Um herói de videogame

Um herói de videogame
O guerrilheiro, político, médico e jornalista Ernesto Guevara de la Serna (Reprodução)

 

Meu interesse por Che Guevara começou no final da década de 1980, enquanto pesquisava um livro sobre guerrilhas modernas. Havia quase uma geração que o pôster do retrato de Che tirado por Alberto Korda — de boina preta e broche de estrela — enfeitava diversas paredes de dormitórios de faculdade. Essa época chegou a um desfecho inesperado, com o fim do movimento de protesto estudantil quando a Guerra do Vietnã terminou.

Mas nos sertões insurgentes da Birmânia, de El Salvador, do Saara Ocidental e do Afeganistão, Che resistiu no papel de modelo e quase como um símbolo místico de veneração. Ele inspirou novas gerações de guerreiros e sonhadores pelos princípios revolucionários que representava: coragem, abnegação, honestidade e devoção à causa.

Havia poucos livros sobre Che ainda sendo impressos. A maioria tinha 20 anos e era formada por hagiografias oficiais cubanas ou demonizações igualmente cansativas, escritas por inimigos ideológicos. A vida de Che tinha mesmo de ser escrita porque muito dela ainda estava encoberto por sigilo, inclusive as circunstâncias misteriosas de suas horas finais na Bolívia, em 1967. Até o paradeiro de seu corpo era desconhecido.

Quem foi esse homem que abriu mão de tudo que estimava para lutar e morrer em um campo de batalha estrangeiro? Aos 36 anos deixou para trás esposa e cinco filhos, um cargo ministerial e uma posição de comandante para iniciar novas revoluções. E, em primeiro lugar, o que impeliu um intelectual argentino bem nascido, com um diploma de médico, a tentar mudar o mundo?

Desvendando os mistérios da história de vida de Che, seria possível elucidar alguns dos mais fascinantes episódios da Guerra Fria e pôr em um foco mais nítido um de seus personagens centrais.

Parecia-me que as respostas à maioria das perguntas sobre Che permaneciam em Cuba e, em 1992, fui para Havana, onde estive com sua viúva, Aleida March. Contei-lhe sobre meu plano de escrever uma biografia de seu falecido marido e lhe pedi cooperação e assistência. Ela acabou concordando.

Poucos meses depois, me mudei para Havana com minha esposa e três filhos pequenos para uma estadia que se esticou por quase três anos. Era um momento desolador para os cubanos. A União Soviética de repente deixara de existir, pondo um abrupto fim aos generosos subsídios financeiros que sustentaram o país nas últimas três décadas.

Mas, mesmo com a economia do país desintegrando, Fidel Castro mantinha a bandeira socialista obstinadamente erguida e invocava o exemplo de Che, exigindo coragem revolucionária e sacrifícios dos compatriotas.

O maior desafio para mim foi romper a atmosfera beatífica que cercava a memória de Che. Ele foi praticamente o padroeiro de Cuba, e as lembranças das pessoas que o tinham conhecido foram, com frequência, covardemente elogiosas ou, de maneira despudorada, politicamente deterministas.

Foi só quando passei vários meses perambulando pela Argentina na companhia de amigos de infância de Che, do jovem Che Guevara, que o homem começou a emergir como uma figura real. Finalmente, de volta a Havana, me foi dado o acesso privilegiado a alguns de seus diários, até então inéditos, que ajudaram a explicar a transformação do menino no lendário Che.

Certa manhã, em novembro de 1995, quando estava na Bolívia para entrevistar todo mundo que eu achasse ter alguma coisa a ver com os esforços da guerrilha de Che, fui a Santa Cruz para encontrar Mario Vargas Salinas, um general aposentado em seus 50 e poucos anos.

Como um jovem oficial do Exército em 1967, Vargas Salinas tornou-se famoso por liderar a emboscada no rio Masicuri, que eliminou a segunda coluna de Che. Tania, sua companheira alemã, e outros oito guerrilheiros foram mortos. O massacre no Masicuri marcou o início do fim para Che.

Pouco mais de um mês depois, em 8 de outubro de 1967, encurralado em um vale por um grande número de tropas do Exército, Che foi ferido e levado preso. No dia seguinte, sob ordens do alto-comando militar boliviano e na presença de um agente da CIA, foi morto a tiros.

