MITsp: Teatro, racismo e lugares de fala

MITsp: Teatro, racismo e lugares de fala
Espetáculo "A missão em fragmentos" (Foto: Nereu Jr.)

Os diretores Antônio Araújo e José Fernando Peixoto de Azevedo discutem representatividade nas peças ‘Branco’ e ‘A missão em fragmentos’

 

Apresentada pela primeira vez na 4º edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em março deste ano, a peça Branco: o cheiro do lírio e do formol, em cartaz no Centro Cultural São Paulo, é polêmica só pelo assunto de que trata: “o lugar de privilégio que o branco ocupa em uma sociedade racista como a brasileira”, segundo o autor e diretor Alexandre Dal Farra. A falta de atores negros no elenco, entretanto, foi encarada por parte do público e da crítica como um ato racista por si só.

O texto provocou debate entre curadores, diretores e público de teatro: branquitude e racismo deveriam ser assuntos proibidos a brancos em suas produções culturais? Ou o contrário – deveriam ser ainda mais explorados? Para Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem e um dos idealizadores da MITsp, a questão é mais complexa: “Assisti ao espetáculo [Branco] na estreia na MITsp e não o vi como um trabalho racista justamente porque a peça tinha uma carga grande de autocrítica por parte dos artistas brancos; uma autocrítica ao seu racismo naturalizado e muitas vezes não percebido como tal”.

Espetáculo “Branco” (Foto: Guto Muniz)

O diretor de teatro e professor José Fernando Peixoto de Azevedo vai mais fundo. Para ele, a crítica citada por Araújo à branquitude só pode ser feita por brancos quando, por um momento que seja, eles se colocam no lugar do negro, reconhecendo os próprios privilégios. Para o diretor, isso é difícil, mas possível: “É uma linha tênue entre a auto-expiação e o reconhecimento de privilégios. Por isso, às vezes é mais fácil dizer que a produção que tenta fazer essa crítica é racista”.

Para explicar melhor, Peixoto cita como exemplo as peças do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que trazem outra luta importante, a de classes: “Quando Brecht coloca um capitalista em cena sofrendo, falando sobre seus sentimentos de forma exacerbada, ele constrói isso de tal modo que o cinismo da situação acaba denunciando que o ponto de vista do autor não é o do capitalista. Aquilo fica escancarado. É o mesmo com Branco: se a crítica atingir esse ponto e sair do raso da mea culpa, então é uma boa crítica”.

Autor branco em releitura negra

Ainda na MITsp, a peça A missão em fragmentos: 12 cenas em legítima defesa, do grupo Legítima Defesa, também cutucou os espectadores. Ao trazer apenas atores negros ao palco, a produção vai na contramão de Branco, ainda que também trate da temática do racismo – dessa vez apenas do ponto de vista de pessoas negras. As duas peças, no entanto, unem-se por uma questão semelhante: o lugar de fala. No caso de A missão, por se tratar de um texto original do dramaturgo alemão Heiner Müller, um homem branco.

Espetáculo “A missão em fragmentos” (Foto: Nereu Jr.)

“Dizer que eu não posso usar o texto de um branco porque eu sou negro é uma falácia. Vivemos em um país em que a escravidão acabou há pouco mais de cem anos. Então eu só poderia usar textos escritos por negros e deveria ignorar toda a produção branca? Isso é interditar o debate sobre racismo”. E arremata: “Eu tenho o direito de usar a obra que eu quiser e trabalhar sobre ela o quanto eu quiser. Eu ser negro não muda isso”, afirma Peixoto.

Araújo concorda. Para ele, o fato de o autor ser branco não impede a releitura e a reapropriação de sua obra em outro contexto: “Acho Müller um dos autores de teatro mais politicamente consistentes que existem. E mesmo com todas suas limitações de um lugar de fala branco e europeu, acho que o grupo de A missão conseguiu fazer mais do que uma releitura do texto original: eles o devoraram e incorporaram questões do nosso passado escravagista e de um Brasil atual ainda sistemicamente racista e segregacionista. Heiner Müller se tornou uma espécie de Bispo Sardinha na ação-reparação-deglutição desse quilombo cênico instaurado pelo Legítima Defesa”.

Em seu perfil no Facebook, Kil Abreu, curador do Centro Cultural São Paulo, rebateu as críticas, dizendo que o papel das duas peças é justamente incomodar e fazer a plateia se questionar sobre as próprias práticas: “Os dois espetáculos não estão pautados no mesmo momento em função de uma difusa tentativa de dar voz a negros e a brancos, diante de uma determinada questão, como se estes grupos estivessem disputando a hegemonia das narrativas em torno do racismo. Isto seria perverso como projeto curatorial”.

Para Peixoto, a questão é muito simples. “O teatro começa com os gregos falando do outro. O teatro é a história do outro. Então, sem o outro, não há teatro”.

(1) Comentário

  1. DA SUPOSTA INSANIDADE DE QUEM RECUSA MÁSCARA

    ““O teatro começa com os gregos falando do outro. O teatro é a história do outro. Então, sem o outro, não há teatro””

    https://revistacult.uol.com.br/home/teatro-racismo-e-lugares-de-fala/

    Ao apontar o outro, antes pela cor, ou por qualquer outra característica, a diferença não foi anunciada. Talvez, o lugar do ser, inclusive antes dos nomes, jamais foi instituído; sabemos que ‘ser humano’, ou apenas ‘humano’ é também uma característica mais evasiva, que propriamente inclusiva, porque sofre o efeito de vicie versa.
    Quem, ou antes, o que é o outro?
    Esse ser que não sou eu, mas no entanto capaz de afirmar para ele, eu, portanto o outro, o que sou. Mas tal afirmação nunca será válida para mim, assim como posso avaliar o outro e sempre será inviável.
    Atenção: quando parar de procurar sentido é encontrar sentido errado, ao jamais deixar de procurar, apenas garante não encontrar o sentido vicie versa, mas o consolo.
    Sobre tal consolação podemos nos limitar a Hegel, mas qual seria na prática, ao contexto, do “infinito embate entre os humanos brancos e os humanos pretos”?
    Arrisco: que recém nascido não fazem distinções de cor? Então poderíamos nos empenhar a traduzir o estado ser do recém nascido e o importar para todas as idades?
    Tal estado ser recém nascido não encontra também a ambivalência ao outro, ora obstáculo, ora para afirmação?

    Se o teatro for a instituição definitiva do outro, logo urge uma preocupação: a filosofia!
    Sabemos que o filósofo é único estado ser humano que arrisca não vestir a máscara ambivalente do teatro : o trágico e o cômico, conforme suposta justiça natural.

    Na prática de viver, se isso de fato for sentido, vivo um estado parte traduzindo o ser recém nascido e outra parte pesquisando tal quiasma eu-outro.
    Talvez seja essa a razão de tanto escândalo (obviamente conforme dores de barriga circunstanciais) de ser humano: como erigir um sentido absoluto, quando a substância for relativa?
    Apenas os covardes temem dar um passo à frente e desistem, talvez apego patológico a si mesmo ou mero compartilhamento a gosto pictórico, sei lá.

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