Um embotamento histórico
(Imagem: Reprodução/ Johann Moritz Rugendas)
Se, como disse Sérgio Buarque de Holanda, o Brasil nunca teve conservadores, mas sim “gente atrasada”, uma boa explicação para tal proeza reside no fundo anti-iluminista e incivil de nossas classes dominantes. Um embotamento histórico-cognitivo ditado pela reinvenção moderna do escravismo, responsável por uma formação social compósita que dispensava, na prática, a classe proprietária de qualquer esforço, incluindo o trabalho do pensamento, preterido pela força bruta sempre à mão. A fascinação do jovem Bentinho pela destreza mental de Capitu e Ezequiel, bem como a liquidação sumária que, mais tarde, o casmurro proprietário promoveria de ambos, diz muito do ressentimento obscurantista como emblema de um travejamento histórico. A permanência dessa estrutura originalmente perversa de subjetivação, como se sabe, foi denunciada por Joaquim Nabuco, cujo libelo alertava para os efeitos ruinosos de um sistema já diluído no sangue dos brasileiros. Machado e Nabuco são dois casos exemplares de traição de classe, mas essa propriamente não era a regra geral.
A regra geral da vida espiritual brasileira, até meados do 19, era o silêncio sobre o modo de produção do país. A ausência sedimentava o embotamento do mundo conservador brasileiro, no qual o pensamento trabalhado, tão próprio da dinâmica ativa das luzes, não tinha como germinar. O que germinou, então, foi uma civilização sui generis, perversamente mais direcionada para o gozo irresponsável do que para uma vida regulada pela produção simbólica.
Em seu mais recente livro, O soldado antropofágico: escravidão e não-pensamento no Brasil, Tales Ab’Sáber mais uma vez procura intervir a quente no debate público, ao se propor desvendar as raízes históricas da geopolítica psíquica do Brasil de hoje, às voltas com a destruição programática promovida pela selvageria bolsonarista. Para dar conta dessa manifestação local de fascismo contemporâneo, o autor se debruça sobre um problema histórico de longa duração: a lógica senhorial-escravista que formou a subjetividade brasileira, mentalidade revigorada pelo tempo da perpétua emergência, quando a elite e seus apaniguados, desobrigados de qualquer gesto de civilidade, não precisam mais ocultar o seu desprezo radical pelos de baixo − o que, afinal, sempre fez parte do contrato. O ensaio mostra esse fundo autoritário e bárbaro atravessando séculos como um processo sem freio, uma ordem prévia e um desejo às vezes reprimido, mas constitutivo, da mentalidade nacional. Trata-se de mapear, como afirma o próprio autor, a nossa “veneranda tradição desmiolada”, cuja consequência prática é o ódio a qualquer tipo de pensamento e ação autônomos.
Se no momento de formação do Estado nacional o pensamento sobre a escravidão não encontrava continente simbólico no todo da cultura brasileira, não menos notável é o fato de que uma obra quase isolada do período tenha visto o que os próprios brasileiros não quiseram ou não puderam ver. O relato de viagem O Rio de Janeiro como ele é, escrito pelo mercenário alemão Carl Schlichthorst, prima pela disposição de espírito de quem consegue se deixar tocar pelas ambiguidades do país nascente ao mesmo tempo que se desilude do mundo civilizado. O ensaio mostra-nos um Schlichthorst sem pretensões literárias, mas capaz de perceber o estatuto singular da nossa biopolítica, em que os corpos se contrapunham na violência social ao mesmo tempo que participavam de um jogo erótico oscilante entre a preguiça senhorial e a sensualidade desenfreada. O olhar para as ruas, para a dinâmica em torno dos escravos de ganho, para as táticas de sedução e autoafirmação permitiram ao viajante não apenas enxergar o elemento popular e seu modo de vida, vendo com olhos livres o que a elite local ignorava, mas também confrontar a realidade observada com a norma burguesa, procedimento que, artisticamente trabalhado, daria a tônica da ficção machadiana.
É assim que o viajante pôde ter uma intuição concreta do que viria a ser o “povo brasileiro”: uma civilização precária construída em um espaço social rarefeito no qual, nos interstícios da vida dominada, se libertavam potências criativas como mecanismo compensatório do terror – flexibilidade adaptativa inserida plenamente na lógica da circulação do capital, já que era preciso garantir nas ruas as somas diárias esperadas pelos senhores. Nesse sentido, coube ao soldado-viajante atentar, naqueles primeiros tempos, para o ordenamento da realidade e para a criação artística que se produzia nas ruas, por meio da música, do canto e da dança. A constatação desse universo animado, que já existia em profundidade histórica, é um dos achados do livro, ao vincular a expressão cultural possível daquele momento com o que viria a florescer, um século mais tarde, como cultura brasileira moderna.
Permeada de contradições, a precariedade entrevista pelo soldado chegaria ao século 20 com os primeiros modernistas, o cinema marginal, os parangolés de Oiticica e sambas de Ismael. Por isso, a polêmica questão de fundo proposta pelo ensaio parece ser a de uma reflexão sobre os modos de simbolização das camadas subalternas, as negociações possíveis no interior da dominação bruta e a potência criativa que, malgré tout, emerge como forma de resistência nem sempre eficaz ou consciente, mas cheia de ambivalências, de modo a sinalizar a miragem de um país integrado. Se a reflexão de Tales não corrobora a positivação modernista, tampouco envereda pela leitura apocalíptica, o que não deixa de ser um ato corajoso. E, neste momento de catatonia geral, põe em discussão uma dimensão semiesquecida de potência criativa e ambivalente da qual, sintomaticamente, parte da intelectualidade sempre tratou de desviar.
Replicando o gesto desalienador do alemão em relação à barbárie ínsita às “baixas latitudes”, Tales Ab’Sáber oferece ao leitor um ensaio instigante, especialmente pela precisão com que diz do nosso fascismo tupinambá em pleno ato.
Fabio Cesar Alves é professor de Literatura Brasileira na USP e autor de Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro.