entrevista | O sonho como modo de fazer política e como estado de criação

entrevista | O sonho como modo de fazer política e como estado de criação
(Foto: Bob Sousa)

 

Fotos: Bob Sousa

Duas semanas antes de completar 86 anos, no dia 30 de março, o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa recebeu a Cult em seu apartamento, no bairro do Ibirapuera, em São Paulo, para falar de seu mais novo projeto: a adaptação para o palco do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Embora sem a mesma agilidade física de antes, Zé Celso continua imbatível na forma como articula rapidez de raciocínio e destreza verbal. Depois de encenar em 2022, último ano do governo Bolsonaro, uma adaptação do Fausto, de Cristopher Marlowe, na qual o trágico herói “revirava na encruzilhada” daquele Brasil, vislumbrando como saída paródica que o país fosse de todos e Exu estivesse no través de tudo, o diretor quer, neste primeiro ano do governo Lula, falar dos Yanomami a fim de não somente denunciar o massacre que eles vêm sofrendo, como também chamar a atenção para o modo como eles fazem política – através dos sonhos. Uma atividade essencial para as culturas ancestrais.

Você está adaptando o livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, para o teatro. Fale um pouco de como está se dando esse processo, por favor.
Há cinco pessoas reunidas no projeto: o dramaturgo Fernando de Carvalho, o arquiteto e iluminador Pedro Felizes [mestre em Antropologia Social, com dissertação sobre os Pirahã, de Roraima], o ator Roderick Himeros, o maestro Felipe Botelho e eu. Estamos trabalhando juntos, diariamente, desde o dia 1º de fevereiro. Houve outras pessoas que começaram, mas desistiram. É dificilíssimo porque o livro é enorme. Tem 729 páginas e 24 capítulos. Nós estamos na metade, no capítulo 12. Praticamente, a adaptação de cada capítulo leva de dois a três dias, porque eles são muito grandes, com coisas maravilhosas. Nós fazemos uma espécie de garimpagem… (Ao terminar de usar uma expressão tão comum, Zé tem um sobressalto e rapidamente se corrige). Não se pode falar de garimpagem em relação aos Yanomami, não é? A gente faz uma espécie de peneira e vai ficando com as coisas mais fortes. Porque não dá para fazer tudo. Aliás, a impressão é que vai ficar maior do que Os sertões. De toda maneira, não queremos dividir o trabalho em partes como eu fiz com o livro do Euclides. Queremos fazer um espetáculo só. A gente só vai poder planejar o espetáculo depois de pronta a adaptação. Pelo menos a primeira versão. É muito apaixonante o livro. Muito bem escrito. Davi Kopenawa não usa pele de papel, como ele fala, mas concordou em gravar para o Bruce Albert inúmeras conversas sobre essa nação – eu considero uma nação – de cultura riquíssima, os Yanomami. No postscriptum [“Quando eu é um outro (e vice-versa)”], o antropólogo francês relata como o livro foi feito. Primeiramente, eu pensei em adaptar essa parte também para o espetáculo, mas decidi que esse material irá para o programa.

O que o mobilizou na leitura do livro? Por que você resolveu trazê-lo para o universo do teatro?
Faz tempo que eu estou querendo adaptá-lo. Desde a primeira vez que li, eu fiquei muito impressionado porque é uma obra grandiosa. É uma obra do nível de Guimarães Rosa, Euclides da Cunha. É extraordinária, e universal. Por isso, está fazendo sucesso, inclusive, no mundo inteiro. Em novembro do ano passado, eu participei da mesa de abertura da Festa Literária da Morada do Sol [FliSol], em Araraquara, ao lado de Ignácio de Loyola Brandão (nós dois somos de lá). Então, o Eryk Rocha, filho do Glauber, me disse que no dia seguinte haveria uma conversa com o Kopenawa. Eu já o tinha visto falar várias vezes. Aí, durante a conferência, eu perguntei se ele não me daria os direitos de adaptação do livro para o teatro. Ele disse que me daria. E me deu. Então, comecei a trabalhar. O processo todo deve durar mais uns dois meses. O livro é lindo, mas complexo. E muito variado também porque há vários aspectos nele. É um livro muito bem montado pelo Bruce Albert.

