Um pacto histórico com narrativas de sangue e lodo
Dentre as várias imagens distópicas que circularam no Brasil de junho de 2013 até o Golpe de 2016, uma sempre me vem à mente quando penso sobre as narrativas que nos mobilizam. Trata-se da foto de uma família nuclear – pai, mãe e filho –, branca e milionária, tirada durante uma manifestação contra o governo de Dilma Rousseff. Na imagem, todos encenavam o seu patriotismo através da bandeira nacional e de adereços em verde e amarelo. O casal sorria vigorosamente, enquanto o filho ensaiava um sorriso tímido, como se não fizesse muita questão de estar ali. Na legenda, o pai escreveu algo como: “Trouxe o meu filho para que ele saiba que fez parte deste momento histórico.”
Lembro-me que fiquei um tempo pensando naquela foto… Eu me perguntava: por que aquele “momento histórico” era tão importante para um casal milionário? Tendo em vista a narrativa que se construía no país, a resposta logo me pareceu óbvia: eles estavam “lutando” por seu direito de não serem roubados, o que significava “lutar” contra a corrupção presumidamente instituída pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Além de revelar o corpo da mobilização pelo impeachment da presidenta Dilma, aquela imagem me fez perceber o nível de adesão e engajamento dos brasileiros com a narrativa de corrupção. De repente, milhares de indivíduos que jamais se dispuseram a participar de manifestações por igualdade e justiça social, que costumavam ignorar ou apedrejar movimentos sociais e demandas populares, que se referiam a manifestantes como vândalos ou desocupados, estavam nas ruas, de peito aberto, para “lutar” por um Brasil melhor. Pessoas do meu convívio íntimo à época, que sempre se esquivaram de pautas que colocavam em xeque os seus privilégios e que nunca abriram a boca para falar sobre política, resolveram se juntar ao “povo” para reivindicar a destituição de uma presidenta eleita e sem crime de responsabilidade. Uma delas chegou a perguntar: “será que vamos ter que tirar essa corja do poder à força?”
A justificativa para essa “revolta popular” era que a gestão política supostamente criminosa dos governos petistas estava por trás da crise econômica que assolava a população, sobretudo, os mais pobres.
O curioso, no entanto, é que a maioria das pessoas que aderiram à narrativa de corrupção não tenham aderido, com a mesma fúria, à narrativa de genocídio, construída a partir da política de morte adotada pelo governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19. Ao contrário da narrativa de corrupção, que se forjou a partir de acordos e movimentos altamente questionáveis, a narrativa de genocídio se construiu diante dos nossos olhos, a partir de fatos concretos da realidade, sem nenhum pudor.
Conforme o Relatório Final da CPI da Pandemia, elaborado com base em um conjunto robusto de elementos de prova, “o governo federal foi omisso e optou por agir de forma desidiosa no enfrentamento da pandemia, expondo deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa”. Tendo vivido a construção de ambas as narrativas, percebo que, apesar de muitos brasileiros terem se mobilizado contra a política de morte do governo Bolsonaro, uma parte expressiva do “povo” escolheu se calar perante a narrativa de genocídio. Assim, as perguntas que me faço são: o que nos leva a abraçar uma narrativa de corrupção e a negar uma narrativa de genocídio? Por que temos a tendência de nos rebelar contra o ladrão e a tolerar o assassino? Por que o roubo nos sensibiliza mais do que a morte?
Acredito que uma reflexão honesta sobre essas perguntas deve partir do conceito de propriedade privada, que constitui a base do sistema capitalista e, teoricamente, se revela como materialização da liberdade e autonomia do indivíduo perante o Estado. É nesse sentido que, para Rousseau, “todo homem pode à vontade dispor do que possui”, um fundamento básico de documentos históricos importantes, como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Constituição Francesa de 1791.
Entretanto, quando observamos criticamente a história e seus desdobramentos, vemos que o direito à propriedade nunca foi um direito absoluto e universal. Ao contrário, ele foi construído por e para grupos específicos, a partir da exploração, escravização, expropriação e extermínio de indivíduos considerados não humanos – como mulheres, camponeses, pobres urbanos e povos originários da África, da Ásia e das Américas – e, portanto, indignos dos direitos que indivíduos humanos pudessem ter.
