A última lição de Roberto Machado

A última lição de Roberto Machado

 

Roberto Machado não raro soltava uma boutade: dizia que seus livros não eram “uspianos” e que, na verdade, ele os escrevia como reação àquele “modelo”, que talvez considerasse sisudo, ou sinônimo de uma centralização que, mesmo quando Roberto ainda estava entre nós, já não dizia muito sobre a filosofia brasileira do século 21.

O que nos divertia era que a tirada provocativa esbarrava na opinião de outra professora, também “antiuspiana”, a seu modo, para quem os livros de Roberto eram sobretudo… uspianos. Foi a primeira lembrança que me veio à mente quando comecei a ler Proust e as artes (Todavia, 2022), publicação póstuma dessa grande figura que nos deixou em 2021, restando uma lacuna impossível de preencher. Tudo indica que o autor deixou o livro pronto, mas o material foi organizado para publicação por Pedro Süssekind (UFF), que também assina a orelha e a quem todos ficamos devendo um pouco.

Para quem, como eu e tantos de minha geração, começou a estudar filosofia lendo Nietzsche e a verdade, tomou as primeiras lições sobre Foucault lendo a Microfísica do poder, assimilou teses ousadas como a que apresentou em Zaratustra: tragédia nietzschiana, ou reverenciou monumentos de síntese histórico-crítica como O nascimento do trágico e tantos outros livros, sem falar nas traduções e, como esquecer, suas aulas e intervenções públicas – quando dominava a plateia como um Ariano Suassuna –, Proust e as artes só pode ser lido como uma última aula, uma despedida glamorosa, como tudo que cercava sua pessoa. Falemos, portanto, do livro, já que a tentação de falar do autor é grande.

No ano do centenário de morte de Proust, 2022, o livro sai ao mesmo tempo que uma terceira tradução integral da Recherche no Brasil, com tradução de Mario Sergio Conti e Rosa Freire D’Aguiar, À procura do tempo perdido (Companhia das Letras). Indicando seu diferencial já no título, que difere da opção da Globo e da Ediouro, tudo leva a crer que a nova tradução deve iniciar um renovado ciclo de leituras e estudos, no qual o trabalho de Roberto deve ganhar destaque.

Começo pelo que o próprio Roberto indica ainda na introdução:

[…] além de apresentar de maneira literária ideias tradicionalmente consideradas filosóficas – sobre a realidade, o sujeito, o tempo, o espaço, o conhecimento, a percepção, a imaginação, a memória, o pensamento… –, há em Proust uma estética metafísica, inspirada na reflexão filosófica – lógica, racional, conceitual – sobre a arte. Só que essa reflexão, que pretende pensar a relação entre a arte e a realidade, é expressa artisticamente […] (p. 35).

Para o autor, é possível ler o desfecho da Recherche como uma “dissertação estética”, “um ensaio de filosofia da arte, com ideias profundamente integradas à trama do romance” (p. 10); esse é o convite que Roberto nos deixou: uma leitura estético-filosófica de Em busca do tempo perdido. Os caminhos que ele sugere nesse percurso merecem algumas considerações.

Como tudo que fez, algo parece licenciosamente ousado num primeiro momento, afinal, seria mesmo possível sustentar a tese de que a Recherche seria um “romance de formação” (na linha do Bildungsroman alemão e do Roman d’apprentissage francês) e que Marcel, o herói, descobre sua vocação literária ao longo dos sete volumes, e ainda defender que a circularidade das milhares de páginas só se revela em suas últimas linhas pelo narrador, que é, simultaneamente, a personagem central do livro?

Se considerarmos a metáfora da “escavação”, talvez seja o caso de pensar que a metodologia de leitura de Roberto segue os passos da via arqueológica de Foucault, diversa da recepção do romance reconhecida pela maioria de nós através da crítica benjaminiana. Não sendo inédita – Paul Ricœur, por exemplo, a defendeu, Blanchot também –, a tese do romance de formação alemão, “traduzida” como “romance de aprendizagem” em francês, foi apropriada de formas diferentes em Ricœur – porque, ao final do romance, temos uma “desilusão” – e de outro modo ainda por Deleuze, que o define como “pesquisa da verdade”, tomando distância da leitura que enfatiza a memória, por exemplo. Precisamos pensar nas razões que levaram Roberto Machado a apostar nessa via, digamos, não canonizada.

Os sentidos, ou melhor, o que o autor chama de “impressões dos sentidos”, são fundamentais para entender sua proposta de leitura. Assim, ele informa: “detectei por volta de trinta dessas experiências”. No que elas consistem? Nas “condições do projeto literário exposto na obra” (p. 37). Portanto, ao dissecar a Recherche com rigor, Roberto nos conduz por caminhos que vou chamar de novos, enquanto sugerem, pelas mesmas vias que nos acostumamos a percorrer o romance, uma interpretação global do conjunto proustiano sob nova ótica.