Após o anúncio da morte de Che em batalha, o Exército mostrou seu corpo para o povo por um dia, na cidade vizinha, chamada Vallegrande.

 

As fotografias do cadáver mostravam-no
sem camisa, crivado de balas. Estava deitado
de costas com a cabeça escorada e os olhos
abertos. A semelhança com as imagens de
Cristo morto era evidente para todos.

 

 

Nesta noite, o corpo de Che e de vários camaradas desapareceram. Seus inimigos pretendiam negar-lhe um local de enterro, onde admiradores poderiam prestar homenagens. Mais tarde, um oficial do Exército disse vagamente que o corpo de Che fora jogado de um avião dentro da selva. Outro oficial afirmou que o cadáver fora incinerado.

Mario Vargas Salinas acabou revelando-se um homem excepcionalmente amável e sincero. Acabamos passando mais de três horas conversando em seu jardim murado, em Santa Cruz, e descobri que ele estava disposto a discutir assuntos controversos.

A certa altura, reconheceu que seus soldados executaram um dos combatentes feridos de Che. Sua franqueza levou-me a perguntar sobre o corpo, embora não esperasse realmente uma resposta honesta. Fiquei chocado quando respondeu que queria limpar o passado. Ele disse que, depois que Che foi morto, as mãos foram amputadas. As impressões digitais foram tiradas para preservar a prova física da identidade do corpo, e as mãos, colocadas em formol e escondidas.

Em seguida, um pelotão de sepultamento noturno, do qual Vargas fazia parte, despejou secretamente os corpos de Che e de vários de seus camaradas em uma vala comum. A sepultura foi escavada na pista de pouso de Vallegrande.

Quando escrevi para o New York Times um artigo sobre a confissão de Vargas Salinas, o efeito na Bolívia foi dramático e imediato. O presidente Gonzalo Sanchez de Lozada disse ter ouvido que inventei toda a história depois de ter embebedado Vargas Salinas, que, por sua vez, nesse meio-tempo, se escondeu e emitiu uma declaração negando tudo.

Em uma conferência de imprensa em La Paz, adverti que tinha uma gravação da entrevista, e sugeriram que o general poderia estar sob algum tipo de coação. Vargas Salinas logo desmentiu suas declarações e assegurou a exatidão de minha história, mas permaneceu escondido.

Então, em uma incrível reviravolta, o presidente Sanchez de Lozada anunciou que reverteria décadas de sigilo oficial e ordenou que uma comissão fosse formada para encontrar os corpos.

Durante as semanas seguintes, o espetáculo de ex-guerrilheiros, soldados e especialistas forenses escavando buracos dentro e em torno de Vallegrande abriu muitas feridas antigas e revelou os detalhes mais sórdidos de uma época em que os poderosos militares da Bolívia tinham ido longe, de forma muito literal, com os assassinatos.

Dos anos 1960 aos 1980, uma sucessão de ditadores governara o país. Centenas de cidadãos tinham “desaparecido” sob o regime desordenado e muitas vezes brutal. Então, encorajadas pela caça ao corpo de Che Guevara, as pessoas começaram a clamar por justiça e por informações sobre seus entes queridos.

Houve também manifestações de raiva de ex-soldados que lutaram contra o grupo de Che, quando jovens recrutas, e que em alguns casos sofreram ferimentos graves e não receberam pensões por invalidez ou quaisquer outras. Eles também exigiam seus direitos.

O passado fora agitado. Os chefes militares bolivianos cumpriram a ordem do presidente, mas ficaram furiosos com Vargas Salinas por sua traição. Ele foi levado a Vallegrande em um pequeno avião e, enquanto passeava ao redor da pista de pouso, flanqueado por dois sisudos generais do Exército, uma parede de repórteres se aproximou.

Depois de 30 minutos, declarou que não poderia identificar o local do sepultamento de Che. Fora há “muitos anos”. Ele e seus acompanhantes voltaram para o avião e voaram para longe. Dias depois, espalhou-se a notícia de que o Exército colocara Vargas Salinas em prisão domiciliar. Isso aconteceu vários anos antes de termos notícias dele novamente.

