O STF entre um cabo, um soldado e o derradeiro suspiro
(Arte Revista CULT)
A recente crise envolvendo integrantes do STF representa o derradeiro respiro de um doente terminal. Atabalhoadamente, alguns integrantes da Corte tentam recuperar um sentido de autoridade e de respeito a parâmetros e princípios, como se fosse possível, depois de uma série longa de desacertos deliberados que levaram ao cometimento em série de perversões centrais para o direito e para o próprio país.
A corte e alguns de seus ministros se tornaram, agora, os alvos centrais da sanha de uma campanha intensa de ataques e de estímulo ao ódio não pelas injustiças que cometeram, mas para que elas não cessem. O fluxo de uma Corte sem princípios, conivente e indutora do autoritarismo não pode ser interrompido. Não que ela represente hoje qualquer ameaça a consolidação do projeto de aprofundamento do capitalismo no Brasil. Neste ponto, a Corte assistiu inerte ao desmonte do direito trabalhista, como tem sido, inclusive, entusiasta do fim da previdência.
Se não há qualquer receio do STF em ser um empecilho ou dique para o desmonte da proteção social no país seria de se estranhar a razão pela qual Gilmar Mendes e a Corte sofrerem intensa campanha de desmoralização nacional. É que para além do projeto econômico, esse já praticamente consolidado, há um alargamento e aprofundamento do projeto autoritário, cujos setores corporativos do Ministério Público, Judiciário, Forças Armadas e das Polícias, em sintonia completa com os atuais ocupantes do Poder Executivo e, com apoio de redes sociais fascistizadas como cães de guarda, têm condições ideais de tempo e espaço para se sedimentar.
A triste ironia para o conservador ministro é que ele mesmo nutriu e alimentou a descaracterização do Supremo como elemento irradiador de justiça, da Constituição de 1988 e de afirmação de princípios. Por evidente, não se trata de Gilmar ou de Toffoli, mas de qualquer um que ouse opor ou tentar colocar freios ou rédeas na besta fera do pensamento autoritário. Assim, a independência do juiz para julgar de acordo com as suas convicções e com o direito é substituída pela imposição e o assenhoramento de falsos sentimentos populares para sobrepujar qualquer regra estabelecida.
Desta forma, se altera todo um sistema constitucional e legalmente estabelecido para possibilitar a prisão de um acusado mesmo que para isso tenha que se perverter todo o sistema de justiça com consequências sociais imensuráveis. Assim foi feito com relação ao aniquilamento da garantia constitucional da presunção de inocência. Lembrem que essa decisão foi tomada com ameaça explícita do ex-chefe do Exército Brasileiro, general Villas Boas, por rede social. Uns poucos caracteres do twitter, dependendo de quem faz a postagem, servem para que o STF perverta a regra Constitucional. O que sobra depois disso?
A Corte é refém do tempo ideológico dominante. Aqueles que tentam agir de forma altiva e sem se deixar levar por essa onda autoritária, sofrerão as consequências. A tristeza maior do tempo presente é que Gilmar e Toffoli passam anos luz de distância da grandeza intelectual e da fortaleza de dignidade de um Evandro Lins e Silva, cassado por Ato Institucional do regime militar. No entanto, para quem se estarrece com o grau de autoritarismo que se instala no país, é o que temos para hoje.
É preciso dizer que nos anos de governo de centro-esquerda no país a esquerda não deu conta do avanço do punitivismo e da tentativa de consolidação desse projeto autoritário. Foi de forma ingênua ou por razões de oportunismo eleitoral tragada por esses mares e, infelizmente, até hoje não foi capaz de compreender esse fenômeno, devidamente já catalogado em larga bibliografia da criminologia crítica e nos estudos sérios da relação entre poder e sistema penal. Suas lideranças, hoje presas, pagam com a própria pele os custos dessa torpeza.
A proposta de reforma da previdência trouxe, também, a possibilidade de se antecipar a aposentadoria compulsória dos ministros do STF. Por óbvio, não foi mero descuido ou erro. Se trata de pressa e de aproveitar a oportunidade histórica. Talvez, porque tenham visto a esquerda desperdiça-la com “republicanismos” e outras bazófias.
A crise no STF tem muitas variáveis e interesses em jogo. Vão desde o julgamento pela Corte da questão da prisão em segunda instância, mero subterfúgio retórico para mascarar o que realmente é: agressão a princípios constitucionais, passando pelo julgamento de acordos ilegais envolvendo bilhões de dólares firmados no porão da Justiça Federal de Curitiba pelo atual ministro da justiça quando era juiz, até disputas por poder na PGR.
Mas o central é a ânsia de consolidar o projeto autoritário de poder. A ameaça constante de impeachment e a execração pública de ministros do STF tem o claro objetivo de subjugar e obrigar a rendição. Quem olhou para o que aconteceu com Dilma Rousseff sabe que não se trata de blefe.
Bolsonaro, até o fim do mandato, poderá indicar dois nomes em substituição a ministros que cuidam de cumprir, com independência, a lei e a Constituição. Com isso, se consolidará em alguns anos uma maioria folgada na Corte. Essa maioria vai acabar com qualquer resquício de direitos individuais e direitos fundamentais que ainda resistem. É apenas questão de tempo.
A “crise” do STF se revela como uma tentativa de antecipação da construção dessa maioria. O que estamos assistindo podem ser os últimos espasmos, uma tentativa desesperada de recolocação de algo que talvez já esteja morta há algum tempo.
PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP
(1) Comentário
Seu artigo é um primor de objetividade histórica.Um primor didático. Um primor da crítica mais que pertinente à esquerda de quem deveríamos esperar um resistência eficaz e, mais, desde sempre atenta e estratégica, o que não houve. Parabéns.Não sem tristeza, lhe dou os parabéns, posto que o seu acerto mostra que erramos.