Neste exato momento, por exemplo, mais de 2.000 pessoas resistem e lutam pelo direito à moradia, sob condições humanamente precárias, na Ocupação Lélia Gonzalez, em Santo André (SP). Ainda assim, as grandes narrativas sobre a propriedade privada – que envolvem não somente a posse da terra e dos meios de produção, mas de todo bem que o indivíduo pode adquirir por meio da superexploração da força de trabalho – nos fizeram enxergar esse “direito” como um princípio sagrado que devemos proteger a qualquer custo.
A esse respeito, vale lembrar uma transmissão que Bolsonaro fez em seus primeiros meses como presidente na qual ele afirma que enviaria ao Congresso dois projetos de lei: um que tipificasse a invasão de terras como terrorismo e outro que aplicasse o excludente de ilicitude nos casos em que alguém cometesse um crime para proteger o seu patrimônio. O objetivo do segundo projeto era permitir que o proprietário se defendesse com arma de fogo, em uma tentativa explícita de estender o poder do Estado ao cidadão, que teria uma “licença” para julgar e punir quem atentasse contra a sua propriedade – mesmo quando esse não fosse o caso. Tais projetos e os sentidos que eles fazem circular mostram que, dentre os arranjos que o “direito à propriedade” construiu em nosso imaginário social, destacam-se a absoluta condenação do roubo e a inexorável demonização do ladrão.
Dessa forma, não é estranho que o Brasil tenha se engajado em peso com a narrativa de corrupção – rasteiramente compreendida como sinônimo de roubo –, colocando-se a postos para “lutar” contra os ladrões que, em tese, nos roubavam. Portanto, o levante contra a corrupção de 2016 foi uma defesa coletiva da propriedade e, sobretudo, dos interesses, privilégios e conflitos de classe que estruturam o nosso capitalismo dependente, como diria Florestan Fernandes.
O segundo ponto que devemos considerar – mas que não se dissocia do primeiro – é o vínculo histórico entre capitalismo e morte, o qual se expressa nas palavras de Karl Marx, quando ele afirma que o capital veio ao mundo “jorrando sangue e lodo por todos os lados”. Essa ideia parte de uma análise crítica dos movimentos associados à emergência e à expansão global do capitalismo, como a expropriação de camponeses e o extermínio de mulheres na Europa, a conquista sangrenta de territórios da Ásia, a exploração e assassinato de povos originários nas Américas, e a transformação da África em uma fábrica de mão de obra escrava. David Pavón-Cuellar explica que os movimentos obscuros do capitalismo acontecem porque o capital precisa explorar a vida para se manter ativo, necessidade que não pode ser suprida de outra forma que não seja produzindo a morte. Com base em Marx, o psicólogo mexicano afirma que “a operação constitutiva do capital consiste em transmutar algo vivo, o trabalho, em algo morto como a mais-valia, o excedente de valor”, ou seja, o capital é a recompensa que se ganha pela destruição da vida. Na mesma linha de raciocínio, os filósofos Éric Alliez e Maurizio Lazzarato argumentam, em Guerras e o Capital, que o capitalismo depende do mar de sangue aberto pelas guerras para se consolidar. Em suas palavras: “[s]em o exercício da guerra no exterior (colonial e contra outros Estados) e sem o exercício da guerra civil e das guerras de subjetividade, ambas internas, o capital jamais poderia vir a se constituir.”
Um dos principais indicativos dessa conjuntura mórbida é a pobreza, condição de uma série de fragilidades sociais que têm levado à morte centenas de milhares de pessoas mundo afora. Morte que decorre não somente de problemas como subnutrição, mas também da baixa expectativa de vida das classes não favorecidas pelo capital. Para essas, a morte se impõe como destino antes mesmo da possibilidade de vida. Outro efeito das fragilidades que emergem da pobreza é a violência do Estado contra as comunidades periféricas das grandes cidades, que resultam historicamente das disputas pelo direito à propriedade e à ocupação do espaço urbano. Em um artigo de 2020, o pesquisador Guilherme Petrella afirma que a urbanização é atravessada pela violência, pois trata-se de um processo “operado pelo poder estatal e suas alegorias violentas”. No Brasil, essa violência pode ser observada nos massacres do Estado em terras indígenas e em terrenos ocupados por famílias carentes, e nas invasões policiais em casas de famílias pobres na periferia – o que muitas vezes culmina em chacinas e na morte de inocentes, incluindo crianças. Nesse sentido, o lema bolsonarista “Bandido bom é bandido morto” não revela um clamor pela segurança pública, como se quer fazer acreditar, mas uma chancela coletiva da criminalização da pobreza, já que dificilmente veremos um empresário bem-sucedido invadir uma propriedade ou roubar um celular na rua. Em um plano mais geral, esse lema se configura como uma ode ao punitivismo, que, no contexto brasileiro, tem cheiro e números de guerra, como pondera Kathiana Arend ao refletir sobre a origem do Estado penal à brasileira.