Os esforços na busca em Vallegrande inicialmente não deram em nada. Após várias semanas infrutíferas, os generais no comando da missão deixaram claro que queriam parar de procurar e partiram para La Paz a fim de apresentar o caso ao presidente.

No entanto, poucas horas depois de partirem, alguns camponeses locais, que até então tiveram um medo enorme de se manifestar, revelaram a localização de uma região de desova, da qual sabiam da existência havia anos. Era um lugar solitário na floresta, a aproximadamente quatro quilômetros da cidade.

 

 

Não demorou muito para se
confirmar o que tinham dito.
Lá, em várias covas rasas,
estavam os restos de quatro
camaradas de Che.

 

 

A descoberta de última hora pôs fim à estratégia dos militares de dar a impressão de que estavam dispostos a levar a situação às últimas consequências para desmentir a acusação a que foram submetidos.

A busca foi retomada com vigor renovado, mas, em pouco tempo, as pistas esfriaram novamente. Nada aconteceu por outros 16 meses, até que, em julho de 1997, o esqueleto de Che foi finalmente descoberto por uma equipe forense de cubanos e argentinos. A conspiração de 30 anos de fraude enfim acabou.

O esqueleto estava junto com outros seis, no fundo de um buraco sob a pista de pouso de Vallegrande, como dissera Vargas Salinas. Che estava completamente estendido, ao longo da base do poço, virado para cima, como se um cuidado especial tivesse sido tomado ao colocá-lo ali. Os outros corpos foram jogados desordenadamente em uma pilha bagunçada perto dele. As mãos de Che foram amputadas na altura dos pulsos.

Os restos foram exumados, colocados em caixões e levados para Cuba, onde foram recebidos em uma emocionante cerimônia privada, que incluía Fidel e Raúl Castro.

Após três meses, em 10 de outubro de 1997, no início de uma semana de luto oficial em Cuba, Fidel e Raúl prestaram suas homenagens formalmente. Os caixões de Che e de seus seis camaradas ficaram expostos com toda a pompa no monumento José Martí, um obelisco no centro da Plaza de la Revolución, em Havana

No período de poucos dias, estima-se que 250 mil pessoas esperaram alinhadas por horas na fila para vê-los. Crianças deixavam cartas para Che. Chorando, homens e mulheres recitaram poemas e entoaram canções revolucionárias.

Em seguida, os caixões cobertos pela bandeira foram conduzidos lentamente em uma carreata à cidade de Santa Clara, que Che havia conquistado na última e mais decisiva batalha da guerra revolucionária de Cuba, quase 40 anos antes. Ele e os companheiros foram enterrados em um mausoléu construído para honrar o heroico guerrilheiro.

Revisei esta edição de meu livro no cinquentenário da Revolução Cubana (1959). Parecia um momento adequado para aprimorar e atualizar a biografia de Che e pensar sobre o que ele significa para uma nova geração de leitores. Agora, seus camaradas sobreviventes são homens idosos, e Cuba está chegando ao fim de uma era. Para melhor ou para pior, a revolução é parte do legado de Che, embora ele já o tenha transcendido.

O rosto de Che e seu nome têm sido estampados em pranchas e relógios e em milhões de camisetas. Mas o que exatamente o Che mitificado e mercantilizado representa? É quase certo que, o que quer que signifique a imagem, pouco tem a ver com o próprio Che. O Che Guevara ressuscitado − bonito, com cabelos compridos e olhos brilhantes − é, em muitos aspectos, tão irreal quanto os heróis e vilões virtuais de um videogame.

O verdadeiro Che Guevara, que tinha apenas 39 anos quando morreu, foi canonizado e demonizado. Por mais que os fatos de sua vida sejam documentados, suspeito que seus paradoxos e seu lugar na cultura popular garantirão que isso seja sempre assim. Mas nenhuma escola de opinião jamais será capaz de reivindicá-lo inteiramente. TRADUÇÃO de M. H. C. Côrtes


JON LEE ANDERSON é jornalista e escritor, autor de Che Guevara: uma biografia (Objetiva, 2012)

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