‘Somos cascudos e aguentamos a luta’, diz vice-presidente da Associação Teatro Oficina
Interior do Teatro Oficina, instalado no Bixiga (Jennifer Glass/Divulgação)
O embate entre o Teatro Oficina e o Grupo Silvio Santos pelo espaço em torno da sede, que já se arrasta desde os anos 1980, tem preocupado os apoiadores e membros da mais longeva companhia de teatro do Brasil. Nesta segunda (23), a maioria do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) votou a favor da construção de três torres residenciais ao lado do Teatro Oficina, no Bixiga.
“A janela que dá para a rua faz parte da linguagem da companhia, que não pode funcionar fechada em uma caixa preta. É uma linguagem que dialoga com a cidade, com a natureza, com o clima. Hoje a gente já entendeu que a luta do oficina é uma luta da cidade”, diz a atriz Camila Mota, vice-presidente da Associação Teatro Oficina e parte da companhia há mais de 20 anos.
Tanto o prédio do Oficina quanto seu envoltório são tombados pelo Condephaat desde 1982. Para continuar em frente – e seguir com a construção dos três edifícios de 28 andares cada -, o Grupo Silvio Santos ainda precisa “destombar” o terreno nas instâncias federal e municipal, representadas, respectivamente, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp).
A decisão do Condephaat contraria o próprio órgão que, em 2016, havia votado contra a construção das torres. “Foi dito que a ‘briga de vizinhos’ tinha de ser esquecida para valorizar uma área de sobreposição de bens patrimoniais”, lembra Mota. Ainda no ano passado, o Grupo Silvio Santos entrou com um recurso contra a decisão do Condephaat, afirmando que a sede do Oficina fora construída em espaço já tombado antes, o que, em tese, abre brecha para a construção das torres. “O problema que enfrentamos agora é que a legislação do Condephaat não permite um recurso contra um recurso, então precisamos atacar em outras frentes”, diz a vice-diretora.
Na tarde desta quarta (25), a companhia deve se reunir com advogados para decidir seus próximos passos. O foco, agora, passa a ser José Luiz Penna, Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, que tem poder de veto de recursos dentro do Condephaat. “Estamos articulando uma grande campanha nacional e internacional para que o Secretário tome nosso partido, até porqueo conselho do Condephaat tem maior representatividade da Secretaria de Cultura”, diz Mota.
A companhia e seus apoiadores devem permanecer alertas, pressionando o poder público para que a situação se reverta. “Somos cascudos, aguentamos a luta”, diz a vice-presidente.
Longa briga de vizinhos
Um “destombamento” do Bixiga traria problemas culturais, ambientais e de mobilidade urbana: o bairro, que agrega um terço dos tombamentos de São Paulo, já foi habitado por quilombolas, nordestinos e italianos – e abrigou a primeira sinagoga de São Paulo, hoje demolida pelo Grupo Silvio Santos. “A construção de mil apartamentos vai alterar completamente o trânsito, o comércio e até a iluminação em uma região que ainda não entrou no ritmo da obsolescência programada do resto da cidade”, protesta a atriz.
Além dos impactos regionais, o “destombamento” dos arredores do teatro pode ser ameaçador em um nível mais amplo. Projetada pelos arquitetos Lina Bo Bardi e Edson Elito, a sede do Teatro Oficina é reconhecida mundialmente como uma das mais belas do mundo, e por ter servido de palco para o início do Tropicalismo. Fundado em 1958 por Amir Haddad, José Celso Martinez Correa e Carlos Queiroz Telles, o Oficina foi berço de nomes como Etty Fraser, Maria Alice Vergueiro e Leona Cavalli e foi referência na resistência à ditadura militar.
“Somos a companhia de teatro mais antiga do Brasil, de onde surgiram muitas outras companhias e ideias. Um ‘destombamento’ quebraria um espelho que reflete muita coisa”, coloca Mota, que descreve o espaço do Oficina como um “organismo vivo em constante relação com seu entorno”.
O embate com Silvio Santos começou nos anos 1980, quando seu grupo comprou e demoliu todos os casebres do quarteirão, então com o objetivo de construir um shopping center. Na corrida contra a empreitada, Zé Celso, atual diretor da companhia, pediu o tombamento da área ao redor do Teatro Oficina ao Iphan – que foi aprovada apenas em 2010. No meio tempo, Santos modificou o projeto original, passando para as torres residenciais que hoje ameaçam o Oficina. “Eles sempre vieram com tudo, como predadores”, define Mota.
Naquele ano, porém, o magnata do SBT pareceu abrir-se para o diálogo: concedeu temporariamente o entorno ao Teatro Oficina para o festival Dionisíacas e, em 2012, aceitou trocar o terreno por outro de mesmo valor, em outro lugar da cidade. Mas a troca nunca foi feita, embora mais de 90 terrenos disponíveis tenham sido oferecidos, segundo Mota, “como se fosse um cardápio”. “Chegamos a rezonear, junto à Câmara dos Vereadores, o primeiro terreno oferecido para que o Grupo aprovasse. Não funcionou”, lembra.
Em agosto, o atual prefeito de São Paulo, João Dória, reuniu-se com Silvio Santos, Zé Celso, o vereador Eduardo Suplicy e outros integrantes do Teatro Oficina na sede do SBT em busca de uma solução. Ficou acordado que arquitetos dos dois lados tentariam criar um projeto conjunto, mas, nas reuniões seguintes, “não houve nenhum tipo de diálogo”, segundo Mota.
Para a atriz, o embate com o Grupo Silvio Santos é ilustrativo do contexto de desmonte da cultura que tem se manifestado no Brasil tanto em nível administrativo – com os cortes de gastos nos órgãos governamentais ligados à cultura – quanto social, na forma dos protestos populares contra obras de arte. “O cerco está fechando. As pessoas estão tentando proibir e criminalizar os corpos, e as coisas explodiram. O fascismo está saindo do armário, se revelando, e precisamos estar preparados”, conclui.
Errata: o Grupo Silvio Santos pretende construir três torres residenciais – e não quatro, como anteriormente publicado pela CULT.
(1) Comentário
Defender o teatro Oficina é defender a democracia