirando-se da cena para dar lugar a outro pensamento, que fique sabendo logo, pois isso ajudará a ler o livro: como a malandra “mulher do malandro”, como a mulher que, tendo um faqueiro fino, só usava um bem comunzinho da “tramontina”, ou aquela que avisa da Tailândia aos pais uma novidade incrível que eu não posso revelar aqui, pois seria um tremendo desmancha prazeres, como foi para a “mulher de regime” o regime que ela fez. Eu também já fiz regime, toda mulher já fez regime, então, isso virou um fato e um mistério ao mesmo tempo e que o livro não explica enquanto, ao mesmo tempo, explica.
Descobri, lendo Angélica Freitas, que ela já disse tudo sobre os fatos e os mistérios e isso vai economizar o nosso tempo, de todas nós, com ou sem úteros.
Sobretudo, ela já disse tudo quando escreveu “a mulher é uma construção” e comentou sobre a “revista nova” que ela não chamou de imbecil porque não precisava, como não precisava dizer mais nada sobre ser brasileira e ter amigos gays ou ser um poeta brasileira ou uma poeta argentina. Neste ponto, fiquei pensando que a vida fica melhor, como um livro, quando há um bom entendedor. E é só por isso, quando há essa chance, é que a gente consegue brincar, brincar muito, sendo “uma serpente com a boca cheia de colgate” ou alguém que “quer saber o que é metonímia”. Então, eu podia não ser um bom entendedor do livro, mas o livro era meu, todo meu, muito me entendendo como se o buraco da fechadura por onde eu espiava, agora fosse o buraco por onde ele me espiava, me espiava em todos os meus segredos.
Foi ali que eu encontrei que “todas as leituras de poesia são equivocadas” e me senti mais confortável para continuar na minha leitura confortavelmente equivocada, bem quietinha, com um pouco de vergonha e muitíssima satisfação de também não ter que “trocar fluidos com o contemporâneo”. Por isso é que eu gosto dos poemas da Angélica Freitas (porque eu gosto de mim), também porque ela não usa desculpas de jeito nenhum. E seus poemas estão verticalmente fincados em nossas horas vividas que cabem no tamanho de um útero.
E quando, lendo o livro, assim bem devagar como fazemos com os livros que são do tamanho de um útero e de um punho, você encontra o poema chamado “um útero é do tamanho de um punho” aí, você consegue entender e a metonímia. Aí você fica pronta para as metáforas, as tragédias, as comédias, as análises, as reflexões, as ekphrasis, as onomatopeias, as figuras de linguagens todas, e mais o que não cabe nas figuras de linguagem. Mas, sobretudo, se a pessoa que está lendo, tem um útero, então, esta pessoa pode ficar estarrecida ou muito grata, como eu fiquei, mesmo sabendo que, sem útero, como algumas mulheres que conheço, também se pode ser muito feliz. Que o melhor útero do mundo é esse do tamanho de um punho inventado pela Angélica Freitas, um livro que é do tamanho de um útero, de um punho, e que é perigoso, como uma metonímia bem colocada, e que vem alegrado por uma revolução sem pompa, cheio de inteligência sem prepotência, uma inteligência que tem graça também, apesar do seu pessimismo sadio (há pessimismo sadio), a inteligência sem distinção de classe, credo ou cor e que fez um livro todo desmontado, desamedrontado, desembelezado, de bem com sua língua, suas expressões, nomes e silêncios.
Neste ponto do livro, enquanto leio ainda no meio, eu tenho que parar de escrever, porque eu leio e leio de novo e sou tomada por tantas impressões e inspirações que só me resta dizer: acha o livro inteiro, você aí que tem um útero do tamanho de um punho, lê pensa, e pensa muito. Pensa em por que “os churrascos são de marte e as saladas são de vênus” lembrando da política sexual da carne que explica o machismo gaúcho e os outros. Olha, como eu, no buraco da fechadura, bem quietinha, sente inveja, amor, esperança, compaixão, alguma intensidade indizível que explica que a arte vale a pena.
Pensa, pensa muito, porque pensar é o mais potente dos afetos, revolucionário como um poema útero, um poema punho, um poema generoso como este de Angélica Freitas, este que tenho em mãos no meu punho aberto em estado uterino, aquilo que Angélica chamou de “piri qui” e que foi a parte que eu mais gostei junto com a parte da “viagem a um país onde/a língua seja vértebra” junto com a parte “da namorada/com superpoderes de invisibilidade” e a “dôr com circunflexo” que encontrei no “LIVRO ROSA DO CORAÇÃO DOS TROUXAS” liberto pela poesia em estado de útero, uma poesia agressiva como eu gosto.
Angélica, por fim, só queria dizer, que vou ler de novo e muitas vezes, todas as vezes que eu acordar de manhã e o dia parecer um grande buraco sem fim, como um útero que, de repente, você fez virar uma bela arma.