Tensões contemporâneas do uso do soneto

Tensões contemporâneas do uso do soneto

Tensão, multiplicação, multiplicidade

Aqui vem ao caso a citação de Valéry, menos pelo esteticismo em que ela se implica do que pela lógica potencial em que o soneto é concebido. Essa forma fixa escritaletrada e recente (8 séculos de idade), como afirma Jacques Roubaud (Soleil du soleil – le sonnet français de Marot à Malherbe. POL: 1990), é presente não somente entre significativos nomes da poesia bem como é a forma em que se realizaram alguns de seus poemas mais representativos desde o século de sua invenção até nossos dias. Roubaud ainda nos diz de um traço específico que a história de forma confirma: seu poder multiplicador. Trata-se de um poder associado tanto ao seu prestígio, à tradição emulatória de seu formalismo, quanto ao descrédito e reprovação desses mesmos valores. Faz-se soneto a favor da idealização da forma, faz-se soneto contra o transcendentalismo da própria forma. No que diz respeito à história do soneto, seu poder multiplicador em muito corresponde às tensões do que cada soneto mobiliza em sua realização.

Neste sentido, vale a menção de um dos projetos poéticos  mais ousados da contemporaneidade no que no que tange o soneto: a reimpressão recente (Gallimard: 2014) do livro-objeto  Cent mille millards de poèmes (1961), de Raymond Queneau. O livro-objeto consiste em dez sonetos franceses com as mesmas rimas, cujos versos são cortados na página como linguetas, o que permite ao leitor a operação comutatória que há de conduzir à leitura imponderável de 100.000.000.000.000 de sonetos. Trata-se de um projeto que concebe a forma como potencial maquínico como diz em sua epígrafe retirada do matemático Alan Mathison Turing: Somente uma máquina pode apreciar um soneto escrito por outra máquina. A adoção do soneto em tal projeto explora a tensão entre a finitude da forma breve e a infinitude de sua reprodutibilidade, não sem ironizar os lugares que ocupam as categorias de autor e leitor na produção efetiva dos textos. O leitor, literalmente, opera a produção do que lê, imaginado por quem leu apenas em sua virtualidade matemática. O soneto, aqui, age como um dispositivo de virtualidade, se não refratário, em constante tensão com o esteticismo com que essa forma se canoniza na tradição poética.

Procedimentos em negativo

Pode-se considerar o prisma da tensão, especificamente com o seu próprio cânone, como sendo um dos traços mais fortes do soneto moderno que o soneto contemporâneo desdobra segundo a clave da oficina irritada de Carlos Drummond de Andrade. Não são poucos os sonetos que hoje reiteram os procedimentos em negativo do soneto que podem ser conferidos no primeiro soneto drummondiano publicado em Brejo das Almas, 1934, O soneto da perdida esperança.  Os versos brancos e octassilábicos, a tensão dos enjambements e o tema conduzido entre o prosaico e o metafísico denotam uma atitude de franca ruptura com o tratamento de versos decassílabos e as rimas ricas, bem como a temática da ascese estética do cânone clássico e parnasiano. O efeito de prosa que produzem os enjambements recorrentes confere à plasticidade da estrutura do soneto uma discursividade avessa à melopeia tradicional da forma, a ponto de, em muitos casos, como nesse soneto de Drummond, dar ao leitor a impressão imediata de não se tratar de um soneto.

É o que se pode observar nos sonetos de Paulo Henriques Brito, por exemplo, acrescentando um procedimento a mais que parece aprofundar a tensão com a tradição do soneto como unidade expressiva do gênero lírico. Refiro-me aqui à série Até segunda ordem (Trovar Claro, 1997), em que, os sonetos se desdobram sob a forma narrativa epistolar. A narrativa se desenrola pela correspondência em uma linguagem cifrada sugerindo um não dito de contrabandos e fugas, de tal modo que, se o soneto se evidencia como unidade narrativa, representa uma gama de acontecimentos fora dele mesmo, dando ao leitor a impressão de ler o fragmento de uma circunstância que extrapola à própria forma. As rimas encaminham a engenhosidade, o achado, não no sentido de uma ascese da forma, e sim no sentido da sátira e paródia da própria forma. O contraste do rigor da forma com o prosaico e o coloquial resulta no efeito de humor da metalinguagem com que a forma se dessacraliza.

