Teatro e urbanismo possíveis
Cena do espetáculo "Entre vãos" (Foto: Bob Sousa)
‘Entre vãos’, em cartaz até a próxima terça (16), busca compreender como os modos de vida do cidadão paulistano se alteraram com a gentrificação do espaço urbano
“Até as coisas ruins, que por vezes me aborreciam, no entanto, nas recordações parece que se purificam do mal e se apresentam de um ângulo atraente à minha imaginação”.
Fiódor Dostoiévski, Gente pobre (trad. por Fátima Bianchi)
“Sempre que passeio ao ar livre me ocorre a lembrança de meus parentes mortos e a sensação da morte e do futuro. Renasceremos!, continuou ela com a voz repleta de emoções sublimes, Mas, Werther, será que vamos nos reencontrar, nos reconhecer? Como vê isso? O que me diz. Lotte, disse eu, estendendo-lhe a mão e com os olhos cheios de lágrimas, nós vamos nos reencontrar! Aqui ou lá, vamos nos reencontrar! Não pude prosseguir… Wilheim, ela teve que me perguntar isto justamente no momento em que trazia no coração uma penosa despedida”. Essa é uma citação de Os sofrimentos do jovem Werther, de J. W. Goethe (traduzido, aqui, por Erlon José Paschoal para a Estação Liberdade) que faz parte de Entre Vãos, espetáculo do coletivo teatral A Digna dirigido por Luiz Fernando Marques. A peça integra a Trilogia do Despejo, que busca compreender como os modos de vida do cidadão paulistano se alteraram com a gentrificação do espaço urbano. A pesquisa originou também o espetáculo Condomínio Nova Era (2014) e ainda algumas ações intituladas 3 Atos Por SP, que irão nortear a criação do terceiro trabalho.
Embora pareça fazer parte colateralmente da concepção dramatúrgica de Entre Vãos, assinada por Victor Nóvoa, o famoso romance de Goethe lançado em 1774 norteia o projeto pelo entrecruzamento de afetividade e intuição, sentimento e espontaneidade que marcou o movimento europeu do Sturm und Drang no século XIX e que serve de combustível, neste início do século XXI no Brasil, para a atitude dos artistas de A Digna de se contraporem à ordem estabelecida, ou melhor, às “irracionais” ordens “estabelecidas”, aos quais os moradores da capital paulistana se submetem automática e acriticamente no dia a dia da vida da cidade. Durante o processo de construção do trabalho, os atores Ana Vitória Bella, Helena Cardoso, Laís Marques e Plinio Soares mergulharam na realidade do Edifício São Vito, um prédio de arquitetura modernista, popularmente conhecido por Treme-Treme, concebido como opção de moradia popular na baixada do Glicério e que acabou demolido em 2011. É essa construção que serve de marco regulatório entre as três histórias apresentadas simultaneamente, uma das quais o público escolhe acompanhar: a de uma balconista que trabalha numa loja de paletas mexicanas em Santa Cecília; a de um livreiro de um sebo no Anhangabaú; e a de uma mulher, conhecida como Anjo de Corredor (pessoa que guiava os moradores nas dependências do São Vito, normalmente sem luz elétrica, até seus apartamentos), que mora próximo à estação Marechal Deodoro do metrô. (Há uma quarta personagem, Walkyria Ferraz, uma espécie de empreendedora comercial, que faz uma participação especial em todas as narrativas).
Dada sua natureza tão especial, Entre Vãos constitui uma experiência teatral que não somente envolve o espectador nas malhas de uma dramaticidade sutil e delicada, diluída a ponto de se converter em pura performance, como também o convida a refletir sobre o papel que a arte pode desempenhar na vida social mais ampla, fazendo-o perceber a complexidade das formas individuais e coletivas que subjazem a ela. O espetáculo investe, por meio da “partilha do sensível” de que fala o filósofo franco-argelino Jacques Rancière, na crítica ao poder de desestabilização social empreendido imoralmente pelo projeto neoliberal, que, dia após a dia, transforma as cidades em não-lugares forjados pelos signos da desfaçatez e da desumanidade. Daí a importância que a dramaturgia assume no recorte dos tempos e dos espaços e na proposição de um desafio que leva os quinze espectadores presentes a cada uma das histórias apresentadas a verem também o que é invisível, a perceberem igualmente o que é imperceptível no cotidiano urbano.
Quando o teatro contemporâneo se propõe a ocupar a espacialidade da vida ordinária, transformando muitos logradouros públicos e privados em palcos extraordinários para suas experimentações, muito além do fetiche pelo jogo de sensações virtuais que define os modos de sensibilidade dos dias que correm, o espectador é convidado a experimentar uma ficção que “invade” a realidade e a transgride por todos os lados, conferindo um novo tipo de ordenamento ao real. “É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real”, afirma o professor Alfredo Bosi em “Narrativa e resistência”, concluindo logo em seguida que “o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente”. Espetáculos como “Entre Vãos” – que se multiplicaram pela cidade nos últimos anos – têm a capacidade de levar o espectador a sentir novas formas de socialização e a pensar em novos sentidos para o município em que habita – querendo ele, talvez, ao sair dali transformar a urbanidade impossível em uma urbanidade possível. E desejada por todos. E, por isso mesmo, real.
A presença de um livro – não qualquer livro, mas um clássico do cânone literário ocidental – costura as três narrativas, garantindo-lhes uma determinada ordem causal. O resto da experiência se dá pela natureza errática da iniciativa por parte do espectador (no caso da história do Anjo de Corredor, em esperar pela personagem em um sacolão de Campos Elísios; em entrar com ela em um apartamento que parece vazio, mas localizado em um edifício habitado; em acompanhar sua trajetória envolvente, mas lacunar; em emocionar-se com sua história – destaque-se a atuação de Helena Cardoso, marcada por comovente comedimento -; em acompanhar a atriz pelas ruas até uma estação de metrô, em cujo percurso nos sentimos um pouco atores também, sendo olhados por cidadãos surpreendidos por aquele deslocamento em grupo, às voltas com seus afazeres habituais; em adentrar um vagão de trem rumo ao imponderável…). Assim, Os sofrimentos do jovem Werther, privando da irrealidade própria da literatura, constitui uma boia de sentido lançada de dentro de um trabalho no qual o teatro se abre às contingências da vida real, instaurando a emergência da liberdade, a grande aventura humana vivida, aqui, “entre os vãos” de uma colossal estação de metrô, entre os vaus das vivências urbanas, entre os ocos repletos de sentido da atividade ficcional. “O maior feito da literatura terá sido nos ensinar uma igualdade que é a condição da liberdade, que é o verdadeiro nome da liberdade; dessa liberdade que nos faz mover através de nossa atração pelo que é errático, pelo aberrante”, afirma Vladimir Safatle em sua coluna do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 5 de maio último. É da liberdade, afinal, que trata a dramaturgia ocidental há 2.500 anos.
Concentrando-se nos sujeitos comuns que transitam despercebidos pela cidade gentrificada, Entre vãos se ocupa das ocorrências íntimas e pessoais dessa “gente que vai em frente sem nem ter com quem contar”. Indivíduos coisificados, não fosse a capacidade que o teatro tem de dar plasticidade às suas inequívocas subjetividades.
Entre vãos
Quando: Sáb., dom. e terç. às 15h – até 16 de maio.
Quanto: R$20,00.
Onde: A peça acontece nas imediações das estações Marechal Deodoro, Santa Cecília e Anhangabaú do metrô.
Mais informações: www.adigna.com/entrevaos