Não seria o caso aqui de decidir pelo certo ou errado. Literalmente estamos em terreno nietzschiano-foucaultiano, ou seja, Roberto pode ter sugerido que a obra de Proust inaugura uma nova episteme do século 20; os leitores especializados dirão se isso é exagero, mas vale lembrar o quanto Roberto valorizava as impressões, para isso basta lembrar o livro imediatamente anterior, intitulado Impressões de Michel Foucault (n-1 edições, 2017); por sinal, como ele mesmo registra, uma metáfora musical. O que destaco é a capacidade de Roberto de ler o romance a partir de uma chave que funde as sensações e a revelação literária, as impressões sensitivas e a estética filosófica.

Intermezzo: a certa altura do livro, Roberto escreve:

O que caracteriza esse momento em que Marcel tem encadeadas tantas impressões é que, esforçando-se, na solidão, ele consegue descobrir a causa, o porquê da intensidade que sente ao viver essas experiências e, a partir daí, descobrir o que é a obra literária que pretende fazer (p. 55, grifo meu).

Impossível ler isso e não pensar no quanto Roberto prezava a solidão (nunca o isolamento). Proust e as artes não poderia ser diferente; embora radical no recorte, ele é fruto de um trabalho laborioso e solitário, inclusive, ao que tudo indica, na radicalidade de sua leitura.

São as artes que Roberto Machado destaca como essenciais ao romance. A grande paixão de Proust, a música, sobretudo a wagneriana, as artes plásticas e a literatura que tudo atravessa; vamos por partes. Se Marcel persegue sua vocação literária ao longo dos sete volumes, a música é parte fundamental de seu aprendizado, Proust a teria considerado mesmo superior à literatura. Para abordá-la, Roberto segue de perto o livro de Jean-Jaques Nattiez, Proust musicien (Paris: Christian Bourgois, 1984). Nesse ponto do livro, um nome se torna inevitável e talvez óbvio em se tratando de Roberto Machado, para quem Proust “é um moderno, alguém que foi marcado pela ‘morte de Deus’, para usar a expressão de Nietzsche” (p. 73).

Com essa deixa, Roberto mostra como Marcel consegue livrar-se da frivolidade de um personagem cuja cultura tem em grande conta até certo ponto do romance: Charles Swann; algo que se passa com outros personagens, enquanto Marcel segue seu caminho de aprendizado. No entanto, Swann revela-se um ouvinte medíocre, cuja decadência e frustração é gradativa e fatal. Curioso notar que, não poucas vezes, Roberto fala da posição de Proust sobre a música: “Proust não se interessa pelos aspectos técnicos da teoria musical” (p. 79); “Proust começa sua reflexão apresentando como Swann sente e pensa a música” (p.82); “Se estudei a compreensão que Swann tem da música, foi sobretudo para contrapô-la à concepção do narrador, que no fundo é a de Proust” (p. 103).

O espaço de uma resenha é certamente exíguo para discutir “a posição do narrador” na Recherche. Na introdução, Roberto discute essa questão e se posiciona, por isso deixo esse prazer ao leitor. Importante é não perder de vista que “ela [a concepção do narrador (de Proust!?)] aparece em vários momentos da Recherche, demonstrando uma progressão, um aprendizado que, pouco a pouco, o personagem central faz da natureza da música, e será fundamental para a descoberta de sua vocação literária” (p. 103).

A Recherche, portanto, não é apenas o roteiro do aprendizado de Marcel, a história de como as artes lhe tocam, emocionam, fazem transbordar a “memória involuntária”, mas também (ou principalmente?) a forma que Proust encontrou para nos legar um ensinamento contra o tempo da modernidade, sendo ele, como aponta Roberto, um autor nietzschiano, não um platônico, interessado em projeções metafísicas, antes um escritor preocupado com o que se passava no seu tempo.

Não é casual que Baudelaire seja o poeta e uma das referências fundamentais de Proust. Sendo assim, como “romance de formação”, Em busca do tempo perdido é também um romance contra o tempo coetâneo ao do seu autor, o tempo do capitalismo. Mas o livro não é um guia de leitura, e duvido que seu autor nos perdoasse se o lêssemos de modo laudatório, isto é, restam muitas perguntas que, infelizmente, não poderemos fazer.

Quando novamente a voz de Proust é invocada, no trecho que Roberto afirma que “ao se referir ao ‘progresso se não no valor dos artistas, pelo menos na sociedade dos espíritos’, Proust está sugerindo que, pelo fato de ser posterior, um artista não é necessariamente superior” (p. 105), várias questões se apresentam, mas o autor passa ao largo delas. Talvez cansado das discussões sobre “Nietzsche vs Wagner”, todas as passagens nas quais Proust toma literalmente partido pelo compositor estão ausentes do livro. Quando isso aparece, é de modo geral:

[…] para manter que Proust defende um progresso na arte, é preciso esclarecer que isso significa para ele que o grande artista, o artista genial, sempre realiza uma obra nova, original, que rompe com o passado […] (p. 106).

