Terceirização desenfreada

Terceirização desenfreada
Carteira de trabalho e previdência social (Arte: Revista Cult)

A discussão sobre a regulamentação da terceirização não escapa à compreensão mais ampla das metamorfoses da questão social em nosso país

 

Foi aprovada nesta quarta (22), no plenário da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 4302 de 1998, que permite a terceirização irrestrita das atividades econômicas. Foram 231 votos a favor, 188 contra e 8 abstenções.

A matéria ainda deverá ser apreciada no Senado e depende de sanção presidencial para que entre em vigor, mas já é possível antever os efeitos nefastos que tal medida acarretará para os direitos trabalhistas no país se não for significativamente alterada.

A terceirização é um expediente de redução de “custos trabalhistas”, no vocabulário empresarial, ou de retirada de “direitos de cidadania e de proteção social” conforme a gramática utilizadas pelas forças do trabalho.

Por meio desse expediente de administração, as empresas conseguiam, por um lado, obter serviços especializados que não guardavam relação direta com sua atuação econômica (como alimentação, limpeza, informática, segurança) e, por outro, baratear os gastos com mão-de-obra, já que os trabalhadores terceirizados não integravam a categoria profissional dos demais empregados da empresa, que possuem os benefícios e direitos assegurados nas normas coletivas e nos regulamentos internos de empresa.

Isso significa dizer que a terceirização operava uma cisão no conceito de “categoria”, que foi a espinha dorsal de organização da estrutura sindical brasileira, que remonta ao corporativismo da Era Vargas. Segundo a CLT, inspirada nesse particular pelo pensamento de Oliveira Vianna (como escreve em Problemas de direito sindical), categoria é um vínculo social básico caracterizado, quanto aos trabalhadores, pela similitude de condições oriundas da profissão ou trabalho em comum em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades similares ou conexas; quanto aos empregadores, esse vínculo resulta da solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem atividades idênticas, similares ou conexas (art. 511, §§ 1º a 4º).

Assim, a terceirização opera uma fratura na categoria profissional. Pessoas que trabalham lado a lado, no mesmo lugar, às vezes com atividades assemelhadas, não integram um mesmo grupo. Priva-se o trabalhador da construção da identidade de classe e da solidariedade. Essa fragmentação é a maior perversidade desse expediente. Além disso, os terceirizados, a despeito de também estarem registrados em regime CLT por uma empresa prestadora de serviços, tinham um patamar de proteção e de garantias inferior ao dos demais empregados da empresa tomadora dos serviços, por integrar outra categoria profissional geralmente menos mobilizada politicamente.

Essa modalidade de gestão da produção cresceu, no Brasil, significativamente a partir dos anos 1990. Os bancos foram grandes propulsores dessa forma de externalizar determinados serviços, contratando empresas especializadas que forneciam mão-de-obra para finalidades específicas e de forma mais barata, mas que, muitas vezes, coincidiam com as atividades essenciais das empresas tomadoras.

Diferenciação entre atividades ‘meio’ e ‘fim’

A intermediação de mão-de-obra, proibida em regra pelo Direito do Trabalho brasileiro, passou a ser admitida sob condições específicas, que foram fixadas pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) em 1993, na Súmula n. 331.

Durante esses mais de vinte anos, esta tem sido a principal fonte normativa para regular o tema e orientar as decisões da Justiça do Trabalho. Sua principal regra: é lícita a terceirização de atividades-meio, acessórias ou secundárias, desde que inexistente subordinação pessoal e direta dos empregados da contratada à contratante. Assim, não podem ser terceirizadas atividades-fim, essenciais, inerentes a uma determinada empresa.

Essa regra, apesar de suas limitações, sempre foi bastante importante por permitir um controle mínimo do nível de terceirização das atividades econômicas, impedindo que as empresas burlassem a legislação trabalhista para terceirizar todas suas atividades.

A diferenciação entre o que é “meio” e o que é “fim”, algo nem sempre evidente e fácil de verificar, foi sendo gradativamente construída pelos embates ideológicos no campo sindical, pelos conflitos judiciais nos tribunais do trabalho, pela negociação direta e pelos dissídios coletivos. Esses limites foram se deslocando e se alterando a depender das configurações das relações de poder, das variáveis econômicas e das argumentações jurídicas criadas pelos atores do sistema de justiça.

Diante desse vácuo legislativo sobre um tema tão central (econômica e politicamente), já que não existia uma lei específica, diversas propostas de regulamentação foram construídas, representando diferentes interesses. Contudo, a falta de consenso em torno das propostas sempre paralisavam o avanço desses projetos.

Protesto de parlamentares da oposição durante sessão para votar a lei da terceirização na Câmara dos Deputado, em Brasília (Foto: Lula Marques/AGPT)

Diferentes propostas de regulamentação

Dentre as propostas que mais tinham condições de avançar no Legislativo, havia o projeto das centrais sindicais (PL1621/07), capitaneado pela CUT, com 4 eixos principais: proibição de terceirização de atividade-fim; responsabilidade solidária da contratante pelos débitos da contratada; trabalhadores terceirizados devem ser representados pelo mesmo sindicato que representa a categoria profissional correspondente à atividade preponderante da contratante (ou seja, no ramo bancário, os trabalhadores terceirizados teriam os mesmos benefícios de negociação coletiva conquistado pelo sindicato dos bancários); e por fim a igualdade de condições, salário e benefícios deveria ser assegurado entre terceirizados e empregados diretos.

