Solução de dois Estados? Dilemas atuais e perspectivas
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Após ataque terrorista promovido pelo Hamas no 7 de outubro de 2023 e a consequente guerra na Faixa de Gaza entre este grupo e Israel, a “questão palestina” retornou ao centro do debate internacional, ou seja, o dilema de uma população apátrida que hoje vive, em sua maioria, sob um regime de ocupação militar nos territórios da Cisjordânia.
Parte da sociedade internacional, inclusive o já encerrado governo de Joe Biden, tem apontado que o adiamento de uma solução para a “questão palestina” não provoca sofrimento apenas para milhões de palestinos, que, claro, são os mais afetados. Essa percepção aponta que outra grave consequência dessa realidade precária e carente de direitos é o fortalecimento de grupos armados radicais e fundamentalistas, como o Hamas e a Jihad Islâmica, que pregam o apagamento de Israel do mapa e a “expulsão de sionistas da Palestina histórica”.
A não resolução da “questão palestina”, portanto, também produz consequências para a vida da sociedade israelense que, composta por judeus e árabes, exigem o cumprimento da promessa de segurança.
O horizonte de paz e o contexto israelense
Yossi Klein Halevi, autor do livro Cartas para o meu vizinho palestino, aponta que, após o assassinato de Yitzhak Rabin – cometido por um extremista judeu e israelense contrário à paz – e a violenta e sangrenta Segunda Intifada, em um período em que ainda não havia muros ou checkpoints, a sociedade israelense perdeu a fé na possibilidade de paz e na disposição dos palestinos em estabelecer o seu próprio Estado ao lado de Israel.
Yitzhak Rabin, foi um político trabalhista e primeiro-ministro do Estado de Israel entre 1974 e 1977 e, novamente, de 1992 até o seu assassinato em 1995. Dois anos antes deste evento, Rabin e Yaser Arafat, líder da Organização para Libertação da Palestina (OLP), apertaram as mãos durante os Acordos de Oslo, que tentou estabelecer as bases para a paz e, finalmente, a construção do Estado palestino.
Muitos israelenses de direita e partidários do sionismo revisionista, incluindo membros do atual partido Likud (que significa “consolidação” ou “unidade” em hebraico), como Benjamin Netanyahu, além de integrantes de outros partidos nacionalistas e religiosos, protestaram nas ruas contra os acordos. Argumentavam que a cessão de terras aos palestinos colocaria em risco a segurança de Israel e, por isso, acusavam Rabin de traição. Alguns foram ainda mais longe, chegando a classificá-lo como “nazista” e espalhando caricaturas do então primeiro-ministro vestido com um uniforme nazista pelas ruas de Israel.
Com o assassinato de Rabin, o fracasso das negociações de Camp David II e a eclosão da Segunda Intifada – que resultou na morte de aproximadamente 741 israelenses, segundo a organização de direitos humanos B’Tselem –, o caminho ao poder para a direita do sionismo revisionista, que se opunha ao processo de paz, foi consolidado, tendo Benjamin Netanyahu como principal líder. Essa mesma direita, que programaticamente sempre rejeitou a solução de dois Estados, utilizou o trauma e o medo reais da sociedade israelense para, por meio de uma propaganda eficaz, tanto em Israel quanto entre judeus da diáspora, fortalecer a narrativa de que a Autoridade Nacional Palestina (ANP), então liderada pelo secular Al-Fatah (antiga OLP), com quem não queriam dialogar, não era diferente do islamista Hamas (abreviação de Movimento de Resistência Islâmica), com quem não poderiam dialogar.
Essa visão, no entanto, é profundamente questionável. Apesar de problemas como corrupção e um evidente antissemitismo, é pública a colaboração da Autoridade Nacional Palestina (ANP) com os serviços de segurança e inteligência de Israel, inclusive em recentes embates contra milícias da Jihad Islâmica e do Hamas.
Desde o início do século 21, a solução de dois Estados tem estado praticamente morta em Israel. Se durante todo o século 20 as lideranças palestinas reduziram a sua causa nacional a ideia de apagar a autodeterminação judaica entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, nos últimos anos fortaleceu-se na elite dirigente de Israel uma recusa ao reconhecimento de uma soberania palestina. Essa visão sustenta que, nessas condições, seria possível gerenciar uma “pequena quantidade de terrorismo” por mais tempo, como destacou, em entrevista recente, o historiador Benny Morris.
