Teatro, narratividade e política

Teatro, narratividade e política

Welington Andrade

“Nasci em Nápoles, a 24 de maio de 1900, da união do maior ator-autor-diretor de companhia daquela altura, Eduardo Scarpetta, com Luisa De Filippo, costureira de teatro. Precisei de tempo para entender as circunstâncias do meu nascimento, porque, então, as crianças não tinham a frontalidade que hoje têm – e foi um grande choque descobrir, aos 11 anos, que era ‘filho de pai incógnito’”.

(Eduardo de Filippo)

Ainda que o ser humano seja essencialmente um animal que conta histórias (toda matéria é boa para que o homem lhe confie suas narrativas, segundo Roland Barthes), a tendência da arte hoje tem sido a de se afastar das estruturas de fabulação tradicionais que por muitos séculos sustentaram boa parte das manifestações culturais do Ocidente. As chamadas teatralidades contemporâneas, por exemplo, têm investido na superação do modelo do teatro dramático (baseado no tripé drama, ação e imitação), conferindo às duas constituintes básicas de toda e qualquer narrativa – personagem e ação – um estatuto de radical experimentação rumo à própria erosão dessas categorias.

Muitos criadores teatrais, então, têm recusado explicitamente o mundo da fábula, recriminando-a por ela constituir uma estrutura fechada, dogmática e ideologicamente cristalizada à qual tanto eles quanto os espectadores estariam subordinados por meio de uma relação de total sujeição. Entretanto, há os que – embora correndo o risco de serem tratados como conservadores ou anacrônicos – enxergam no poder de fabulação tradicional do teatro um exercício legítimo de mediação da memória, a mais épica das faculdades humanas, responsável pela resistência ao mundo especular e espetacular que assombra o indivíduo moderno dia a dia.

Se o espectador paulistano quiser experimentar o fascínio que as grandes narrativas teatrais ainda exercem sobre o homem, deverá prestigiar a montagem de A arte da comédia, do dramaturgo italiano Eduardo de Filippo, em cartaz no Sesc Santana.  Dirigida por Sergio Módena e interpretada por um elenco de doze atores – dentre os quais se destaca a presença de Ricardo Blat –, a peça, escrita em 1964, é um exercício narrativo de puro deleite, embora não abra mão de convidar o público também a uma reflexão mais acurada.

A obra narra a história de Oreste Campese, um velho ator e empresário de uma companhia teatral itinerante à beira da falência, que vai visitar, em busca de apoio para a causa do teatro, um novo prefeito recém-chegado a uma cidadezinha do interior. Vaidoso e irascível, o administrador municipal não somente se recusa a ajudar o grupo, como ainda acaba expulsando o velho ator de seu gabinete de modo grosseiro, concedendo-lhe somente, a título de indulgência, uma autorização para que Oreste ganhe um bilhete de trem e deixe logo a cidade. Entretanto, por engano, o que acaba chegando às mãos do artista é a lista de personalidades a serem recebidas pelo chefe do município naquele dia. Antes de sair do gabinete, Oreste se vinga da péssima recepção, aproveitando a troca dos papeis para lançar na cabeça do prefeito a seguinte dúvida: e, se entre as lideranças locais dali a pouco esperadas – que o prefeito não conhece, por ser de fora da cidade –, estiverem infiltrados alguns atores da companhia de Oreste, assumindo aqueles papeis na base da farsa?  A partir dessa curiosa imprecação, o prefeito e seu assessor se veem às voltas com a difícil tarefa de diferenciar a verdade da fantasia, fracassando de modo tragicômico na fixação de limites entre o que seja a realidade e o que seja a ficção.

A direção de Sergio Módena imprime um ritmo ágil às cenas e opta por explorar ao máximo os recursos de humor advindos do trabalho físico dos atores, estimulando gestos e modulações vocais muito próximos da farsa. Ricardo Blat, cuja trajetória no teatro brasileiro é digna do mais alto apreço por parte do público e da crítica, apresenta uma liberdade de atuação que faz os registros cômico e patético por onde transita o velho Oreste serem temperados por um sagaz cinismo, próprio dos grandes atores. Thelmo Fernandes confere ao papel do prefeito uma vibrante energia farsesca, explorando continuamente elementos de um humor bastante popular, que repercutem muito bem junto ao público. Ainda que, em certos momentos, essa opção leve o intérprete a alguns excessos, ela está a serviço da intensa entrega a que se lança o ator, sem nenhuma amarra “intelectualizada”, como convém a esse tipo de humor. Os tipos criados por Alcemar Vieira (o médico), Celso André (o padre) e Érika Riba (a professora) são impagáveis, seja pelo trabalho corporal seja pela técnica vocal que cada um deles domina muitíssimo bem. Vale registrar ainda a presença dos demais intérpretes, cujos personagens, embora não gozem do mesmo estatuto cômico dos anteriores, são defendidos com muito brio: Gustavo Wabner (o assessor do prefeito), Alexandre Pinheiro (o porteiro), Sávio Mol e Poena Viana (os pais da suposta criança morta), Teresa Tostes (a anfitriã de Oreste) e Sergio Somene (o farmacêutico).