Considerando as questões em torno da propriedade privada e a relação histórica entre capitalismo e morte, podemos, enfim, compreender por que parte dos brasileiros se engajou com a narrativa de corrupção, mas tem ignorado a narrativa de genocídio. O fato é que, como somos um país mal resolvido com a própria história e refém do sistema que ela ajudou a construir, nós acabamos incorporando mais facilmente a morbidez constitutiva do capital aos nossos modos de ser, pensar, sentir e agir.
Forma-se em nós, então, com mais destreza, o que Félix Guattari chamou de subjetividade capitalística, um tipo de modalização psicossocial que produz “indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão”. É um modo de subjetividade fecundado pela máquina capitalista, que institui sentidos e percepções únicas e pretensamente fixas sobre o mundo, tendo por objetivo reproduzir a lógica do capital em nossas formas de compreensão da vida. Em face da destrutibilidade do capitalismo e de sua relação com a morte, acredito que um dos principais elementos da subjetividade capitalística é a projeção exponencial do instinto de morte, que, na visão do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em diálogo com Freud, remete às nossas pulsões destrutivas, que “esmaecem todas as instâncias da vida, fazendo delas satélites da morte”. Como parte essencial dessa lógica perversa, o instinto de morte faz com que os mortos sejam cada vez menos visíveis para nós, já que o sistema em que estamos inseridos depende da produção ininterrupta da morte para manter-se vivo. Ou seja, se “o capitalismo é obcecado pela morte”, como afirma Byung-Chul Han, nós também temos a tendência a ser.
Por sua vez, o roubo, como ataque direto à propriedade privada, representaria um golpe no coração do capital, não devendo, portanto, ser tolerado. Por isso, frente à narrativa de corrupção, observamos uma revolta nacional contra determinados atores, projetos e símbolos. Neste ponto, alguém poderia questionar o meu argumento dizendo que, além da narrativa de genocídio, há também uma forte narrativa de corrupção que pesa sobre o governo Bolsonaro. Um dos escândalos mais sórdidos veio à tona durante a CPI da Pandemia, que apontou vários indícios de irregularidades – chanceladas pelo presidente – nas negociações de compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde. Mais recentemente, outros dois escândalos foram identificados no Ministério da Educação: o primeiro denuncia o esquema criado pelo então Ministro, Milton Ribeiro, e controlado por pastores evangélicos, que negociavam vantagens para obter verbas do Fundo de Desenvolvimento da Educação (FNDE); o segundo revela a tentativa do Ministério de superfaturar a compra de ônibus escolares em mais de 50% do seu custo real, o que corresponderia ao valor excedente de R$ 732 milhões. O envolvimento do atual governo em escândalos de corrupção é tão proeminente que Bolsonaro foi eleito “Personalidade do Ano” pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project, em dezembro de 2020. Como efeito dessa política imoral, o Brasil atravessa uma das piores recessões econômicas da história, inclusive superando a de 2015-2016, que impulsionou a destituição golpista da presidenta Dilma e abriu as portas para a crise política e civilizatória que vivemos hoje. E onde está a revolta do “cidadão de bem”?
Antes de tudo, é preciso entender que a escolha por uma narrativa em detrimento de outra é sempre uma opção política, feita a partir de anseios e motivações específicas. No caso do “cidadão de bem”, talvez a motivação da sua revolta não seja exatamente o roubo, mas quem rouba e como o “bandido” se comporta frente à morbidez da lógica capitalista.