Os traumas acumulados pela sociedade israelense após décadas de ataques terroristas contra civis permitiram que essa visão se consolidasse como um consenso hegemônico na política do país. Com receio de perder votos, nem mesmo os tradicionais partidos de esquerda, que haviam apoiado a solução de dois Estados e os Acordos de Oslo, ousavam questionar a continuidade da ocupação da Cisjordânia ou a falta de um ambiente favorável a um possível processo de paz. Prova disso é que, recentemente, o parlamento israelense, que é hegemonizado por grupos de direita desde a liberal até a extremista, aprovou uma resolução contrária ao reconhecimento unilateral do Estado palestino.
Após o dia 7 de outubro, no entanto, e no contexto das manifestações contra a reforma judicial promovida pelo governo Netanyahu, movimentos da sociedade civil que defendem a criação de condições para a retomada de negociações de paz têm ganhado força em Israel. No entanto, esses movimentos ainda não conquistaram o apoio de uma maioria social. Paralelamente, na comunidade internacional, especialmente diante dos devastadores efeitos da guerra na Faixa de Gaza, cresce a pressão por uma resolução definitiva da questão palestina. Entre os que apoiam essa causa no cenário global – incluindo o governo de Joe Biden – e em Israel, prevalece a visão de que a soberania da Palestina e a segurança de Israel são partes inseparáveis de um mesmo processo.
O horizonte de paz e o reconhecimento unilateral
A partir desse contexto, a Espanha, a Irlanda e a Noruega anunciaram, meses atrás, o reconhecimento do Estado palestino. Fizeram isso afirmando que não seria mais possível adiar a resolução da questão palestina.
Deve ser um consenso nesse debate que os palestinos necessitam e têm o direito humano à autodeterminação em um Estado próprio. No entanto, embora o reconhecimento internacional seja um passo importante, ele não resolve questões fundamentais do conflito. Um exemplo disso é o fato de que uma parte significativa da sociedade palestina permanece radicalizada, rejeitando qualquer solução que não seja a criação de um Estado palestino com supremacia árabe e muçulmana, do rio ao mar. Essa parcela inclui grupos como o Hamas e a Jihad Islâmica, que recebem financiamento milionário de regimes como os do Irã e do Catar e estão presentes tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia.
A questão que permanece é: além de reconhecer o Estado palestino, como a comunidade internacional pretende abordar e solucionar essas complexidades?
Além dos grupos islamistas, a Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), atualmente sediada na Síria, também rejeita qualquer proposta que não inclua a destruição de Israel. Mesmo a Al-Fatah, que lidera a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e é frequentemente vista como uma representação “moderada” dos palestinos, mantém uma postura ambígua em relação à solução de dois Estados. Apesar das críticas recentes ao Hamas e do reconhecimento formal de Israel, a aceitação da solução de dois Estados por parte da Al-Fatah parece, até o momento, mais tática do que estratégica.
A cientista política e ex-deputada trabalhista israelense Einat Wilf, em sua obra A Guerra do Retorno, argumenta que a aceitação da solução de dois Estados pela liderança palestina da ANP não foi uma escolha genuinamente estratégica. Segundo Wilf, essa postura seria, na verdade, uma tática cujo objetivo final seria implementar o chamado “direito de retorno” de milhões de refugiados palestinos e seus descendentes, transformando, assim, os judeus em uma minoria dentro do próprio Estado de Israel.
A solução de dois Estados hoje
O reconhecimento unilateral por parte de três países europeus, celebrado inclusive por aqueles que ironicamente se opõem à solução de dois Estados, reflete a descrença de parte da comunidade internacional na possibilidade de uma negociação real entre as partes. É possível que o próprio governo israelense tenha contribuído para essa postura, ao apresentar planos de ocupação do enclave palestino, a Faixa de Gaza, e diante das declarações de integrantes do governo que abertamente pregavam a limpeza étnica, além das ações de colonos contra civis na Cisjordânia. Trata-se, portanto, de um efeito “bumerangue”.
Não se pode negar, contudo, que, assim como há grupos extremistas e kahanistas no lado israelense que rejeitam qualquer solução que não assegure a soberania exclusiva de Israel, existe também, do lado palestino, um problema igualmente grave e que foi vetor dos ataques do 7 de outubro de 2023: a negação da legitimidade da autodeterminação judaica em um território que constitui uma parte essencial da identidade e da história do povo judeu.