Você chegou a pensar no risco de apropriação cultural nesse trabalho?
Não vai haver apropriação indevida. Eu vou trabalhar com os Yanomami. Eu não vou trabalhar com atores fazendo o papel dos indígenas. Quero inclusive convidar um daqueles rapazes yanomamis que foram à cerimônia do Oscar entregar a estatueta de Omama, que não é feita de ouro, às atrizes e aos atores vencedores. Ele falou em yanomami. Uma pena que não tenham filmado isso. O elenco será indígena. Serão quatro atores indígenas a fazerem o Davi nas diferentes fases da vida dele. Inclusive uma criança e um adolescente. Eu nunca trabalhei com atores indígenas. Será a primeira vez. Os atores brancos vão fazer os garimpeiros e os missionários, os antagonistas. Felipe Botelho, o maestro, já está estudando a música yanomami, e a ideia é convidarmos músicos yanomamis para fazerem parte do espetáculo. Uma banda yanomami estará no palco. Provavelmente, na dramaturgia eu terei a consultoria de alguém especializado na cultura indígena. No último dia 15 de março de manhã, a Unifesp concedeu o título de doutor honoris causa ao Kopenawa. No mesmo dia, à tarde, o Sesc Vila Mariana o homenageou, abrindo o evento “Efeito Kopenawa”, do qual participaram o Ailton Krenak e a Manuela Carneiro da Cunha, entre tantos outros ativistas importantes. A direção artística da cerimônia ficou a cargo da atriz e pesquisadora da relação entre teatro e povos indígenas Andreia Duarte. Eu participei da abertura do evento e li o primeiro capítulo do livro. O Kopenawa foi muito simpático e me disse: “Você é velhinho, e muito inteligente”. (Risos.)

Como o livro se relaciona com a poética do Oficina?
Eu não penso nisso. A poética do Oficina está em nós que estamos cuidando da adaptação. Mas talvez o elenco de atores brancos não seja necessariamente do Oficina, porque a Camila [Mota] e o Marcelo [Drummond], por exemplo, estão envolvidos em outros projetos.

Para além das coisas específicas de que tratam os espetáculos dirigidos por você, eles também falam sempre das urgências do Brasil…
Pois é, e os Yanomami não são brasileiros. Eles moram no Brasil, mas vieram muito antes dos portugueses.

E nós estamos acabando com eles…
Mas agora com o governo Lula as coisas tendem a melhorar. É um governo muito favorável.

Você está otimista com o governo Lula?
Sim. O ministério dele é luxuoso. Agora temos uma liderança indígena no Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e a Anielle Franco como ministra da Igualdade Racial e o Silvio Almeida como ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania e a Marina Silva como ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Nesse setor, o governo está maravilhoso. O “povo da mercadoria” não dá valor pra isso. Nem nota, mas isso está sendo extremamente importante. Eles trabalham para um outro Brasil. Um Brasil que não atende ao que quer o mercado nem a grande imprensa. Veja o caso da Folha de S.Paulo, que, depois de ter sido por muito tempo um jornal democrático, com a saída do Jânio de Freitas, mudou muito, endireitou. Meu projeto no Oficina era montar Heliogabalo ou O anarquista coroado, de Antonin Artaud. Eu e o Fernando de Carvalho fizemos uma adaptação da peça, publicada pela editora n-1. Mas depois eu achei que nesse momento não cabe. É o momento de trabalhar as questões mais urgentes que estamos vivendo no Brasil hoje. E a grande questão para mim é a crise dos Yanomami. E a presença dos garimpeiros na região. E de seus financiadores. Os garimpeiros ganham miseravelmente, mas o que eles produzem é comprado pela alta burguesia. É a lógica do capitalismo. Ali na terra yanomami há muito capital investido, tanto do garimpo como das missões religiosas. É a fome, a miséria. É Auschwitz. Eu quero fazer esse espetáculo para marcar as transformações tão grandes que estamos vendo surgir no Brasil neste primeiro ano do governo Lula.

A segunda parte – “A fumaça do metal” – talvez seja a mais impactante do livro porque há a denúncia do que está ocorrendo de mais terrível com eles.
O capítulo que fala do massacre é impressionante, porque tem um tratamento bem brechtiano. Primeiramente, ele demonstra que os indígenas ficaram felizes com a chegada dos garimpeiros, porque ganhavam presentes deles. Até que os garimpeiros se enjoam dos yanomamis e começam as agressões, que culminam no massacre. Kopenawa evidencia muito bem o caminho da relação entre os dois grupos, que é muito clara, muito didática. Bem ao estilo de Brecht.

