“Tár”, onde nada mais converge
(Imagem: Divulgação)
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Contém spoiler
Entre o além e o aquém do homem (Aléxia Bretas, 2022): eis o espaço liminar por onde trafega a personagem Lydia Tár. Muito se fala da atuação de Cate Blanchett, de fato excepcional. Mas não é apenas a performance da atriz a amarrar o espectador. Várias lacunas e ressonâncias, deixadas entre quadros e diálogos do filme, formam enigmas que exigem um trabalho de construção narrativa por parte do espectador. Essa porosidade do roteiro talvez explique a profusão de resenhas críticas, escritas desde o lançamento da obra.
Todd Field conjuga a velocidade excitante, própria ao gênero de um thriller, com a sofisticação densa e delicada de uma obra erudita. Esse ritmo duplo, entre o vulgar e o refinado, impregna tanto a forma do longa-metragem como as linhas de seu enredo. O filme já começa com uma peça solta: ao fundo, Lydia Tár está dormindo, quase dopada, em um assento de jatinho. Na frente, assistimos ao desenrolar de um diálogo pela tela de um smartphone. O tema é obviamente a maestro. Segue-se uma das frases trocadas nas mensagens: “— Você ainda a ama”.
Veremos o dorso desta cena tempos depois, quando Lydia estará à espera de Olga (Sophie Kauer). Todavia, não será esse outro prisma da mesma cena a elucidar o fio da trama. Saberemos o que estava em jogo ali apenas quando Tár aparecer proferindo sua conferência sobre música em Nova York. Mais uma vez, alguém está atrás da tela do celular, trocando mensagens. Agora a fisionomia emerge diante de nossos olhos: Olga, a violoncelista por quem Tár desastrosamente se apaixona na metade do filme.
Enquanto a maestro é o centro das atenções, a moça está teclando pelo WhatsApp. O endereço de suas mensagens não fica claro, mas pode-se supor que Francesca (Noémi Merlant) seja a destinatária. Olga lança seus comentários sarcásticos: “— Ela apelou para a metáfora da divindade; foda-me se ela usar o termo ‘alegoria’”. A maledicência refere-se à fala de Tár: “De fato, as metáforas comuns, usadas para explicar a música, são baseadas na ideia de que a música é uma linguagem… ainda que secreta e, dessa forma, sagrada e incognoscível. Esses ruídos alegres que fazemos são a coisa mais próxima que qualquer um de nós pode experimentar do divino…”. Ao final do breve chat entre Olga e alguém, lemos a mesma frase do avião: “— Você ainda a ama”. Mas esse quadro em Nova York, e tudo o que a partir dele se seguirá, vêm bem depois.
Olga, cujo significado onomástico remete a “sublime”, “consagrada a Deus”, é suposta neste lugar divino por Tár apenas quando se torna objeto de seu desejo, impregnado de vestígios românticos. Profanado, porém, o mesmo nome Olga indica alguém que constrói ideias e situações, mas também as destrói. Frequentemente, a personalidade atrelada ao nome traz a imagem de uma trabalhadora incansável e teimosa, cuja vontade de alcançar poder faz dela uma lutadora quase agressiva. A feminilidade inerente ao nome é só mais uma das armas usadas para influenciar os outros em direção aos seus ideais criativos, que devem atingir uma dimensão prática.
Há algo que vale frisar nessa análise onomástica para reiterar a chave de leitura já anunciada: estamos no limiar antitético entre a visão de uma arte transcendente, criada pela figura do Gênio (além do homem), e outra criada pelo inumano, cujas marcas são a da profanação (aquém do homem). Por esse conjunto de significantes, atrelado ao nome Olga, nota-se que não é por acaso que a jovem musicista se torna o alvo do desejo de Tár. A moça russa, que admira Clara Zetkin e chega impetuosa em Berlim em busca de uma colocação na orquestra, traz a materialidade mais rasteira que faltava à elevação da regente. O que está em jogo, porém, ultrapassa a figura que encarna o nome. Sem dúvida, o grande objeto de amor de Tár é a própria música. Ficará claro que Olga torna-se o portal para a ultrapassagem dos limites musicais aos quais Tár havia se conformado.
Até conhecer Olga, Tár — mesmo quando cedia às suas tentações sexuais — era alguém que acreditava nas regras do matrimônio. Isso fica nítido em algumas situações. Ela condena, por exemplo, Sebastian Brix (Allan Corduner) por sua misogamia (aversão ao casamento); sua relação conjugal também é marcada por papéis bem definidos. Em uma cena caseira, Sharon Goodnow (Nina Ross) a aconselha sobre os riscos de nomear Francesca (Noémi Merlant) como regente assistente em razão das polêmicas que circundam a indicação. Em outra, depois que quase tudo já desabou, Sharon acusa Tár de ter rompido o acordo entre elas: na união, a violinista desempenhava o invariável papel de aconselhá-la em todas as decisões, o que só se quebra após a violenta paixão de Tár por Olga.