Esses procedimentos em negativo, a incidência dos enjambements, o tratamento das rimas em ruído com a melopeia tradicional do soneto, também se conferem em outras vozes que fazem uso da forma fixa. Lemos em Antonio Cicero o soneto em redondilhas, em rimas toantes e sem estrofes. A insinuação da prosa retira a pomposidade de um tema de tradição clássica, expressando menos a atitude de ruptura com  a tradição do que a possibilidade de equilíbrio entre forma e matéria, clareza e intensidade, concisão e ascese, que revitaliza a própria dicção clássica na poesia contemporânea. De certo modo, o soneto de Cicero é um soneto escondido, quase denegado, um soneto esquecido que, todavia, surpreende a leitura de forma irônica quando flagrado. Aqui, o contraste e o ruído aparecem atenuados, os procedimentos em negativo atendem ao abrandamento, quase apagamento, da estrutura do soneto, a fim de revitalizá-lo como expressão, de concebê-lo em seu elogio.

O mesmo elogio da forma, encontramos também nos sonetos de Nelson Ascher, embora com procedimento estilístico bem distinto. Frase única, articulada em versos hexassilábicos conduzidos pelo enjambement extremado da estrofe à tmese (atenção à rima extre/mestre que encadeia os quartetos da homenagem a Mallarmé), o soneto de Nelson Ascher eleva a plasticidade da forma à sua quase deformação. De franca linhagem mallarrmaica, de verso e sintaxe cabralinos, o soneto aqui apresenta a tensão da racionalidade concisa e artificiosa de oficina e emulação, uma espécie irônica de neoparnasianismo, como concebe Antonio Candido ao apresentar sua poesia em O sonho da razão (1993). O rigor hiperbólico da forma parece atender ao dispositivo do que Candido descreve como uma surpresa metodicamente construída. De novo, a tensão da plasticidade da forma e a metalinguagem irônica, o tratamento que profana a tradição clássica do soneto e, ao mesmo tempo, revigora seu uso.

A escrita de si

Poder multiplicador e procedimento em negativo, o uso do soneto na poesia contemporânea segundo os modos da tensão com a forma e sua tradição encontra no projeto da escrita de si de Glauco Mattoso o que seria sua mais ousada e sistemática realização na atualidade. Quantidade e  negatividade assumem no sonetário mattosiano a culminância de um verdadeiro curto-circuito no que tange à tradição da forma. Seus mais de 5.000 sonetos, versando acerca do autobiográfico ou autoficcional, em séries narrativas que reiteram o masoquismo autovexatório, a obscenidade despudorada do vocabulário, a franca atração pelo desagradável e abjeto, pelo baixo sexual, social e linguístico, assumem a configuração de um imenso paradoxo com que a tradição do soneto é assumida contemporaneamente.

Essa quantidade adquire relevância estética. Ela é índice de uma escrita para além da forma.  É nesse sentido que salta aos olhos a tensão entre o medido (o próprio soneto, a própria contagem de cada soneto, a celebração da quebra) e o record, o registro do deslimite, o desmedido. A tensão entre a forma e a quantidade, assumindo uma enunciação propriamente pré-moderna, barroca, em que a medida da forma fixa é unidade de uma contagem desmedida, própria do desmedido, a reiteração do gozo per-verso. Essa qualidade da quantidade parece estar prevista pela própria escrita mattosiana, como mais um requinte de seu sadismo travestido de masoquismo, pois ela corresponde ao estilo propriamente sadeano, enumerativo, repetitivo, em que o soneto é assumido segundo a febre sonefífera (In. Pegadas Noturnas, Lamparina, 2004), como o próprio Glauco define. Esse aspecto quantitativo é um traço formal que combina sentidos heterogêneos: por um lado, é expressão do sentido pulsional de que se reveste seu conteúdo – a quantidade repetitiva da fantasia perversa da humilhação e da podolatria, decantando causos e mitos do próprio fetichismo e que, não raro, atribuem à própria escrita a franca condição de sintoma. Ao mesmo tempo, esse mesmo traço da quantidade é o motivo de orgulho, como demonstra o soneto da quebra que celebra, atribuindo à quantidade e à desmedida o sentido da paródia da emulação. O orgulho quantitativo assume o valor de afronta à tradição clássica do soneto: Glauco  se orgulha, mais do que da qualidade do soneto de sua lavra, sempre ciosa do formalismo de tradição petrarquista, da superação quantitativa que sua escrita elabora. Ou seja: a quantidade é traço expressivo de dois sentidos simultâneos e contraditórios: o masoquismo autovexatório, sua condição sintomática e passiva; e do orgulho paródico, sua perversão expandida, ativa e, decerto, vingativa.

