“Sou ser humano, não”

“Sou ser humano, não”

“Sou ser humano, não”. A frase do policial dita a uma moça, provavelmente uma professora, quando tentava fazer-se ouvir por ele, estarreceu a muitos. A terrível verdade de fundo dos fatos foi escancarada pelo indivíduo fardado, o burocrata do sistema que está ali para fazer o que faz: espancar, bater, atirar, lançar bombas e gás lacrimogênio contra qualquer um. Ele não age por que quer, embora  possamos argumentar que é provável que também queira. Questionado sobre seu querer, talvez nos respondesse que não quer, o que nos estarreceria novamente e nos faria saber que está vazio de si mesmo.

O policial pode ser um homem burro, como afirmou Theodor Adorno sobre os nazistas. Um sujeito sem pensamento como Arendt veio depois nos mostrar. Mas de qualquer modo, este policial nos avisa o que todos já sabemos: que há algo de desumano na violência praticada por policiais a mando do governo. Acostumados que estamos com o círculo cínico do poder, vemos o policial declarando sua guerra em que o lado particular enlaça-se  ao braço mais forte do governo.  Não vemos novidade no fato de que cada um aproveita a barbárie como pode. Mas o que está por trás desse poder particular do policial e da empáfia governamental que a sustenta?

Com aquela ponta de dúvida que surge quando sabemos que as coisas não são bem assim, paramos para pensar no que ele quis dizer com sua frase. Pensamos em seus afetos, em sua família, na escola (de polícia, inclusive) pela qual passou, no país onde é um funcionário, além de tudo, onde é muito mal pago. Certamente, ele descarrega nos outros o seu próprio ressentimento em relação ao país onde vive, ao sistema cínico ao qual serve como um otário. “Sou ser humano, não”. Como verá seus filhos, caso os tenha, pensará que são seres humanos? Que diferença isso faria para ele? Certamente nos perguntamos como pode ter pensado uma coisa como essa e dito tão calmamente: que não é um ser humano. Como esse policial pode ter, sem vergonha alguma, declarado o subtexto da barbárie à qual todos estamos condenados? O policial foi cínico e, ao mesmo tempo, mostrou a todos o círculo cínico no qual está preso junto conosco.

Mas o que o policial disse não foi apenas essa verdade que doeu em todos nós e que nos faz saber que a situação é grave. Aliás, o que ele disse não foi apenas um dito, foi também um “feito”. Um feito que nos coloca diante de questões muito sérias. O que o policial deixou claro, ao olhar para a professora com aquele desdém que vimos na cena, é que ela não existe para ele. Ele a apagou com uma frase. Restou a ela apenas o silêncio. Onde ela estará agora?

Não ser “um ser humano”, naquele momento, não era um problema epistemológico simples, não era uma oração que descrevia uma situação, mas era um gesto “performativo”, um gesto com efeito e para provocar efeito. Uma fala performativa é uma fala que faz algo com o outro. Uma fala que foi a ação pela qual ele se autorizou a “não ser um ser humano”, ou seja, a não precisar de um outro ser humano. Não existe o “humano” como substância, mas é verdade que se há algo de bom em ser humano, é o respeito a um outro ser igual a si mesmo no simples direito de existir (por isso, podemos pensar que animais são humanos). Como ele se autorizou a não participar da coisa humana? Se essa coisa humana só tem sentido enquanto é reconhecimento do outro?

Por meio de seu gesto, o policial não precisava mais reconhecer a moça, ou seja, não precisava mais respeitá-la como ser humano, assim como um feroz cão de guarda que não sabendo que é humano, não deve “reconhecimento” a quem deve estraçalhar quando for o caso.

Digamos que o policial, funcionário do governo, não se sinta engajado na “condição humana”, podemos, sem dúvida,  perguntar de onde tirou este sentimento. Mas muito mais, no caso, parece que temos que nos perguntar quem o autorizou a isso? E, mais ainda, quais são as consequências desse pensamento quando sabemos que a política – quando ela é também uma ética – depende da responsabilidade pelo que somos, dizemos e fazemos uns com os outros?

Verdade que a política que temos não é nada disso, e este policial, fruto de seu tempo, fruto das condições sociais de nosso país, é filho de nossa política. Ele vai sujar as mãos de sangue enquanto Eduardo Eichmann Paes e seus colegas de fascismo, ficarão no gabinete brincando de fazer mira.

Como um policial da SS, ele está por um triz de matar seu semelhante, justamente por que não se vê a si mesmo como um semelhante, o outro não existe. Se existe, ele o apaga. Se não se vê participando da coisa “humana” da qual os outros participam, será que é porque ele se reconhece como melhor, ou como pior? Será que se reconhece a si mesmo? Será que chega a pensar nisso? Ou estará de tal modo preso ao imediato que não se pergunta e, como um nazista qualquer, simplesmente obedece amparado na ordem governamental?

Todos sabemos que o poder de polícia é a parte crua da violência do Estado. Todos sabemos também que o culto à sociedade de segurança não passa de um modo de sustentar o poder fazendo uso da violência. Em momentos como este que vimos acima tudo fica tão claro que é de estarrecer. Não sabemos o que fazer além de administrar o próprio medo da parte que nos cabe. A personalidade autoritária e fascista está entre nós e se manifesta sem vergonha. Como será possível conviver neste cenário? Que direito poderá surgir ou ser respeitado se a proposta é a da guerra de todos contra todos?

O estado é de barbárie social. E não deveria ser.

O que nos estarrece, por fim, é que este homem ainda jovem, não tenha pensado por um minuto em quem ele é. Ninguém que pense mesmo é capaz de ir fundo e só encontrar ódio dentro de si. O conhecimento é erótico e só um burro prefere o ódio ao desejo de saber que é, neste momento, estarrecedoramente manifesto pelos professores que, a despeito de todas as suas tragédias nessa profissão humilhada que é atualmente a de ensinar, são certamente “seres humanos” mais felizes.

O outro é o conceito fundamental da ética. O outro é aquele que me precede. Que me constitui em termos ontológicos e psicológicos. Mas em temos práticos, ou seja, em temos éticos, ele é, fundamentalmente, aquele com quem me relaciono. Na irrelação, o outro permanece como um espectro,  na forma de algo absurdo que facilmente apago para me sentir bem, pois que o outro externo é sempre amedrontador, sempre terrível. Minha tendência é passar por cima dele, fingir que ele não me toca. Dizer-lhe, que não sou da sua laia… ou “não sou ser humano não”…

Theodor Adorno, filósofo do testemunho do período nazista, disse algo mais ou menos assim: enquanto soubermos manter as aparências de civilização ainda podemos ter esperança. O nazismo sobrevive em cada um que perde de vista que as coisas podem ser diferentes.

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