Um canto maior que todo o medo
Fotos: Bob Sousa
“Por isso o cantor deve andar com o rei.
Os dois moram nas alturas da humanidade”.
Schiller. A donzela de Orléans.
Escrita e dirigida por Milton Morales Filho, Cor de chumbo é daquelas peças de teatro que se convertem em espetáculos despretensiosos, contando com poucos recursos de produção e realizados em espaços exíguos nos quais transita um elenco diminuto. Poder-se-ia mesmo dizer que se trata de um espetáculo-solo da atriz e cantora Lilian de Lima, mas isso seria um tanto quanto indelicado com o pianista que a acompanha em cena, Thito Neves, com quem a intérprete acaba estabelecendo uma boa relação de contra encenação. Não falta a ambos – cada um em sua especialidade, naturalmente – segurança e expressividade na execução de um grupo de canções compostas para a montagem não somente por William Guedes (que assina ainda a direção musical) e Rodrigo Mercadante, mas também pelos próprios Milton Morales Filho e Lilian de Lima.
O entrecho dramático é linear. Uma cantora, Patrícia, ensaia com seu pianista o show que irá apresentar dentro de alguns instantes na casa noturna que ela mesma administra, assemelhada a um cabaré. A época em que se passa a ação é a primeira metade dos anos 1970, quando o regime militar que tomou o governo do país por meio de um golpe de estado deflagrado em 1964 mostra sua face mais violenta. Ao começar o espetáculo, Patrícia espera, entre tensa e ansiosa, que naquela noite seu amante vá assistir ao show. Casado e bem posicionado na vida, ele mantém uma relação bastante longeva com a cantora, sendo inclusive o proprietário daquela casa noturna, cuja escritura está prometendo passar muito em breve para o nome dela. Trata-se de um típico indivíduo de posição social superior que submete a amante a certos caprichos e alguma dose de violência. Um detalhe chama logo a atenção: o homem que a cantora espera é um general do Exército brasileiro.
Escrita em 2006, a peça era destinada originalmente a cinco atores e dois músicos, tendo sofrido em 2014 a mudança radical que a fez transformar-se em um recital para piano e voz – formato que não abandona, no entanto, a carga de narratividade solicitada pela empreitada. Não se conhece a versão anterior, mas esta ora apresentada tem inúmeras qualidades, nascidas da situação nuclear muito potente colocada em cena. E sustentadas pelo especial talento da atriz e cantora Lilian de Lima. Comecemos pela dramaturgia. O texto de Milton Morales Filho opta por tocar em um assunto tão importante – a ditadura militar brasileira que vigorou de 1964 a 1985 – mas, de certa maneira, já apropriado pela indústria cultural (filmes, novelas e minisséries de TV incumbiram-se devidamente de reduzir esse período histórico a um bom número de imagens estereotipadas e de clichês), por um viés bastante original: uma relação amorosa entre uma mulher comum e um militar de alta patente, cujas nuances paulatinamente reveladas estão impregnadas de simbologia política.
A despeito de haver menções aqui e ali sobre a dura repressão vivida no período e de ser transmitido em off o áudio em que o então presidente Arthur da Costa e Silva conduz, no dia 13 de dezembro de 1968, a reunião do Conselho de Segurança Nacional que iria decretar dali a instantes o AI-5, o assunto principal da conversa de Patrícia com seu pianista gira em torno do general como um homem comum, o amante de uma cantora e atriz. Ou seja, um militar está sendo retratado em seu comportamento civil. Assim como esta, uma série de outras ambivalências sustentam o texto e disparam em direção à plateia os modos de produção de sentido a que se pretende, de modo muito sutil, chegar.
Conforme já dito, o espetáculo é um misto de narrativa e recital, que investiga como cada uma dessas linguagens pode tocar o intangível de uma experiência histórica terrível, como o mais recente regime totalitário que se abateu sobre o País (houve outros, não se pode esquecer) – experiência essa ainda de todo não encerrada, não digerida e não compreendida como seria de se desejar. (Já que “esperar” é um verbo circunscrito a uma ordem ética muito longe de ser praticada no Brasil, vide a quantidade de cidadãos descerebrados que volta e meia bradam pelo retorno do regime militar). A cada vez que a loquacidade de Patrícia falha, a música se apresenta como outra possibilidade de comunicação, mas ela mesma, linguagem musical, também não consegue dar conta de perscrutar o coração das trevas. A narratividade de que faz uso a atriz descamba constantemente para o circunstancial e para o humor; assim como as canções interpretadas pela cantora, mesmo as mais densas, estão aprisionadas pela moldura do show business. “A dor da gente não sai no stand up, nem no musical”, arremedaria o poeta. Uma exceção se dá com a sempre bela “Cala a boca, Bárbara”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, canção inserida à força no roteiro, disposta a mostrar o fosso ideológico que separa a frivolidade de uma vedete-cortesã da eloquência de uma atriz-cidadã.