Roberto toma Kant e Schopenhauer como fontes de sustentação de seu argumento, ignorando as críticas de Nietzsche a Baudelaire e Wagner, porque, para ele, “[…] Proust está retomando uma tradição moderna que define o grande artista como um criador original” (p. 125), assim,

[…] Kant, um dos primeiros a defender essa posição, diz, no parágrafo 46 da Crítica da faculdade do juízo, que gênio “é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada […]; consequentemente, originalidade tem que ser sua primeira propriedade” (p. 125).

Tudo isso se explica pelo fato de Roberto não ter escrito um livro para promover um debate sobre filosofia da arte, mas para nos mostrar como o [um] romance pode ser, ele mesmo, uma fonte de aperfeiçoamento estético, e, assim, faz sentido, quero crer, afirmações como esta: “Proust parece estar retomando essa concepção moderna de gênio, seguida pelos românticos e por Schopenhauer” (p. 125). Como Proust poderia ser “nietzschiano” e seguir Schopenhauer e Kant?

Essas e outras tensões que o livro nos oferece para pensar com certeza alimentarão boas discussões em nossas salas de aula, mas insisto ainda um pouco mais sobre a posição que Roberto assume no livro ao ignorar passagens como esta:

Eu não tinha, na minha admiração pelo mestre de Bayreuth, nenhum dos escrúpulos daqueles a quem, como a Nietzsche, dita o dever fugirem da arte como na vida à beleza que os tenta, e os quais, arrancando-se a Tristão do mesmo modo que renegam Parsifal, por ascetismo espiritual, de mortificação em mortificação chegam, seguindo o mais sangrento dos caminhos da cruz, a se elevar até ao puro conhecimento e à adoração perfeita do Postilhão de Longjumeau (Marcel Proust, A prisioneira, São Paulo, Globo, 2011, p. 180. Grifos meus).

Nesta e em outras passagens encontramos, talvez para surpresa de alguns, Proust tomando partido por Wagner, numa discussão que não sabíamos tão importante a ponto de ser imortalizada no romance.

Cito mais uma:

Já disse […] o que penso da amizade, a saber: que vale tão pouco que me custa compreender que homens de certo talento, como Nietzsche, por exemplo, tenham tido a ingenuidade de lhe atribuir certo valor intelectual e, em consequência, recusar-se às amizades a que não estivesse ligada a estima intelectual. Sim, espantou-me sempre ver que um homem que levava a sinceridade consigo mesmo a ponto de se afastar, por escrúpulo de consciência, da música de Wagner, imaginasse que a verdade pode cumprir-se nesse modo de expressão, confuso e inadequado por natureza, que são em geral as ações e, em particular, as amizades, e que possa haver um sentido qualquer no fato de alguém deixar o trabalho para ir visitar um amigo e juntos chorarem ao saber da falsa notícia do incêndio do Louvre (Marcel Proust, O caminho de Guermantes, Ediouro, e-book).

A curiosidade em saber os motivos do caminho escolhido por Roberto vai render ainda muitas conversas e o livro não perde seu mérito, porque seguimos debatendo algo que ele julgava talvez superado. De grande interesse são ainda as passagens sobre a pintura, os artistas reais e inventados por Proust, o “conhecimento superior” que Marcel sentia na contemplação do quadro de Vermeer, Vista de Delft (que compõe a bela capa do livro), que Proust “tinha visto em Haia em 1902” e considerado “o quadro mais belo do mundo”.

Nesse sentido, compreendo ao chegar ao final do livro que a aposta na ideia da Recherche como um “romance de formação” tem muito a ver com este último termo, tão caro ao debate germânico, a Bildung. Estaria Roberto nos indicando de modo derradeiro um último suspiro de integridade, algo como um retorno às artes como uma saída da barbárie, independente de querelas menores e, portanto, como antídoto contra o país que ele deixou e cujo sopro de esperança ele não pôde sentir? Como um bom romance, só no desfecho o livro de Roberto se revela inteiramente e este prazer não posso tirar dos leitores.

São muitas as perguntas que não poderemos fazer ao nosso autor. Quando uma figura como a de Roberto desaparece, é comum que nossa proximidade com elas seja invocada, com orgulho e vaidade. Não é diferente em meu caso, embora o que vou relatar tenha como intenção iluminar a leitura, mais do que enaltecer uma falsa intimidade.

Quando o convidei para compor minha banca de livre-docência, sua resposta direta foi mais ou menos esta: “Não quero mais participar de nenhuma banca, de nenhum congresso, quero apenas me dedicar a um projeto de escrita diferente de tudo que fiz, algo entre a literatura e a filosofia”. Ele fez isso no já citado Impressões de Michel Foucault e talvez tenha repetido a dose neste póstumo, apesar do livro parecer mais próximo dos seus trabalhos mais recuados. Enfim, Roberto Machado nos deixou mais um livro uspiano, ou seja, como eu entendo a piada, minucioso, exigente, rigoroso, mas com pés de pássaro.

 

Henry Burnett é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da Unifesp.


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