Um ménage que se desdobra

Um ménage que se desdobra
O escritor Jacques Fux (Foto: DIvulgação)

 

Um “Ménage à trois” não poderia se encerrar numa pequena história sem desdobramentos, sejamos justos. Publicado em 2016, esse conto de Jacques Fux rendeu o curta-metragem Ménage literário e o ensaio crítico “Jacques Fux, um Pierre Menard tropical”, ambos do cineasta Rodrigo Lopes de Barros. Juntos – conto, ensaio e curta, em DVD – compõem o livro Literary ménage, ménage literário, ménage literario, recentemente lançado pela Relicário. A narrativa da moça que come um churro, erotizada pelo voyeur-narrador, ganha outros ângulos quando Barros roteiriza e passa para a tela três figuras que parecem confundir o espectador sobre seus papéis: autor, voyeur e “a moça do bom dia”. Quem observa quem nesse jogo? Na preponderância dos contínuos olhares, a câmera observa tudo e capta os movimentos.

Os tons do curta são os mesmos da capa do livro: laranja, cinza e algum grená. O suco da moça, o churro, seus cabelos ruivos e a capa de Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (2015) sobre a mesa dão as matizes alaranjadas somados aos detalhes de vermelho que a personagem carrega (esmalte e brincos) e quebram a gradação gris que prevalece na tela. Quantos seriam os tons de cinza?

Escrever sobre o Ménage literário envolve não só o trabalho de Rodrigo Lopes de Barros e de Jacques Fux, mas também o da Maria Eduarda de Carvalho (a protagonista), o do Gustavo Machado (o narrador-voyeur), Vanessa Munford e Melissa Böechat (tradutoras) e João Verbo (sonoplastia). Envolve um olhar múltiplo nessa brincadeira toda. O projeto editorial chama a atenção desde a capa: três idiomas (inglês, português e espanhol) que brincam no espaço e integram, nesse jogo, uma outra palavra, agora em francês. É como se na dinâmica literária essa quarta língua tivesse uma participação especial, e ela é o próprio ménage. Esse cruzamento sai da esfera do título e configura outras triangulações: tanto aquela que existe no filme (autor, narrador e personagem), como a do processo criativo, no sentido de que o conto derivou o filme, que derivou o ensaio crítico, que derivou as traduções. Através do ensaio, o leitor é presenteado com informações que geralmente são colocadas nos “extras” de um filme – ali temos um “bônus”, já que Barros conta o processo de produção desde as ideias embrionárias, seu intuito de desconstrução do conto e a troca de correspondência com o autor, que acabou se tornando, também, um personagem. Vemos, então, que um pequeno conto foi capaz de fomentar muitas ideias. O curta-metragem teve uma atriz. Ela encena? Maria Eduarda de Carvalho entrevistando o autor deixa a dúvida se os dois tinham conversado previamente sobre o que falariam (se o diálogo era uma encenação) ou se realmente foi um bate-papo espontâneo. Conversam sobre a recepção de outros livros publicados por ele, como o Brochadas, por exemplo, em que a questão da autoficção é um grande mote. Se a intimidade das ex-namoradas é revelada em seu livro anterior ou se tudo é ficcionalizado, de qualquer maneira incomoda – com a verdade ou com a invenção, afirma a atriz. Mas Fux parece ter a própria literatura como aliada: “Eu vejo o tanto que você dá da sua alma num livro desse ou num conto, num pequeno conto sobre um churros, e você se doa, você mergulha, você se expõe, você se esconde, você se inventa, você se reinventa. […] Aquilo sou eu, mas aquilo também não sou eu, aquilo sou eu inventado, aquilo sou eu reinventado, aquilo sou eu idealizado e aquilo é literatura também. Nenhuma dessas pessoas tá lá. E todas estão.”

O primeiro ménage (que inspirou o outro) economizou em palavras, mas não em referências. Talvez essa seja a maior força do conto: há uma fusão das frases de Jacques Fux com as de autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Charles Baudelaire, David Foster Wallace, Fernando Pessoa, Jacques Prévert, James Joyce, Susan Sontag e Roland Barthes. O ensaio problematiza as apropriações autorais e trata de escândalos na literatura e julgamentos por plágio, assim como de questões identitárias. Nesse sentido, o ensaísta foi sagaz quando questionou (e acrescentou uma cena ao filme): “Estaria eu tentando fugir de um escândalo ao colocar Jacques no final do filme comendo, ele mesmo, churros pela Cidade do México”? Pode ser. Ali os papéis são invertidos – se havia uma obsessão pelo objeto fálico, agora o autor o devora. Mas essa cena (e esse churro) pode ganhar um gostinho ainda mais perverso se pensarmos que o lançamento do livro aconteceu justamente num contexto político do Brasil de efervescência e escândalos de corrupções, fake news e a troca de vários ministros, como o da justiça, Sergio Moro. Por uma curiosa coincidência, a churrería da cena final se chamava El Moro.

As várias referências de Fux não param no conto em si. Mesmo que algumas passagens tenham sido buscadas conscientemente pelo autor, o leitor sempre busca outras. Podemos citar, por exemplo, O cheiro do ralo. A “moça do bom dia” que foi do Drummond e depois foi apropriada por ele pode ter algo em comum com a moça da lanchonete, do livro do Mutarelli. É um emaranhado de citações, e por isso a página arrancada com o título de Ulisses para dar lugar a “Ménage à trois” ressignifica a ideia de plágio. O ensaio cita várias situações de plágios na história da literatura que ganharam notoriedade. Poderíamos acrescentar muitas outras, como a música “Canteiros” de Fagner, que na verdade foi descoberto que a letra era parte de um poema de Cecília Meireles: “Marcha”. Poderíamos mencionar, inclusive, casos de citações existentes em alguns livros ou teses que foram inventadas para dar credibilidade ao texto e demonstrar uma suposta erudição por parte do autor.

Vale espiar esse ménage – o conto, o curta e o ensaio dão pano pra manga. Trazem muita gente pra essa roda: os atores, os autores, o diretor cinematográfico, os tradutores, os leitores. Uma circularidade infinita e bonita que não se encerra no texto inicial, mas expõe uma verdadeira relação aberta.

Ménage literário, Literary menage, Ménage literario (Livro + DVD)
Jacques Fux e Rodrigo Lopes de Barros
Relicário
132 páginas – R$ 36

Vanessa Daniele de Moraes é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília, metre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e autora do livro Passagens abjetas (2018).


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