Outra rija anfibologia se dá entre a relação de dependência instaurada em cena entre a cantora e o pianista (matizada, vale notar, por constante rispidez), cuja natureza faz ecoar, por sua vez, a ligação de Patrícia com o general. Assim, há um homem presente em cena e outro fora dela, ausente, em torno do qual Patrícia orbita, entre acolhida e preterida. Do mesmo modo que ela – Patrícia, a “compatriota”, a “conterrânea” – transita ainda em torno de um país que ama, mas que não lhe trata com todas as dignidades desejáveis. A duplicidade aqui é a prova dos nove e contamina todas as esferas temáticas e formais. Os espectadores estão ali reunidos na condição de observadores indiscretos que assistem ao que ocorre no palco por uma espécie de buraco de fechadura. Todos chegamos lá um pouco antes de a casa ser aberta, mas é para nós, finalmente, que se dirige a cena que encerra o espetáculo – burlesca, efusiva, apoteótica, falsamente espetacular e, por isso mesmo, tragicômica. “Que tipo de plateia somos nós dos acontecimentos que nos circundam, sejam eles os dramas de consciência mais privados, sejam as mais públicas demonstrações de hipertrofiada alegria e retumbante alienação?”, parece querer indagar a encenação.
Boa parte do sucesso da empreitada se deve ao notável talento de Lilian de Lima, atriz e cantora de voz e presença corporal magnéticas. Co-fundadora do grupo Núcleo Toada (que, antes de Cor de chumbo, concebeu os espetáculos musicais Uma toada para João e Maria, o amor segundo Chico Buarque e Segunda toada para João e Maria, Chico Buarque Lado B), Lilian também faz parte da Cia. do Tijolo, tendo encarnado com muita maestria a “trágica, comovente, retesada no corpo e na alma” Marian Pineda da Cantata para um bastidor de utopias. Trata-se de uma atriz bastante madura tecnicamente, que sabe controlar com muita eficiência os efeitos de dramaticidade, alternando-os com golpes de humor igualmente poderosos – que lhe exigem ir da blague à desfaçatez com a mesma performatividade. É bom saber que a jovem geração de Lilian de Lima conta em suas fileiras com atrizes e atores como ela, de tamanho preparo técnico e de admirável energia artística, conjugados, é preciso destacar com todas as letras, a uma mais do que necessária postura ética e política.
Em tempos em que o acinzentado que ficou para trás quer retornar cinicamente, disfarçado de cor-de-rosa, e aquilo que muito pesou sobre nossas cabeças e nossos corações mal dissimula seu rancor contra a leveza que hoje é nossa companheira, exercitar a mediação da memória é fundamental. Cor de chumbo é uma pequena radiografia de como um tipo de mentalidade encarnada por pessoas comuns – artistas mais na vida do que nos palcos – deu sustentação a um período histórico terrível, autorizado com a anuência da grande maioria, sob a farsesca condição de amor à pátria. E serve de alerta para o tipo de simploriedade política que nos circunda hoje. A ser combatida pela via da sensibilidade e da mais nobre intelecção. Não desejemos aos “patrioteiros” de ocasião – órfãos dos únicos componentes emocionais com os quais sabem lidar: repressão e violência – aquilo que eles tão cruelmente ensejam para nós: que levemos, real ou metaforicamente, o chumbo grosso da opressão. A eles, pelo contrário, ofereçamos a consciência política que a arte da cena é capaz de articular de modo tão especial, indo do chumbo ao ouro, da escuridão à luminosidade, da inconsciência ao esclarecimento. Dos resquícios da ditadura que é preciso matar todo dia às liberdades arduamente conquistadas que diariamente florescem. Pra não dizerem depois que o teatro político contemporâneo não foi capaz também, dentre outros assuntos urgentes, de falar das flores.
Cor de chumbo – Núcleo Toada
Onde: Cia. do Feijão – Teatro – Rua Teodoro Baima, 68 – República
Quando: Até 20 de dezembro; sexta e sábado, às 21h; domingo, às 20h
Quanto: de R$ 20,00 a R$ 10,00
Info: (11) 3259-9086