Um inédito de Derrida

Um inédito de Derrida

O Cartão-postal, escrito em 1979, será publicado no Brasil pela editora Record, em tradução de Simone Perelson e Ana Valéria Lessa 

4 de junho de 1977.

Continuei este vaivém. Depois saí para comprar selos, e ao subir por estas escadas de pedra, perguntava-me como teríamos feito para nos amarmos em 1930 em Berlim, quando era preciso carretas de marcos para comprar, como se diz, um selo.

O que me impele a lhe escrever o tempo todo? Antes mesmo que eu possa voltar-me para ver, do único destino, único, entende, inominável e invisível, que traz seu nome e não tem outro rosto senão o seu, antes mesmo que eu possa voltar-me para uma questão, me é dada a ordem, a cada instante, de lhe escrever, qualquer coisa, mas de lhe escrever, e amo, e nisso reconheço que amo. Não, não apenas isso, também.

Sua voz ainda há pouco (pequena cabine vermelha envidraçada na rua, sob uma árvore, um bêbado olhava-me o tempo todo e queria falar comigo; ele rodava em torno da jaula de vidro, parava de tempos em tempos, um pouco assustador, com um ar solene, como que para pronunciar um julgamento), sua voz mais próxima que nunca. A chance do telefone – nunca perder uma ocasião –, ele nos devolve a voz, em algumas noites, sobretudo de madrugada, melhor ainda quando ela está só e o aparelho nos cega de tudo (não sei se já lhe disse que, ademais, freqüentemente fecho os olhos ao falar contigo), quando ela passa bem e o timbre reencontra uma espécie de pureza “filtrada” (é um pouco neste elemento que imagino o retorno das assombrações, pelo efeito ou pela graça de uma triagem sutil e sublime, essencial – entre os parasitas, pois só há parasitas, você sabe, portanto as assombrações não têm nenhuma chance, a menos que haja apenas, desde os primeiros “vem”, assombrações. Percebi outro dia, durante um pequeno trabalho, que esta palavra “parasita” havia se imposto a mim um número incalculável de vezes, durante anos, de  “capítulo” em “capítulo”. Ora, eis que parasitas podem se amar. Nós

É este timbre que você me envia então, sem nenhuma mensagem, nenhuma outra que conte, e eu bebo e afogo-me no que bebo. E contudo me reúno a isso a cada vez, e de uma vez à outra. Sou todo este timbre, esta série, esta conseqüência de todas as vezes… Contudo, enquanto falava comigo com este sentimento de proximidade alucinada (mas separada e mesmo a separação era boa), eu fixava o bêbado inglês, não tirava os olhos dele (ele vestia uma espécie de uniforme), olhávamos-nos, perdão, com uma atenção que minha infinita distração não perturbava em nada. Estava certo de que ele se parecia com alguém (como ainda acredito, não?) mas impossível saber com quem, ainda agora. Perdão mais uma vez (terei passado minha vida lhe pedindo perdão), não havia pensado no fuso horário.

Mas escrevo-lhe amanhã, digo isto sempre no presente.

5 de junho de 1977.

Gostaria de escrever tão simplesmente, tão simplesmente, tão simplesmente. Sem que nada nunca chamasse atenção, salvo a sua unicamente, e ainda assim, apagando todos os traços, mesmo os mais inaparentes, os que marcam o tom, ou a pertença a um gênero (a carta, por exemplo, ou o cartão-postal), para que a língua sobretudo permaneça secreta à evidência, como se ela se inventasse a cada passo, e como se pegasse fogo imediatamente, assim que um terceiro colocasse os olhos nela (aliás, quando você vai aceitar que nós próprios queimaremos tudo isso?). É um pouco para “banalizar” o número da tragédia única que prefiro os cartões, antes cem cartões ou reproduções no mesmo envelope, a uma única “verdadeira” carta. Ao escrever “verdadeira” carta, lembrei-me da primeira carta vinda de você, que diria exatamente isto, gostaria de ter respondido imediatamente a ela, mas ao falar de “verdadeiras cartas”, você me impedia de escrevê-las

