Trump e a liberdade de expressão/opressão
Uma coisa é discutir a liberdade de expressão, mas parece que a preferência popular é pelo fetichismo (Foto: Reuters)
A notícia é que depois que Trump foi considerado responsável pela violenta invasão do prédio do Congresso americano, onde ocorria a sessão parlamentar que ratificou a vitória de Joe Biden, as principais empresas de plataformas resolveram, enfim, bani-lo dos seus serviços de redes sociais digitais. O saldo daquele dia de fúria da extrema-direita inconformada foi cinco mortos, a destruição de patrimônio público, um desafio escandaloso e sem precedentes ao sistema eleitoral americano, uma ferida dolorosa no orgulho democrático dos estadunidenses e Trump desprovido do seu principal instrumento de articulação, engajamento e mobilização das massas.
A extrema-direita vive de mídias sociais. Nelas cultivam as suas narrativas fantasiosas e as suas interpretações extremadas da realidade, nelas se organizam, criam laços fortes e identidades coesas; nelas a militância é motivada e deixada de prontidão mediante teorias da conspiração e fake news, através delas se comunicam diretamente com os seus líderes tribais, recebem a pauta do dia e as suas consignas.
Mas como dessa vez o moço passou do ponto, Twitter, Facebook e Instagram lhe retiraram definitivamente o púlpito de onde pregou o seu evangelho para os seus seguidores por cinco anos, tomaram-lhe o palanque de onde governou por quatro anos os Estados Unidos e as províncias do Império Trumpista, de que fazemos parte, por Anschluß, desde 2019.
Em vez de festas, contudo, queixas.
Comecemos com Alexandre Garcia, que hoje em dia não há apologia da extrema-direita sem o ex-jornalista e agora militante full-time. O velho Alex não nos desapontou e até desenterrou uma falsa citação de um falso Voltaire para vestir o casaco de defensor da liberdade de expressão de Trump: “Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o último instante o teu direito de dizê-la”.
Como os extremos se tocam, foi a vez de um petista de extrema-esquerda, Breno Altmann, decretar ser um “completo absurdo a suspensão das contas de Trump no Twitter e em outras redes sociais, sem quaisquer sentenças judiciais a respeito. (…) Quer dizer que empresas privadas podem controlar a decisão sobre liberdade de expressão?”. Claro, não importa que Trump tenha usado esse tempo todo plataformas de alcance massivo, velocidade de disseminação sem precedentes e capilaridade superior a qualquer outro meio de comunicação para acabar com a democracia. O importante é não dar a empresas privadas a autonomia para impedir que isso continue.
Então, apareceu Fabio Pannunzio, que é mais ponderado, ma non troppo, e indagou: “Você gostou do cancelamento do Trump pelo Zuckerberg? Reflita sobre o poder dessas corporações que, com um clique, fazem o presidente do EUA virar pó no mundo virtual”
E para coroar a procissão dos fetichistas da liberdade de expressão, eis nada menos que a Folha, em editorial do 11/12: “A defesa da livre circulação de ideias, o que evidentemente inclui ideias ruins, precisa ser intransigente. Não pode ocorrer segundo as conveniências de momento, como se vê mais uma vez na ação das grandes empresas de tecnologia (…)”. A este ponto, tudo deve valer, imagino. Não há mais como impedir a livre circulação das ideias de Trump tanto quanto as do Mein Kampf de Hitler ou qualquer panfleto racista destes que cuja circulação é vetada sem vacilo em qualquer país onde esteja em vigor o Estado de Direito. Afinal, até onde o meu entendimento alcança, existe a liberdade de expressão, mas ela não é um sacrossanto, nem está acima de outros direitos, inclusive o direito de ter direitos que só a democracia nos assegura plenamente.
As defesas apaixonadas da
liberdade de expressão de
Trump poderiam ser muito
mitigadas com um pouquinho
de teoria democrática. Mas,
para os fetichistas da liberdade
de expressão, parece que se
Trump não puder mais usar o
Twitter para delinquir, a
democracia acabará amanhã.
É realmente de cortar o coração a imagem do Trump Censurado. Amordaçado, pobrezinho, sem 200 jornalistas do mundo inteiro a 100 metros da sua sala esperando uma declaração, sem acesso à TV, sem porta-voz, sem poder publicar um artigo em qualquer jornal do mundo. Deve ser horrível, pobre homem.
Uma coisa é discutir seriamente a liberdade de expressão e que valores da democracia ela é chamada a defender e garantir, mas parece que a preferência popular é por uma atitude fetichista: esta liberdade teria um valor em si, um valor de culto, indiscutível e transcendente. É por isso que se transforma paradoxalmente, como se vê neste caso, numa defesa veemente de que Trump tenha a liberdade de incitar a turba contra a democracia, a tolerância e o pluralismo, valores que a liberdade de expressão deveria defender. E aí surge uma versão desconcertante do “Voltaire” de Alexandre Garcia: “Acho um absurdo que seja dado palco para Trump mobilizar, educar e incitar contra a democracia, mas defenderei até a morte que lhe seja dado palco para mobilizar, educar e incitar contra a democracia”.
Faz sentido? Não faz.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)