Um tapa na cara do jornalismo

Um tapa na cara do jornalismo
O jornalista Glenn Greenwald, que foi agredido por Augusto Nunes durante o programa Pânico (Foto: Jovem Pan/Reprodução)

 

O episódio mais grotesco da semana política aconteceu em um programa de rádio, o Pânico, transmitido pela Jovem Pan FM de São Paulo. Trata-se de um talkshow que mistura alguma informação com muito humor irreverente e escrachado, quer dizer, baseado em zombaria, deboche, troça, sarcasmo. É humor pesado, mórbido, que não hesita em recorrer a preconceitos ou ao racismo, por exemplo. Embora hoje seus protagonistas, âncoras e entrevistados, tenham envelhecido e já possam entrar na classe dos tiozinhos, no DNA do programa está a cultura adolescente do escracho, da lacração e da zoeira, tão em voga nesses dias.

Esta mentalidade, como se sabe, virou à direita a partir de 2013 e desembarcou no movimento da direita ultraconservadora do bolsonarismo em 2018. A própria emissora Jovem Pan, que abriga o Pânico, firmou-se no mercado do rádio e das ideias políticas nos últimos anos como um bastião do antipetismo e da direita iconoclasta e lacradora. O seu elenco de comentaristas políticos, jornalistas e humoristas passou a incluir “todo mundo que não fosse petista”, entendendo-se por isso um conglomerado que incluía conservadores, direitistas, ultraliberais, autoritários e autocratas. Virou uma frente de defesa de ideias fortemente reacionárias, uma usina de produção e fornecimento de interpretações conservadoras e antipetistas dos fatos políticos, um centro de gestação e disseminação de narrativas antiliberais e regressistas.

O que aconteceu esta semana resultou de um convite para uma entrevista com o jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept, que recebeu e está divulgando conversas que ocorreram entre os membros da operação Lava Jato que demonstram cabalmente a parcialidade e o partidarismo político do MP de Curitiba e do ex-juiz Sérgio Moro. Greenwald não sabia disso, mas a produção do programa havia convidado também Augusto Nunes, que trabalha como comentarista de política com colunas na Revista Veja, na Record TV e na rádio Jovem Pan, a tríade dourada da nova direita midiática brasileira.

Nunes é um dos portadores de um estado clínico que pode ser chamado de Síndrome de Alexandre Garcia, e que consiste no fato de que alguns jornalistas, que já eram conservadores e de direita durante a sua carreira, simplesmente caíram na gandaia a partir da “guinada eleitoral ultraconservadora” de 2018, jogaram fora o disfarce de imparcialidade e isenção, que ainda exibiam, abandonaram os escrúpulos que o jornalismo ainda lhes impingia e se assumiram como radicais militantes do bolsonarismo e da mentalidade conservadora de direita que está assolando o país.

Pois bem, a entrevista nem sequer chegou a começar. Para delírio dos âncoras e deleite do público típico do Pânico, chegou-se à agressão física em menos de dois minutos, com o comentarista Augusto Nunes atacando o jornalista Greenwald à base de tapas e tentativa de murros.

Podíamos ficar falando de como isso foi feio e triste e de como é lastimável que o ringue político tenha chegado até mesmo às redações e estúdios das empresas de mídia, que deveriam ser um componente da solução para a tragédia da polarização e do ódio político e não parte do problema que nos arruína e consterna. Mas eu quero mesmo é deplorar a devastação que a guinada ultraconservadora na política está produzindo nos ambientes profissionais do jornalismo, com grandes (e nem tão grandes assim) profissionais desistindo de fazer jornalismo de qualidade para militar pelo bolsonarismo.

Alexandre Garcia e Augusto Nunes são exemplos dos que se despiram dos constrangimentos do jornalismo, se os tinham, e atiraram-se na luta como se fossem parte da última linha de defesa ultraconservadora e antipetista. Há também aqueles que já jogaram no ataque antipetista e da direita, mas acharam que o bolsonarismo passou do ponto e agora se tornaram críticos do monstro que ajudaram (voluntária ou involuntariamente) a criar, como Reinaldo Azevedo ou, em outra medida, Rachel Sheherazade. E há ainda aqueles que começaram a se desengajar da plataforma do bolsonarismo ou da extrema-direita, a que aderiram com entusiasmo nos últimos três anos, e que estão pagando um preço muito alto em termos de linchamento digital, de assédio e de assassinato de reputação, como é o caso de Marco Antônio Villa, Noblat, Rodrigo Constantino, Felipe Moura Brasil, Carlos Andreazza, Merval Pereira e, finalmente, Joice Hassellmann, dentre outros, todos classificados agora como “comunistas desmascarados” e como “traidores”.

O assédio é cruel, com campanhas de humilhação, difamação e destruição de imagem, montagens, fake news, dossiês falsos, ameaças à família e incitamento da matilha contra os “traidores” da causa, como se nunca tivessem efetivamente sido jornalistas, mas militantes engajados. O que, de fato, eram.

A rigor muitos dos citados não são jornalistas, se por jornalista se entende o profissional da notícia que busca produzir informações relevantes a partir de fontes qualificadas e com base em cuidadosos métodos de apuração. E que, além disso, realiza este trabalho limitado pelos constrangimentos da deontologia da sua profissão que exige objetividade, veracidade, honestidade e imparcialidade. Alguns destes “jornalistas” apenas têm o diploma ou o registro profissional de jornalismo, mas, a rigor, o seu papel na imprensa não difere de nenhum outro analista ou comentarista de política, jornalista ou não. São profissionais, isto sim, da atividade de interpretação dos fatos políticos e, muito frequentemente, da interpretação político-partidária dos acontecimentos. Neste último caso, foi fácil perder o passo e o limite e transformar a atividade hermenêutica, a crítica e a análise de fatos e dados, em engajamento e participação na política, escolhendo lados partidários, calibrando ângulos e perspectivas conforme a conveniência do lado escolhido, e, sobretudo, disfarçando como se fossem diagnósticos honestos o que na verdade era pregação e doutrinamento.

Neste caso, portanto, não surpreende que a facção política beneficiada pela catequese partidária do assim chamado “jornalista” se sinta traída à primeira hesitação, à primeira divergência, à primeira tomada de posição contrária aos interesses da seita. Assim como também não surpreende que ex-jornalistas, agora no papel de evangelizadores partidários da extrema-direita, sejam então capazes de atacar profissionais da imprensa no exercício de papéis tradicionais da sua profissão, só que não mais à base de argumentos e demonstrações, mas por meio de insultos e tapas na cara. Um tapa na cara do jornalismo.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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