Um conto de duas universidades
Quando a lógica mercantil se sobrepõe à construção do pensamento crítico e reflexivo
Álvaro Bianchi e Ruy Braga
O sistema de ensino superior brasileiro encontra-se profundamente tensionado. Nos últimos vinte anos o número de alunos matriculados nas universidades brasileiras aumentou mais de três vezes, mas dois terços desse crescimento coube às instituições particulares. A diferença entre instituições públicas e privadas é nítida: enquanto nas primeiras ainda é possível encontrar a pesquisa e a extensão ao lado do ensino, as universidades privadas funcionam como colégios de terceiro grau, contribuindo de modo insignificante para a produção de novos conhecimentos.
Ao invés de representar uma democratização do acesso ao ensino superior, o predomínio das universidades particulares na oferta de vagas reproduz precisamente as clivagens sociais presentes na sociedade brasileira. A busca dos saberes técnicos e profissionais que caracterizavam os setores mais qualificados da classe trabalhadora deu lugar à procura por um diploma de direito ou administração de empresas de uma universidade privada. Mas, enquanto no passado o detentor de um diploma do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial estava dando um passo decisivo para conquistar uma posição distintiva na fábrica, não há garantia alguma de que o portador de um título de uma universidade de segunda linha consiga melhorar sua condição laboral.
Para os trabalhadores e seus filhos, a promessa de uma vida melhor mediante a obtenção de um título superior continua sem se realizar. O fracasso é socialmente construído,
como bem argumentaram Stéphane Beaud e Michel Pialoux em seus trabalhos. Especialmente no livro 80 % au bac… et après ? Les enfants de la démocratisation scolaire, Stéphane Beaud demonstra como a palavra de ordem “80% de uma geração no baccalauréat” (um exame aplicado logo após a conclusão do ensino médio na França que credencia o estudante aprovado a prosseguir nos estudos universitário, lançada pelo governo de François Mitterrand em 1985, serviu para desestruturar o mundo social das classes trabalhadoras francesas.
Objeto de um verdadeiro consenso social fabricado durante os anos 1980 na França, essa palavra de ordem expressava a conversão ao pragmatismo de um governo que identificou na valorização do ensino médio pré-universitário e na desvalorização do ensino médio profissionalizante formas de regular o desemprego massificado dos jovens franceses. Naturalmente, tal política alimentou uma série de esperanças de uma possível ascensão social para os filhos dos trabalhadores semiqualificados, especialmente os trabalhadores imigrantes, em um contexto marcado pelo aumento da insegurança social promovido pelo neoliberalismo.
Stéphane Beaud analisou profundamente em seu livro as ilusões e desilusões dos chamados “filhos da democratização escolar” atirados na rota incerta de um interminável período de formação. Assim, o sociólogo francês perscrutou a tensa relação produzida por essa política de massificação dos ensinos médio e superior entre, de um lado, a elevação global dos níveis de formação e a ascensão social para alguns, e, de outro, os dramáticos custos simbólicos e psicológicos daqueles filhos de trabalhadores, especialmente imigrantes, cada dia mais distantes do mundo do operário, sem, contudo, conquistar no mercado de trabalho os tais empregos típicos de classe média prometidos pelo governo.
Mas não encontraremos essa tensão entre as promessas do progresso e a realidade da degradação social apenas no mercado de trabalho francês. Se voltarmos os olhos para o Brasil, por exemplo, perceberemos que também no interior das instituições públicas de ensino e pesquisa é possível encontrar “núcleos de excelência”, “laboratórios de referência”, “carreiras do futuro” e “institutos do milênio” coexistindo com a deterioração de equipamentos, recursos escassos, alunos frustrados e professores extenuados. Enquanto as agências de fomento canalizam recursos para uns poucos cursos de pós-graduação de reconhecida qualidade, as graduações e as licenciaturas muitas vezes vinculadas às mesmas faculdades e de qualidade também reconhecida não encontram verbas para seus projetos.
Lucratividade a curto prazo
A tensão é decorrente da imposição de uma lógica mercantil às atividades de ensino e pesquisa. Os critérios de eficácia quantitativa e monetariamente avaliada imperam no mercado. Esses critérios já mostraram mais de uma vez que podem servir para orientar a aquisição de fortunas, mas apresentam graves problemas quando se trata de avaliar bens intangíveis ou inquantificáveis, como o bem-estar, o prazer e a felicidade. São também inapropriados para orientar a produção de conhecimento e as atividades de pesquisa e ensino associadas a essa produção.
Mas são a possibilidade de imediato retorno dos recursos investidos, o registro de patentes e a venda de novos produtos ou serviços que orientam parte significativa dos esforços desenvolvidos nas universidades brasileiras. Empresas privadas canalizam seletivamente recursos para essas instituições obtendo como contrapartida direitos sobre os resultados de pesquisas. Fundações semiprivadas recebem esses recursos e os utilizam sem prestar contas de acordo com os critérios de transparência que regem a administração pública. Os correntes escândalos nos quais essas fundações se encontram envolvidas revelam uma pequena parte dos obscuros negócios dos quais tomam parte.