Diferentemente dos governos petistas, que – apesar das controvérsias – ensaiaram rupturas expressivas nos padrões hegemônicos que estruturam a realidade brasileira, o governo Bolsonaro, mesmo envolvido até o pescoço em esquemas de corrupção, tem trabalhado com afinco para instituir a morte como política de Estado. Esse esforço se materializa, por exemplo, na flexibilização de práticas que favorecem a destruição da Amazônia e suas comunidades; na legitimação de ações que corroboram as tragédias resultantes da mudança climática; na liberação de agrotóxicos que contaminam o solo e as águas do país; na edição de decretos que facilitam a posse e o porte de armas de fogo pela sociedade civil; na construção de uma política econômica voltada para as classes dominantes; na defesa do Estado penal e da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais; e na constante incitação do ódio a grupos minorizados, opositores políticos e às instituições democráticas. No que se refere à pandemia, além de expor a população ao risco de contaminação e morte, o governo federal, ao que tudo indica, chegou a firmar uma parceria com a operadora de saúde Prevent Senior para a realização de experimentos clandestinos, a fim de testar o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da Covid-19. Ou seja, no governo de Jair Bolsonaro, a morte está em todos os lugares. E é isso que parece mover, em diferentes níveis de consciência, os afetos de seus aliados e daqueles que negam o seu projeto de poder escancaradamente genocida.
Se vivêssemos em um país minimamente comprometido com a vida, Bolsonaro estaria, há muito tempo, no esgoto da política e da história, que é o seu lugar de origem. Infelizmente, esse não é o caso. Pois o que vemos é uma legião de “cidadãos de bem” tentando varrer, em nome de Deus e da família, a imundície da política bolsonarista para debaixo do tapete. O que vemos é um mundo de pessoas, arrependidas ou não do seu voto em 2018, que gritaram ferozmente contra a corrupção em um passado recente, optarem pelo silêncio frente ao projeto de extermínio que acontece diante dos seus olhos. O que vemos é um esforço coletivo para apagar a memória das mais de 650.000 mortes por Covid-19 e dos milhares de outras mortes intencionalmente provocadas pelo atual governo. Não é por acaso que Bolsonaro segue ocupando com grande vantagem o segundo lugar nas pesquisas sobre a corrida presidencial de outubro. Como isso é possível? – alguém poderia perguntar. Ora, o que não nos falta no Brasil são exemplos de silêncio frente a narrativas que jorram sangue e lodo por todos os lados, como diria Marx. Vivemos mergulhados em um silêncio perturbador sobre a dizimação de povos indígenas, sobre os quase 400 anos de escravidão legalizada, sobre as centenas de vítimas da ditadura militar, sobre o extermínio das populações indígena, negra e pobre que nunca deixou de acontecer na Nova República e, agora, caminhamos para o silêncio sobre o mundo de vidas ceifadas pelo governo Bolsonaro. Ao que parece, temos um pacto histórico com narrativas de sangue e lodo, que cumprem um papel para além da mera representação, que é (re)produzir subjetividades obcecadas pelo capital e, por assim dizer, incapazes de se revoltar com a morte.
No primeiro semestre de 2021, quando o Brasil registrava mais de 3 mil óbitos diários por Covid-19, me deparei novamente com uma foto da família nuclear, branca e milionária que mencionei no início do texto. Ao analisar o perfil da mãe, que era onde a foto estava, percebi que a família havia se rendido aos encantos do TikTok, com inúmeros vídeos de danças, falas engraçadas e transições de looks. Não havia nenhuma referência à tragédia humanitária que vivíamos à época e tampouco aos escândalos em que Jair Bolsonaro estava diretamente envolvido. Nenhuma menção à insegurança das classes trabalhadoras naquele cenário de absoluta instabilidade e desespero. Nem mesmo uma mensagem de conforto às milhares de famílias enlutadas do país. A vontade de “lutar” por um Brasil melhor, manifestada com tanta bravura e amor à pátria em 2016, havia se dissipado no ar. O mesmo havia acontecido com o desejo de mostrar ao filho que ele estava participando de um momento histórico. Em uma das postagens, a mãe explicava que o TikTok foi o caminho que encontraram para trazer um pouco de alegria à família. Seria esse um caso isolado? Basta abrir os olhos para ver que não. Lamentavelmente, o pacto com narrativas de sangue e lodo é a nossa regra histórica. Parafraseando a antropóloga Rita Segato, ouso dizer: quase todo o Brasil cabe nos vídeos dessa família.
Marco Túlio de Urzêda-Freitas é doutor em Estudos Linguísticos pela UFG, professor dos cursos de Letras da PUC-GO e da UNIP e autor do livro Ensino de línguas como transgressão: corpo, discursos de identidades e mudança social.
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