Há também a cena da entrevista dada a Adam Gopnik, no New Yorker Festival, onde ela expõe o diferencial entre sua interpretação na regência da Quinta Sinfonia de Mahler e a de Leonard Bernstein:
— Mahler era tão inspirado na poesia de Rückert que por muitos anos não definiu outro autor para a música. Mas tudo isso muda com a Quinta. A Quinta é um mistério. A única pista que ele nos deixa está na contracapa do manuscrito em si. A dedicação à sua nova esposa, Alma. E, então, se você se aproxima de Mahler em sua Quinta Sinfonia, a primeira coisa que você deve fazer é tentar entender esse casamento.
No diálogo que se desdobra dentro do carro com Francesca, ambas discutem o desempenho da maestro no programa. Diante das críticas feitas pela assistente, que discorda da ênfase dada ao matrimônio de Mahler para compreender sua Quinta, Tár reitera o viés amoroso da composição. Francesca contrapõe-se à tese, expondo o lado nefasto do casamento para Alma, que também era compositora e ficou relegada a servir ao espírito criativo do marido. Nesse contexto, Tár responde: “ — Mas ela concordou com essas regras. Ninguém tomou essa decisão por ela. Hashtag: rulesofthegame”. A moça prontamente revida: “— Se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, ela deve igualmente ter o direito de subir na tribuna”.
Esse é um dos eixos centrais do roteiro: Tár, iludida sobre seu lugar excepcional de artista e enebriada pelo status alcançado, esquece-se de que as regras do jogo na atualidade mudaram completamente. Poucos se dispõem a manter-se servis ao Gênio, a menos que o trabalho esteja a serviço de ganhos compartilhados de maneira mais justa. Ainda que ame Tár, com o provérbio Francesca anuncia que sabe sobre a importância de seu papel nos bastidores dos feitos da grande regente e indica estar ciente sobre a farsa que recobre a figura do Gênio.
De modo breve: o brilho resplendoroso de um artista depende de quantas sombras que lhe dão suporte ou que são partícipes de sua criação? Obras de Gênios ou obras coletivas? Mas essas perguntas, que em certa medida resguardam algo de moral, não são tão simples de serem respondidas. Nos dias de hoje, iluminar privilégios e abusos da figura genial pode converter-se em uma desqualificação completa do artista e de sua obra (um exemplo dessa prática depreciativa está na cena com o jovem aspirante [Zethphan D. Smith-Gneist] à vaga na Juilliard School, que cancela Bach de seu repertório de estudos).
Mas há outro elemento essencial a ser recuperado da entrevista dada por Tár a Adam Gopnik: suas considerações sobre a temporalidade. Ainda na comparação entre sua leitura da Quinta de Mahler e a feita pelo seu predecessor, Leonard Bernstein, Tár ressalta uma perspectiva distinta em relação ao tempo.
Em sua pesquisa etnográfica, ela aproximou-se do povo indígena da Amazônia, os Shipibo-Konibo. Nos rituais feitos pelo xamã, o icaro (ou a canção) só era recebido se o cantor estivesse “lá”, isto é, se sua presença coincidisse com a do espírito que criou a canção. Nessa vertente, passado e presente convergem, ela explica. Seriam dois lados opostos de uma mesma moeda cósmica – o contato entre o divino e o terreno.
Há, para Tár, “um sentido nessa definição de fidelidade”. Argumenta que Lenny, diferentemente dela, pensava o tempo a partir de uma perspectiva judaica, o teshuvá. Ali observa-se o poder talmúdico que captura o tempo passado para transformar o significado das ações transcorridas. Teshuvá significa arrepender-se de algo errado e assumir o compromisso de não repetir o equívoco. Tár não considera essa perspectiva interessante para a Quinta. Em sua visão, o páthos trágico caberia mais tarde na vida de Mahler, quando Alma o abandona para Gropius. Mas a Quinta, lembra, não nasceu de uma tragédia, mas sim de um amor jovem.
Entretanto, o que veremos ao longo do filme é todo o esfacelamento dessa construção rítmica, inspirada tanto em suas investigações sobre o xamanismo como em sua visão sobre o casamento e a música. Zonas convergentes se dissolvem. Em cenas inquietantes, que se iniciam sobretudo após o suicídio da ex-aprendiz e affair sexual Krista Taylor (Sylvia Flote) e a aparição de Olga na trama, nada mais se mantém estável. O tempo desconexo de um passado irreconhecível emerge em imagens e rumores difusos.
Sussurros, gritos dispersos, sirenes de polícia, batidas na porta, pesadelos, sons imprecisos, o rosnado de um animal estranho passam a integrar seus estudos e notas musicais, assim como a perturbação feroz que a atravessa após ter sido arrebatada pela paixão e saber da morte de Krista. Desmorona-se todo o edifício ilusoriamente construído e controlado por ela. Seus passos rompem com qualquer intencionalidade programada (kavannah), lição transmitida a ela por Bernstein.