Trata-se de uma característica do regime de acumulação sob o domínio do capital financeiro que se consolidou mundialmente nos anos 1990: com o aumento da concorrência em escala global e o consequente estabelecimento de novos critérios de governança corporativa, os diferentes sistemas nacionais de pesquisa – sejam eles estatais, semipúblicos ou privados – passaram a ser pressionados por resultados de curto prazo. Os investimentos tangíveis ou intangíveis em pesquisa distanciaram-se daquela experiência histórica sustentada por um tipo de compromisso com horizontes de longo prazo que foi assegurado até meados dos anos 1980, tanto nos países de capitalismo avançado quanto em alguns países de capitalismo semiperiférico.
O modo de financiamento da pesquisa e o modo de organização do campo científico, de uma certa maneira, constituem as duas faces da mesma moeda. Em muitos países, inclusive no Brasil, o regime disciplinar de produção e difusão do conhecimento científico organiza-se em torno de agências governamentais que operam em uma permanente interface, por um lado, com o sistema de pesquisa e, por outro, com empresas estatais ou corporações vinculadas aos principais oligopólios nacionais. A financeirização econômica é o fator que explica os “ajustes” nos sistemas de pesquisa em benefício da lucratividade de curto prazo.
A chamada Lei de Inovação Tecnológica (Lei no 10.973), regulamentada pelo presidente Lula em outubro de 2005, é um exemplo dessa orientação política baseada em ajustes progressivos do sistema de pesquisa. Por meio dessa lei, o Estado brasileiro promoveu a criação e a consolidação de laços entre universidades, institutos tecnológicos e empresas, estimulando a participação de institutos de ciência e tecnologia no processo de inovação empresarial. Além disso, a Lei de Inovação criou todo um arcabouço jurídico capaz de viabilizar a incubação de empresas no espaço público ao estimular a utilização da infraestrutura pública para fins de desenvolvimento tecnológico privado.
Em termos globais, essa lei coroou o processo pelo qual o poder da acumulação capitalista sob domínio das finanças e a consequente pressão sobre o sistema nacional de produção e difusão de conhecimento científico aprofundaram a alienação das atividades acadêmicas. A instrumentalização do financiamento público da pesquisa científica pelos oligopólios domésticos e o deslocamento do controle estatal para o controle do mercado implicaram alterações significativas no nível, nos objetivos, nas prioridades e no horizonte de tempo dos investimentos relacionados à pesquisa.
A perda da autonomia
Um subproduto dessa orientação é a crescente perda de autonomia das atividades acadêmicas. De fato, não deixa de ser curioso que o trabalho científico tenha se mostrado menos refratário à organização fabril do que poderíamos imaginar, como, aliás, já observara Harry Braverman em sua conhecida obra intitulada Trabalho e capital monopolista. Na verdade, a forma industrial que transformou o conhecimento científico no principal motor de produção do valor excedente desde o final do século 19 foi aprofundada pelo advento do regime de acumulação global dominado pelo capital financeiro.
Atualmente, quer estejamos analisando laboratórios de empresas públicas voltadas para a inovação, quer estejamos estudando o processo de incubação de empresas tecnológicas financiadas por agências de fomento à pesquisa em universidades de excelência, encontraremos a mesma lógica produtivista que controla as corporações privadas regulando o trabalho científico e acadêmico por meio da aceleração dos ciclos, do estabelecimento de metas, da organização por “unidades de negócios”, da formação de equipes e da flexibilidade do trabalho intelectual. Isso sem falar na pressão quase “taylorista” exercida sobre os pesquisadores para patentear novos processos e produtos ou publicar dezenas de artigos em revistas indexadas.
Na distopia produtivista do administrador Frederick Winslow Taylor, o trabalhador ideal era um gorila amestrado, capaz de reproduzir de modo automático um conjunto muito simples de movimentos no menor tempo possível. Na distopia da universidade neoliberal, o pesquisador deve se submeter a um conjunto determinado de rotinas intelectuais no menor tempo possível. Se num caso se empilha carvão e no outro se produz um paper, tanto faz, pois o modo de organização do tempo de trabalho não difere em muito.
O modo de avaliar o resultado também não. Ao final de um certo período, contabiliza-se o total produzido: ou toneladas de carvão ou artigos publicados. No caso da
ciência, os resultados obtidos poderão encher de satisfação a burocracia acadêmica, mas dizem muito pouco sobre o conhecimento realmente produzido no Brasil. A seleção dos destinatários dos recursos disponíveis segundo essa lógica mercantil e produtivista poderá condenar a produção científica feita no Brasil à irrelevância.
Por outro lado, longe da realidade dos setores considerados de ponta, os cursos de graduação das áreas das ciências humanas e, principalmente, aqueles voltados para a formação de professores vivenciam a realidade marcada por um dos aspectos contemporâneos mais perversos da lógica mercantil: a desvalorização tanto dos ensinos fundamental e médio quanto das atividades acadêmicas e científicas voltadas à formação de professores. Nessa desvalorização encontraremos parte substantiva das razões capazes de explicar a atual revolta estudantil nos cursos de pedagogia e de ciências humanas.
Enquanto prevalecer essa tensão no sistema superior de ensino e pesquisa produzida pela lógica mercantil financeirizada e globalizada, a evidente crise da universidade não terá fim e o conto de duas universidades não chegará a seu desfecho. Para que a universidade brasileira reencontre o caminho que a torne relevante tanto em termos sociais quanto em termos científicos, ela precisa urgentemente se reconciliar com o conhecimento crítico, reflexivo e, por isso mesmo, insubmisso aos interesses mercantis. Caso contrário, estaremos condenados a simplesmente reproduzir as desigualdades que historicamente marcaram a universidade brasileira.