De outro, havia a proposta de agrado dos setores empresariais, materializada no PL 4330/04, de autoria do Sandro Mabel. Esse PL previa: liberação de terceirização de “atividades inerentes, acessórias ou complementares à atividade econômica da contratante”; São permitidas sucessivas contratações do trabalhador por diferentes empresas prestadoras de serviços a terceiros, que prestem serviços à mesma contratante de forma consecutiva; É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança e saúde dos trabalhadores, enquanto estes estiverem a seu serviço e em suas dependências; A contratante pode estender ao trabalhador da empresa de prestação de serviços a terceiros benefícios oferecidos aos seus empregados (atendimento médico, ambulatorial e refeição); a contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços e a contratada, se “quarteirizar”, é solidariamente responsável pelas dívidas trabalhistas; por fim, quanto ao recolhimento da contribuição sindical prevista nos arts. 578 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ele deve ser feito ao sindicato representante da categoria profissional correspondente à atividade exercida pelo trabalhador na empresa contratante, mas nada dispondo sobre a norma coletiva aplicável.

Nas negociações no Congresso, sobretudo pela pressão (bem conformista quanto à inevitabilidade da terceirização) do PDT do então Ministro do Trabalho Manoel Dias, alterações foram feitas no projeto, incorporando, inclusive, alguns dos traços da proposta das centrais sindicais.

Com efeito, a Subemenda Substitutiva Global, aprovada sob relatoria do Dep. Arthur Maia em 8 de abril de 2015 com as emendas que passaram em 22 de abril na Câmara, poderia ser resumida nos seguintes itens principais: permissão de terceirização de “serviços determinados, específicos e  relacionados à parcela de qualquer” das atividades da contratante (ou seja, a depender do que se entende por “parcela”, estão liberadas as atividades-fim aí); permissão de sucessivas contratações do trabalhador por diferentes empresas prestadoras de serviços, desde que asseguram a manutenção do salario e benefícios previstos no contrato anterior; dentre as emendas aprovadas, houve a redução do período após o qual um ex-empregado pode figurar como terceirizado de 24 para 12 meses; restou consagrada que a responsabilidade da contratante em relação às obrigações trabalhistas e previdenciárias da contratada é solidária (conforme queriam as centrais sindicais); por fim, garantiu-se aos trabalhadores terceirizados o direito às normas coletivas dos empregados da contratante “quando o contrato de prestação de serviços se der entre empresas que pertençam à mesma categoria econômica” (também como queriam as centrais sindicais).

Esse breve histórico revela que o resultado desse PL na Câmara era um verdadeiro “frankenstein” por misturar dois projetos com objetivos e compreensões sobre a terceirização diametralmente opostos.

O PL 4302 de 1998: liberação total da terceirização

Mas não foi nenhum dos dois projetos que agora ganhou força durante a ofensiva de retirada de direitos do governo ilegítimo de Michel Temer. Foi desenterrado lá da época do auge do neoliberalismo o PL 4302, de 1998, que claramente libera geral a terceirização e a quarteirização (quando a empresa terceirizada subcontrata outras empresas) no mercado de trabalho.

Com efeito, o PL estabelece que “a Empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos”. Isso demonstra que não há mais a restrição para a terceirização de atividades-fim, o que implica que as relações trabalhistas entre empresa e empregado cada vez mais serão convertidas em relações civis entre empresas, como se estivessem em pé de igualdade.

Além disso, o PL também prescreve que “a empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços”, permitindo a quarteirização para outras empresas menores.

Sabe-se que, na terceirização, há um grande nível de inadimplência justamente porque as empresas “quebram” e “desaparecem”, deixando diversos trabalhadores sem receber seus direitos contratuais e rescisórios. Com a quarteirização legalizada, esse quadro tende a se agravar, pois mais empresas sem saúde financeira e condições de arcar com os direitos de seus empregados serão subcontratadas, muitas vezes até mesmo praticando formas degradantes de trabalho.

Ainda que esteja prevista a responsabilidade subsidiária da tomadora no PL, é bastante conhecida a dificuldade de o trabalhador acionar judicialmente as empresas contratantes depois de uma longa peregrinação atrás de bens em nome da empresa contratada e de seus sócios.

É muito sintomático, assim, que não apenas a terceirização seja retomada, mas que se recupere o projeto mais liberal de (des)regulamentação desse tema.

Trabalhadores do ABCD no Dia Nacional de Paralisação e Mobilização contra as reformas propostas pelo governo Temer (Foto: Rodrigo Pinto)

Resistência ao desmonte

Não há dúvidas de que, em contexto de corte de gastos nas empresas, a liberação de terceirização de atividades-fim resultará em uma elevação brutal das terceirizações em nosso país.

