A vida, um abrir de cortinas, cortinas por onde, jamais cortinas contra: um ano sem Zé Celso
.
A morte de Zé Celso Martinez Correa, há um ano, causou em mim espécie de vazio. Não, não se trata do “nosso vazio constitutivo”, mas alguma coisa sem fundo com um verso que perde o verso seguinte e não pode fazer o enjambement. Pouco tempo depois da notícia, como já esperávamos, Zé Celso partiu em sua viagem. Encantado deve estar encantando o céu. Penso que talvez haja algum tipo de palco armado que tenha aguardado a sua chegada: Gal, Rita, Aldir… não sei. Música e alegria. Como ele defendia em sua profissão de fé. Mas não consigo me sentir alegre – é o vazio que grita. Infelizmente, há certos tipos de vazio que gritam um “silêncio desumano” como escrevi em algum poema. Zé costumava repetir incessante e oswaldianamente que “a alegria é a prova dos nove”, mas nove-vez-fora-nada. Vazio.
Aos poucos é importante mergulhar neste processo de luto, finito, completo. Mas o luto é tão vago e múltiplo para uma poeta, uma crítica literária que está longe de ser psicanalista. Modestamente, posso arriscar uma leitura aqui ou ali, a mobilização de conceitos psicanalíticos em minha prática cotidiana, mas quem me dera agora compreender por que me esvazia tanto a partida do Zé. Consigo no máximo rascunhar este texto que não alcança o sentido do luto, apenas a inspiração para a luta. Já é alguma coisa. Não fomos próximos. Tive o privilégio de vê-lo de perto e até de conversar com ele algumas vezes e – honra maior – estive no mesmo palco que Zé Celso no Teatro Oficina por ocasião do lançamento do Lula Livro – Lula Livre, organizado por Marcelino Freire e Ademir Assunção. Eram tantos artistas ali, tão cruciais para a vida cultural brasileira e eu uma anônima poeta-crítica.
Mas a melhor e mais forte memória é a da última vez que vi Zé Celso. Foi em 2022, na estreia de Esperando Godot no Sesc Pompeia. Daquela noite, que foi das mais poéticas que vivi nos últimos tempos, lembro do lirismo nada comedido de Zé Celso, esfuziante no palco, sob aplausos, antes ou depois do espetáculo, a memória me trai… Zé explode em letras garrafais: “Fora Bolsonaro!”. Não queria escrever o nome deste estandarte do mal aqui, mas é preciso reafirmar sempre esta espécie de frase de esconjuro contra a opressão, o fascismo, o ódio e em seguida é preciso rir. Deste momento, lembro principalmente do som dos aplausos fortes, e da mão que segurava a minha, bem apertado, enquanto a plateia, ainda de máscaras, vibrava com o retorno ao teatro e sobretudo com o que tal retorno representava para a arte e para o Brasil. Sabíamos ali que seria duro, mas venceríamos.
Insisto um pouco na tentativa de circunscrever esta figura imensa, generosa e absolutamente engajada com a defesa do Estado Democrático de Direito brasileiro, com a liberdade e eleição do Presidente Lula, com a vida, com o teatro. Mas ela me escapa. Não sou estudiosa da obra do Zé e não fui sua amiga próxima. Ainda assim, posso dizer que Zé era engajado com o amor também, com o profundo mergulho neste universo que é multifacetado, recortado pelo encanto, pelo fracasso, pelo raso dos dias e pelas luzes do palco, pelo amargo, pelo azedo e pela doçura do alumbramento. Nada disso, porém, explica os gritos do vazio, que busca o verso seguinte para não despenhar no branco do final da linha, diante da notícia da morte do Zé. É simples. Não há explicação porque não há gritos. Como Kafka diante das sereias, o que tenho é o silêncio. A morte é sempre caleidoscópica porque impõe o silêncio, por qualquer ângulo que se a observe. Por isso é agreste o processo de luto; é a palo seco, como no poema de João Cabral, publicado em Quaderna, de 1960:
1.1.
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.
3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.
A morte reivindica o silêncio, o empregar do seco que é mais contundente. Mesmo que tenha sido tão belo e triste, festivo e lírico o adeus a Zé no Oficina, mesmo assim, tudo é o “aceitar do seco” neste momento. É preciso. O silêncio é a voz da morte. Ainda que tudo cante, bigorna, martelo, ferro, araponga, o Bexiga inteiro.
****
Nunca escrevi monólogos e creio que não os faria bem se arriscasse, mas nesse ano em que estive tentando compreender a partida do Zé Celso, em que estive buscando organizar e recortar a algaravia do Real que atravessa a vida pelas frestas da porta, ou pela tela de cristal líquido, ecoando os berros silenciosos deste oco interior, compreendo, aos poucos, que Zé significou o Brasil que precisamos reconstruir: cheio de alegria, de esperanças, de contradições, hiperbólico e profundamente afetivo; Brasil marcado por dias horríveis, sobrepostos uns aos outros desde o Golpe de 2016, agravados profundamente desde 2018 e como não supúnhamos que poderiam se agravar ao longo da pandemia. O Brasil que olha para sua diversidade artística e cultural, para seus Antonios Conselheiros e para seus Abelardos, para esta Roda Viva que nos atravessa pungentemente a partir do teatro. O teatro é a hora e vez. O Oficina seguirá sendo voz. O cante será canto: sempre. E Zé o grito que o galo antes a tecer todas as manhãs.
Tem-se aí alguma pista para o significado desta morte silente, o fato de que a ela se impregna o grito que o Zé antes. E este grito é alegria. A alegria não é a palo seco. A alegria é uma forma infinita de amor. Mesmo que ela seja finita, fugaz e mesmo que para “fazer um samba com beleza seja preciso um bocado de tristeza”. A alegria finca uma espécie de raízes dentro de nós, raízes que protegem, os alegres e as alegres, dos ventos mais adversos, dos versos que buscam os enjambements e que os encontram apenas e se: na alegria.
Esta é sem dúvida a marca (ou insígnia) que Zé Celso deixa em mim. A necessária procura da alegria. No fundo, tenho muito pouco a acrescentar aos grandes textos que comentam sua vida, sua obra, seu legado, seu facho de luz. Persisto aqui nos versos que agora quase encontram seu enjambement, no fundo, a carta roubada acaba encontrando o aparador de cartas sobre a lareira, dizem. Zé, como a carta, não cessa de se repetir, de rir e de ir. Assim:
R IR
(epet)
Não sei. Não sei quanto à carta, a Poe, a Dupin e a Lacan, mas fico com Macunaíma. Espero que esteja bem por aí, Zé, que “Vei a Sol” esteja com você. Obrigada por todas as Muiraquitãs que restam por aqui. Entre as estrelas de um Brasil que reaprende suas constelações e seus significantes, neste palco longo, me despeço de você diariamente, cabralinamente, com a “Fábula de um Arquiteto”: Oficina de construir o aberto, a vida: um abrir de cortinas, cortinas por onde, jamais cortinas contra. Valeu, Zé!
Diana Junkes é poeta e crítica literária. Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora do CNPq.
> Assine a Cult, a mais longeva revista de cultura do Brasil.