Para além do trabalho criativo realizado pela direção e pelos atores, A arte da comédia oferece ao espectador um intrincado jogo narrativo de digressões e encaixes que tanto diverte como faz pensar. Cada personalidade local que o prefeito recebe em seu gabinete é percebida como um ator que participa da farsa armada por Oreste, isto é, como um personagem de uma narrativa construída paralelamente à realidade política do lugarejo, narrativa essa à qual somente o prefeito e seu assessor têm acesso. É esse vacilante senso de realidade que conduz a um exercício crítico bastante agudo: se, por um lado, o teatro é uma arte que tem o poder de interferir na realidade, a política, por sua vez, pode não passar da mera representação de uma grande farsa.

Para tornar as coisas mais complexas, os personagens “reais” da cidade são porta-vozes de narrativas rocambolescas, que beiram o inverossímil. O surgimento de um novo tipo ocasiona infalivelmente a interrupção da narrativa precedente, a fim de que uma nova história incrível seja contada ao prefeito. Esse contínuo processo de “encaixe narrativo” (categoria estudada por Tzvetan Todorov, em As estruturas narrativas) leva à percepção da política como uma vertiginosa sucessão de narrativas digressivas que nunca chegam ao final.  A vertigem das histórias se torna tragicômica; nada – seja no âmbito do teatro, seja na esfera do poder político – escapa ao mundo da fábula e de sua loquacidade.

A dramaturgia de Eduardo de Filippo (1900-1984) guarda muitas semelhanças com a de Luigi Pirandello, com quem ele estabeleceu uma relação de admiração toda especial. Em A arte da comédia, há várias alusões de que o mundo da narrativa é fictício, há também a transgressão das fronteiras entre o dentro e o fora da obra e há ainda personagens que saem de sua própria esfera fabular e penetram no mundo do espectador. Embora o princípio de incerteza que perpassa o texto não descarte a persistência do valor máximo que todo artista deve preservar para não se tornar ele próprio um farsante – o amor pelo teatro –, ele somente irá acentuar o fosso tragicômico que se interpõe entre a realidade e sua representação. Atores se obstinam em desmascarar, por intermédio de seu trabalho ficcional, o mundo da realidade circundante, mas o “teatro da política” continua sendo ainda muito convincente.

Eduardo de Filippo foi o que se pode chamar de um autêntico homem de teatro (debutou no palco – na companhia de teatro de seu pai – aos quatro anos em uma paródia da opereta Geisha, na qual aparecia caracterizado como um japonesinho), cultivando ao longo de sua carreira uma comicidade ligada à farsa e aos costumes da nova classe média italiana que emergiu do século XIX. Em A arte da comédia, ele faz um defesa apaixonada de seu pensamento teatral:

“A todos falta cordialidade, aos autores que não conhecem a sociedade à qual se dirigem, às autoridades que têm interesse em manter uma forma de intimidação e controle, aos diretores e homens de teatro presunçosos. O público é tratado mal, isso é tudo.  E tem uma indigestão política no teatro. Ele não suporta a política no teatro, nem a quer, nunca a quis. Ele está interessado nos acontecimentos que o cercam, quer encontrá-los no teatro, reconhecer-se nos personagens. Eis um prazer que o teatro não lhe oferece mais. Por um erro, porque o capital real do teatro é sempre o público”.

A montagem ora em cartaz prova que é possível fazer um teatro ao mesmo popular e crítico, invocando grandes narrativas por meio das quais o espectador usufrua de uma intrincada teia de fatos ficcionais por meio da qual pense nas causas semelhantes ao real que tais fatos estabelecem entre si.

A arte da comédia
Onde: SESC Santana – Avenida Luiz Dumont Villares, 579
Quando: até 23 de fevereiro – sextas e sábados às 21h, domingos às 18h
Quanto: R$24,00
Info.: (11) 2971-8700

welingtonandrade@revistacult.com.br

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