“Envio-lhe novamente Sócrates e Platão minha pequena ­apocalipse de biblioteca. Sonhei novamente com o inglês titubeando em torno ­do telefone: ele esfregava um lápis novo numa caixa de ­fósforos e eu tentava impedi-lo. Ele corria o risco de queimar sua barba. Então ele gritou seu nome com um sotaque estranho e   Ainda
não me restabeleci desta catástrofe reveladora.: Platão atrás de Sócrates. Atrás ele sempre esteve, achava-se, mas não desta ­maneira. Eu sempre soube, e eles também, eles dois, quero dizer. Que casal. Sócrates vira as costas para plato, que fez com que ele escrevesse o que ele próprio queria, fingindo que recebia isto dele. Vende-se aqui esta reprodução como post card,

você viu, com greetings e address. Sócrates escrevendo, você se dá conta, e num cartão-postal. Eu não sei nada além do que diz a lenda a esse respeito (é então tirado de um fortune-telling book, livro de astrologia: o futuro, o livro dos destinados, a sorte, o prêmio, o encontro, a chance, não sei, precisarei ver, mas gosto desta idéia), tive vontade de enviá-lo imediatamente a você, como uma novidade, uma aventura, uma sorte ao mesmo tempo anódina e estonteante, a mais antiga e a última.

Uma espécie de mensagem pessoal, um segredo entre nós, o segredo da reprodução. Eles não compreenderiam nada disso. Assim como tudo a que nos destinamos. E, todavia, é um cartão-postal, dois, três cartões-postais idênticos no mesmo envelope. O essencial, se possível, é que o endereço seja único. O que eu gosto no cartão-postal é que mesmo no envelope, ele é feito para circular como uma carta aberta mas ilegível. Escrevo-lhe amanhã mas chegarei provavelmente, mais uma vez, antes da minha carta.  Caso contrário, se eu não chegasse, você sabe o que lhe peço sempre para esquecer, para manter no esquecimento

5 de junho de 1977.

Você me dá as palavras, você as entrega, dispensadas uma a uma, as minhas palavras, voltando-as em direção a você e endereçando-as a você – e nunca as amei tanto, as mais comuns tendo se tornado muito raras, nem tampouco amei tanto perdê-las, destrui-las com o esquecimento no próprio instante em que você as recebe, e este instante precederia quase tudo, meu envio, eu mesmo, para que elas aconteçam apenas uma vez. Uma única vez, você percebe a loucura para uma palavra? Ou para qualquer traço que seja?

Eros na idade da reprodutibilidade técnica. Você conhece esta velha história da reprodução, com o sonho da língua cifrada.

Vontade de escrever uma grande história, uma grande enciclopédia do correio e da cifra, mas de escrevê-la cifrada novamente para despachá-la para você, tomando todas as disposições para que você seja sempre a única a poder decriptá-la (a escrevê-la, portanto, e a assiná-la), a reconhecer nela seu nome, o único nome que lhe dei, que você me deixou dar a você, todo este cofre-forte de amor, suponho que minha morte esteja inscrita nele, ou melhor, que meu corpo esteja preso nele com seu nome sobre a pele, e que em todo caso minha sobrevivência ou a sua estejam limitadas à vida – sua.  E como freqüentemente sem saber

Você me dá a palavra, é mais uma vez você que escreve a história, é você que dita enquanto eu me esforço puxando a língua, letra após letra, sem nunca me virar aquilo que nunca decidirei é publicar algo que não seja cartões-postais, a falar-lhes. Nada me parecerá alguma vez justificá-lo. Adolescente, quando fazia amor contra a parede, e que me dizia a respeito deles – você sabe, eu lhe contei

O que prefiro no cartão-postal é que não se sabe o que está na frente ou o que está atrás, aqui ou lá, perto ou longe, o Platão ou o Sócrates, frente ou verso. Nem o que mais importa, a imagem ou o texto, e no texto, a mensagem ou a legenda, ou o endereço. Aqui, em meu apocalipse de cartão-postal, há nomes próprios, S. e P., acima da imagem, e a reversibilidade se desencadeia, ela se torna louca eu lhe havia dito, a louca é você – a ligar. De antemão, você distorce tudo o que lhe digo, você não compreende nada, absolutamente nada ou então tudo, que você imediatamente anula, e eu não posso mais parar de falar

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