Após perder sua posição como regente da Orquestra Sinfônica de Berlim, Tár está em sua velha casa de infância. Dentre todos os objetos antigos, ela resgata uma fita cassete onde veremos um depoimento sobre música, dado por Leonard Bernstein:
Agora podemos realmente entender qual é o verdadeiro significado da música. É a maneira como você se sente quando a ouve […] e não precisamos saber um monte de coisas sobre sustenidos e bemóis e acordes […]. E o mais maravilhoso de tudo, é que não há limite para os diferentes tipos de sentimentos que a música pode causar. E alguns desses sentimentos são tão especiais e tão profundos que nem podem ser descritos em palavras. Você vê que nem sempre podemos nomear as coisas que sentimos. Às vezes podemos. Podemos dizer que sentimos alegria, prazer, tranquilidade, tanto faz, amor, ódio. Mas, de vez em quando, temos sentimentos tão profundos e tão especiais que não temos palavras para eles. E é aí que a música é tão maravilhosa. Porque a música os nomeia para nós. Apenas em notas, em vez de palavras. Está tudo na maneira como a música se move. Você nunca deve esquecer que música é movimento. Sempre indo a algum lugar. Mudando e mudando, e fluindo. De uma nota para outra. E isso pode nos dizer mais sobre como nos sentimos do que um milhão de palavras.
Como a música, Tár agora move-se. Está nas Filipinas, cenário de Apocalypse Now. O jornalista Juan Sanguino (encr.pw/BoxBb) lembra que o filme deveria ser rodado em 16 semanas, mas acaba por estender-se por 15 meses. Nesse longa, considerado por muitos como esquizofrênico, havia dúvidas sobre a sobrevivência da equipe durante a filmagem. Francis F. Coppola embarcou na loucura, junto com seu protagonista, o capitão Willard. “Sem roteiro e sem final”, tudo aconteceu de maneira muito pior do que qualquer imaginação seria capaz de configurar.
De acordo com o diretor de fotografia, Vittorio Storaro, Apocalypse Now era “um quadro da imposição de uma cultura sobre a outra e da vontade que os americanos têm de transformar tudo em espetáculo”. Consequências do espírito colonizador norte-americano aparecem quando Tár quer mergulhar no rio, mas é alertada de que existem muitos crocodilos, introduzidos no bioma asiático local pelos estadunidenses no filme de Marlon Brando. “Se os soldados reais colocavam rock and roll para bombardear povoados vietnamitas, os do filme escutavam Cavalgada das Valquírias, de Wagner. Se o exército arrasou Vietnã com explosões de napalm, Coppola rodaria a maior explosão já produzida fora de uma guerra”, compara Storaro. Onze milhões de dólares de orçamento colocaram Apocalypse Now como filme inaugural da indústria blockbuster de arte e ensaio.
Nessa última parte do filme, Tár está compenetrada estudando partituras de Tadayoshi Makino, Zhenlan Kang, Akihiko Narita, Yuko Komiyama, Masato Kouda, compositores contemporâneos da missão Gajalaka de Monster Hunter World. Risos na plateia do cinema sugerem o gozo dos espectadores ao observar alguém que estava no topo sofrer uma queda brusca. O deleite é precoce. Só seria possível saber se Tár sofreu de fato uma queda irreversível se sua história prosseguisse. Pelo prisma de onde vejo, o abalo sofrido pela regente permitiu que ela se jogasse em novos repertórios culturais e musicais, longe de ilusões transcendentais. Ela não é mais parte de um cenário elevado, mas não era exatamente a materialidade de Olga que havia furado sua ilusão de grandiosidade sublime?
Se há injustiças cometidas por artistas reconhecidos, deve-se admitir que também há muito fôlego em grande parte dessas figuras. Por que um grande artista deveria ser isento de pecados? A ilusão não estaria do lado do público que ainda espera pureza em algum lugar? Seja como for, não deixar se abater pelos percalços da vida e levar o amor à arte até o limite talvez ainda explique algo sobre o que antes era considerado genialidade. Na última cena, uma voz mecânica na sala em que o concerto de Gajalaka do Monster está acontecendo profere as seguintes palavras:
Depois de embarcar neste navio [da Quinta temporada do jogo], não há volta. O próximo chão que seus pés tocarem será o do Novo Mundo. Se algum de vocês perdeu a coragem, então afaste-se agora e não deixe ninguém julgá-lo.
Tár inclinou-se para o reles chão do Novo Mundo, onde o cenário é parco de glamour. Ali recolhe a lama do planeta e a sua, depois de ter as asas queimadas com seus altos voos de Ícaro. Aliás, três significados para o substantivo tar, encontrados no Cambridge Dictionary, são sugestivos:
- Substância preta e pegajosa, usada especialmente para fazer estradas;
- Colocar alcatrão em uma superfície (to put tar on a surface);
- Descrever alguém de forma negativa, ou fazer com que seja considerado de forma negativa, especialmente de forma injusta.
Tár deixou seu rastro tóxico espalhado por todos os lados e superfícies. Nem assim perdeu a coragem que a faz seguir amando a música. Também não se arrepende de seus tropeços, pois — como fica claro no diálogo com seu irmão — não deixa que ninguém a julgue. Essas características devem ser condenadas? Talvez apenas a realização de sua regência da Quinta Sinfonia de Mahler, após todas as suas façanhas, pudesse dizer se seus abalos e desvios valeram ou não alguma coisa.
Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).