O que nós podemos aprender com os Yanomami? E com Davi Kopenawa?
Tudo. Ele vive na floresta e toma yãkoana, que é um alucinógeno. Ele viaja com os xapiri, que são entidades que ele vê. Praticamente, tudo com o que sonha ele toma como orientação para a vida social. Ele não se baseia na economia, no planejamento. A política dos Yanomami é baseada no sonho, e isso é muito bonito. É uma coisa muito diferente da gente. Eu os entendo, porque durante muitos anos tomei substâncias alucinógenas – ayahuasca, mescalina, peyote – para criar. Eu criei muita coisa. E passei a acreditar muito mais nos sonhos surgidos dessas viagens. E eles moldaram meu trabalho. Por exemplo, um espetáculo como As três irmãs foi todo moldado em torno de alucinógenos. Eu me lembro de que nós fomos para a praia de Bangoracea, em Ubatuba, vestidos com os figurinos da peça e tomamos mescalina. Depois, ficamos nus e fomos para o mar e tivemos uma visão pontilhista. Todos nós estávamos pontilhados. Nós nos demos as mãos, enfiamos as mãos na areia e começamos a ser massageados pela areia, sendo envolvidos por uma profusão de cores. Foi uma das experiências mais fortes que eu tive na vida. Eu entendo a yãkoana, porque quando eu tomava essas substâncias todas eu sonhava muito, mas sonhava com o teatro. Os Yanomami se baseiam em todos os sonhos alucinógenos como se fossem a constituição deles. Eles partem daí e se organizam através dos sonhos. Eu conheço esse estado de criação.

Zé, você faz um teatro que podemos chamar de sapiencial. Um teatro que parte de um profundo entendimento sobre as coisas e que procura transmitir um saber ancestral à plateia. Você seria uma espécie de xamã do teatro brasileiro?
Não sei… Na cultura yanomami, o xamã transforma o que sonha em realidade política. Eu fui desenvolvendo a percepção das coisas em que eu acredito. As minhas peças são a materialização dos sonhos. Se eu não sonho, eu não consigo fazer uma peça. Tenho origens indígenas e também sou muito ligado à cultura negra, ao batuque. Eu gosto muito. Eu ganhei de Mãe Stella de Oxóssi, do candomblé na Bahia, a honraria de “Exu, senhor das artes cênicas”. É um título que me enche de orgulho.

Conhecer o xamanismo pode nos levar a experimentar outros modos de subjetivação?
Sim. E é bonito no livro como o próprio Kopenawa passa por vários processos de identidade. Primeiro, ele quando criança sonha muito e acorda assustado com os sonhos. O padrasto dele, então, vê nisso uma espécie de predestinação para o xamanismo. Não é qualquer indígena que se torna um xamã. O xamanismo é um processo corporal e psíquico a partir da ingestão da yãkoana, o pó da casca da árvore, que leva à viagem alucinatória na qual se veem os xapiri. No espetáculo, inclusive, a gente vai fazer aparecer os xapiri. Nós vamos materializar muitos sonhos dele. Depois, é de uma delicadeza incrível o modo como ele conta que queria ser branco. Ele conta isso com poesia, mas depois sai dessa. Ele passa por vários processos, de acreditar no deus cristão, por exemplo; de acreditar na Funai. Ele vai para a Funai porque ele tinha o desejo de ser branco. E ele não conta nada disso com rancor. É sempre por meio da subjetividade. A subjetividade nessa cultura é muito importante. E resulta na alteridade guerreira.

Como a sua adaptação vai lidar com a imagem apocalíptica: o céu haverá mesmo de cair?
Os Yanomami trabalham para o céu não cair, porque na concepção deles o céu já caiu uma vez. Mas onde ele caiu nasceu a floresta. E na floresta eles trabalham para evitar que o céu novamente caia. É cíclico. Eles sonham com colunas onde moram os espíritos que são bem fincadas na terra e sustentam o céu. A criação dessa imagem no Oficina vai ser muito interessante. A cosmologia indígena está muito ligada à vida cotidiana. A gente aprende muita coisa com eles. E se identifica também. Minha avó era uma indígena que foi capturada pelos bandeirantes em Porto Ferreira. Depois, foi viver em Araraquara (arará kûara, em tupi antigo) e se casou com meu avô português. Já minha bisavó era uma índia louca, que ficava rolando na cama… Eu tenho essas questões já há muito tempo. Quando li o livro, me identifiquei. E ganhei mais experiência. Esse livro está escrito na minha vida. E no meu corpo. Mas é muito difícil. É o desafio maior da minha vida.

Maior do que O rei da vela?
Não tem comparação! N’O rei da vela, o Renato Borghi leu o texto e me disse “vamos embora!”. E eu fui com ele. Os sertões foi muito trabalhoso, mas era sobre um Brasil que a minha geração estudou. Já A queda do céu fala de um outro Brasil, e de um não Brasil. É muito diferente de uma peça norte-americana, francesa, russa. É uma outra subjetividade.

Há no trabalho ecos oswaldianos?
Sem dúvida. Começa que o prefácio do livro foi escrito por Eduardo Viveiros de Castro, cujo trabalho dialoga muito com o do Oswald. O Oswald deu uma importância fundamental ao “tupy or not tupy, that’s the question”. Ele entendeu a questão indígena. A queda do céu é uma peça oswaldiana. Se Oswald estivesse vivo, estaria trabalhando conosco.

Bob Sousa, fotógrafo, mestre em Artes pela Unesp e membro do júri de teatro da APCA, é autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).


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