A extensão em que esta prática do soneto está implicada faz do soneto como unidade narrativa um dos modos de sua multiplicação: seja nos sonetos narrativos, cautos causos que podem tomar a extensão de um romance lyrico, como classifica seu Raymundo Curupyra: o caipora (Tordesilhas, 2012), onde se narra a vida e a morte de Raymundo, em cuja trama encontra-se o próprio Glauco Mattoso como personagem em um affaire masoquista; seja nos ciclos temáticos, especial atenção ao Letra da Ley (Annablume: 2008) ,  –  em que se elabora a expansão da lógica pessimista da Lei de Murphy, nos mais diferentes referentes cotidianos ( a fila, a burocracia, o papel higiênico, o sabonete etc ), até a Ley formular-se como duplo metafísico do poeta masoquista cego. O modo de dispersão dessa imensa quantidade de sonetos aciona a forma fixa em gêneros que se tornaram incomuns na lírica moderna. A narratividade que ele opera parece corresponder à ambição propriamente romanesca e, decerto, teatral. Um novo deslocamento e um novo curto circuito: o soneto, que a tradição petrarquista monumentaliza como forma quase exclusiva do gênero lírico, portanto sério e elevado, na escrita mattosiana é a experiência do baixo, da polifonia, do tragicômico, da narratividade e da teatralidade da persona Glauco Mattoso.

A quantidade e a negatividade constituem procedimentos de uma escrita do desagradável não só por se dirigir às zonas erógenas pouco exploradas, sabores e odores menos preferidos, bem como por transgredir retomando o molde tradicional (como o soneto) e praticar o experimentalismo usando o próprio cânone como laboratório (In. Pegadas Noturnas, Lamparina, 2004)Desagradável a quem, hipócrita leitor? Se Baudelaire se dirigia ao leitor burguês, heteronormativo, pai de família, o leitor de certo modo universalizado pela poesia e pela sociedade moderna, o desagradável de Glauco Mattoso por vezes nos sugere o leitor pré-burguês, o leitor sadeano, o leitor da aristocracia do gozo e do desejo, o leitor que pela erudição dos infernos e pela própria experiência concebe a natureza sexual perversa da humanidade, o leitor que cultiva o humor da polifonia dos registros e da erudição da linguagem, o leitor d’undiscoursimense (Sade, Fourier, Loyola, ÉditionsduSeuil, Paris, 1971), como nos diz Barthes; por vezes, os leitores de Glauco somos nós mesmos, pós-burgueses, de um mundo em que o desejo  é subsumido no consumo e a vida é capturada pelos dispositivos de controle. De humilhado a dominador, a fantasia do teatro mattosiano elabora-se da perversão à subversão: uma espécie de anti-lírica, cujo gênero é híbrido, a língua polifônica, e o sexual recalcado por toda a tradição retorna de modo obsessivo, reiterativo, enumerativo e fetichista. Neste sentido, a negatividade transgressiva mattosiana e sua obsessão quantitativa transpõem a forma como força, a perversão como subversão e o estético como político.

2 Sonetos de Paulo Henriques Brito

(19 de janeiro)

Até esta chegar às suas mãos
eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,

e àquela moça —a dos “quatorze dígitos”-
o embrulho que ficou com teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquettes back-up estão comigo.

Até mais. Heroísmo não é a minha.
A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,

mas deixei um revólver na cozinha,
com urna bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.

De Trovar claro (1997), Companhia das Letras.

 

2 sonetos de Antonio Cicero

História

A história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não-ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.

(De A cidade e os livros, Record, 2002.)

 

2 sonetos de Nelson Ascher

NO CENTENÁRIO DE MALLARMÉ

Embora ao jogo adestre
a língua que, selvagem,
resolve-se em linguagem,
o indecifrável mestre

perscruta, além das extre-
midades, na voragem
de estrelas que interagem,
uma inscrição rupestre

gravada desde o início
na abóbada suprema,
em busca de um indício

do verbo que se queima
feito um minério físsil
na origem do poema.

(De O Sonho da razão. Editora 34, 1993.)

 

2 sonetos de Glauco Mattoso

SONETO PARA UMA QUEBRA QUE SE CELEBRA (#2280)

A todos comunico: agora acabo
de ultrapassar a marca que comove
qualquer pesquisador, e já me gabo
de não haver que tanto assim desove!

Refiro-me aos sonetos: que comprove
quem queira contestar! Leva no rabo!
Dois mil, duzentos e setenta e nove
deixara Belli, em nome do Diabo!

Porém, sem fazer pacto com o Demo,
nem ser temente a Deus, que um Pai não temo,
supero aquele número de Belli!

Agora nem me importo se inda chego
aos três, aos quatro mil, pois meu sossego
não vem, nem que um milhão de paus eu fele!

(De Malcriados recriados: sonetário sanitário, Anablume, 2011)

 

Marcelo Diniz é doutor em Ciências da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), poeta e letrista. Autor dos livros Trecho, pela Editora Aeroplano e Fundação Biblioteca Nacional, em 2002, e Cosmologia, pela Editora 7 Letras.

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