Assim, não se pode deixar que um olhar pontual retire a dimensão de conjunto e o impacto global que essa mudança trará ao mercado de trabalho brasileiro, no sentido de provocar maior precarização das relações laborais, na medida que o universo de terceirizados aumentará e, com isso, as desigualdades do mundo do trabalho também serão mais sentidas.

Segundo dados do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), as jornadas dos terceirizados, por semana, é, em média, três horas maior do que a dos empregados diretos. Se a jornada deles fosse igual a dos contratados diretamente, seriam criados 801.383 empregos. Além disso, a remuneração dos terceirizados é em média 27% menor que a dos empregados diretos. Soma-se a isso o fato de que a média de permanência dos terceirizados no emprego é de 2,6 anos, e a do trabalhador direto é de 5,8 anos. Por fim, vale mencionar que a cada dez acidentes no trabalho, oito são em empresas terceirizadas.

Uma mudança legislativa feita às pressas, já que antigas propostas foram desengavetadas e votadas de forma atropelada em regime de urgência, sem discussão mais ampliada entre os diversos atores sociais interessados, obviamente padecerá de um déficit de legitimidade evidente.

Como se nota, essa aprovação na Câmara se soma a uma série de outras pautas conservadoras que a atual composição do Legislativo, sob um governo ilegítimo, está promovendo e que não deverá parar por aqui. No entanto, os contornos dessa regulamentação da terceirização ainda estão sob disputa e diversos setores da sociedade civil que prezam pelas garantias democráticas de proteção social ao trabalho precisam se unir para fazer frente a essa ofensiva.

Terceirização e a trajetória de proteção jurídica dos trabalhadores

Poucos ramos do direito expressam tão bem os embates e os acordos travados na dinâmica das lutas sociais como o Direito do Trabalho. Seu caráter compromissório entre capital e trabalho é ainda mais acentuado em um contexto de capitalismo dependente ou de hegemonia crítica de uma ordem liberal, como analisado em artigo na Revista LTr. Legislação do Trabalho.

A discussão sobre a regulamentação da terceirização não escapa à compreensão mais ampla das metamorfoses da questão social em nosso país.

O sistema de relações trabalhistas brasileiro viveu permanentemente atravessado por uma aparente disjuntiva entre segurança social e liberdades democráticas. Nosso desenvolvimento demonstra que um dos grandes dilemas que se colocava, de maneira reiterada, era justamente edificar um modelo de dignificação do trabalho que não resvalasse para a tutela autoritária dos direitos normatizados e que tampouco consagrasse uma autonomia negocial coletiva irrestrita renunciando a parâmetros mínimos e cogentes de regulação. Com efeito, não conseguimos assimilar culturalmente, de maneira clara, que corporativismo não é proteção social e que a liberalização radical do mercado de trabalho não significa sua democratização.

Isso sempre limitou a possibilidade de discutir avanços e melhorias na legislação, sob o permanente risco de um retrocesso da mera e total desregulamentação.

A proclamação muitas vezes formal dos direitos sociais anunciava estes não como suporte material de uma cidadania ativa, mas como dádiva generosa dos poderes constituídos, o que certamente obstruiu a compatibilização entre proteção social e democracia nas relações de trabalho brasileiras.

Historicamente, durante a época da Primeira República, sob a égide da ortodoxia liberal da Carta de 1891, prevaleceu uma ordem privada do trabalho em que o poder de mando patronal reinava sem restrições em suas unidades fabris, para não mencionar a questão agrária e sua vinculação mais íntima com a relação de mando-obediência da escravidão. No entanto, a mobilização social do início do século 20 sintomatizou as contradições que a modernização industrial desencadearia em nosso país. Com efeito, este período testemunha o início do cruzamento entre mundos aparentemente distantes até então: o privado e público. É bastante pertinente a formulação de Rancière se aplicada a esse momento de nossa formação nacional:

“A política operária consistiu em construir as relações desses mundos separados. Não somente em obrigar o outro à discussão mas em provar que entre o mundo público da fala e do debate e o mundo ‘privado’ do trabalho havia uma relação, e que, portanto o vínculo igualitário, constitutivo de um mundo comum, podia operar. Consistiu não apenas em provar logicamente esse vínculo, mas em construí-lo em uma encenação”, como escreveu em O dissenso.

Justamente na dobra entre os dois mundos é que se configurou uma questão social digna desse nome, porque merecedora da atenção dos relevantes sujeitos envolvidos e do próprio Estado. Tanto é assim que a partir daí foram lançadas as bases para uma regulação externa das relações de trabalho e da ação sindical, segundo outra racionalidade, especialmente a partir da década de 1920.

Essa longa caminhada da proteção social do trabalho não pode ser, agora, desmontada. É imperativo que o cruzamento entre os mundos privado e público do trabalho não seja agora dissolvida na prática indiscriminada e irrestrita da terceirização, que cinde e estratifica ainda mais o universo do trabalho.

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