O reconhecimento de um Estado palestino, portanto, terá pouco impacto real se não for acompanhado de negociações de paz concretas, com lideranças israelenses e palestinas dispostas a dialogar. A paz só será alcançada quando os palestinos reconhecerem que sua liberdade está intrinsecamente ligada à segurança dos israelenses e quando, da mesma forma, os israelenses compreenderem que sua segurança depende da soberania dos palestinos.
Israel precisa da solução de dois Estados para sobreviver como país democrático
O conflito israelo-palestino não é apenas territorial. Qualquer pessoa familiarizada com sua história, que remonta ao final do século 19, com as primeiras ondas migratórias de judeus fugindo de pogroms, compreende que ele envolve questões muito mais complexas. Há um antissemitismo estrutural em partes significativas do mundo árabe, e esse mesmo antissemitismo foi um dos alicerces do nacionalismo palestino. Como reconhece Rashid Khalidi, esse nacionalismo se consolidou, em parte, como uma reação ao sionismo. A criação de um Estado palestino, portanto, não deve ser encarada como um ponto final que resolverá todos os problemas. O ódio e as ideologias que defendem a expulsão dos judeus de um território ao qual chegaram como refugiados e que é uma parte essencial de sua identidade cultural não desaparecerão facilmente.
A independência palestina deve ser vista como um ponto de partida, e não de chegada. Trata-se de uma medida necessária, embora insuficiente, para transformar a realidade de ódio mútuo entre os dois povos.
Primeiramente, porque a autodeterminação é um direito humano fundamental de qualquer povo, e judeus e palestinos compartilham esse mesmo direito. Em segundo lugar, porque o Estado de Israel não pode continuar indefinidamente controlando a vida de 5 milhões de palestinos, como tem feito desde 1967. Essa situação é insustentável. Embora a desocupação, por si só, não elimine imediatamente o ódio, a negação da soberania palestina – e até mesmo da sua existência como um povo distinto – também não resolverá o conflito. Pelo contrário, em disputas nacionais como essa, a falta de soberania tende a intensificar ressentimentos, fomentar a radicalização e perpetuar o ciclo de violência.
Um terceiro aspecto, de fundamental importância, é que a solução de dois Estados é essencial para a sobrevivência de Israel como um Estado democrático, conforme idealizado pelos fundadores do movimento sionista e do Estado judeu. A rejeição dessa solução e o consequente estabelecimento de um Estado judeu soberano do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo resultariam, inevitavelmente, em uma maioria demográfica árabe dentro de Israel. Isso colocaria o país diante de três opções, das quais apenas uma seria aceitável:
- A criação de um regime de apartheid, no qual parte da população árabe em território soberano de Israel seria privada de direitos civis, garantindo que essa população não pudesse comprometer o caráter judaico do Estado.
- A expulsão dos palestinos do território soberano de Israel, visando consolidar uma maioria demográfica judaica e, dessa forma, permitir que a minoria árabe remanescente mantivesse seus direitos civis, sem ameaçar o caráter judaico do Estado.
- A criação de um Estado único binacional, em que palestinos e israelenses compartilhariam o poder. Contudo, dada a realidade do conflito que já dura mais de um século, essa proposta – defendida por sionistas de esquerda no período entre guerras, mas rejeitada pelos árabes – esbarra em uma realidade: palestinos não aceitariam ser governados por uma minoria judaica, assim como os judeus não desejariam ser governados por uma maioria palestina.
Independentemente da opção escolhida, uma realidade seria inevitável: o fim do Estado judeu fundado em 1948, ao menos em sua versão democrática.
Uma solução possível
A sociedade israelense, queira ou não, precisará enfrentar os desafios que dizem respeito diretamente à sua identidade e ao futuro que deseja construir. Essa é, essencialmente, uma questão sobre a alma do país. Com seu octogésimo aniversário se aproximando, Israel terá de responder: quem deseja ser ao alcançar essa marca histórica?
Nesse contexto, a proposta do movimento árabe-judaico A Land for All: Two States, One Homeland merece atenção de todos que acreditam em um futuro de paz para israelenses e palestinos. O movimento sugere um modelo de dois Estados com fronteiras gradualmente flexibilizadas ao longo do tempo, instituições de natureza confederada para decisões compartilhadas que seriam aplicadas em cada Estado individualmente. Uma série de propostas que visam atender às reivindicações palestinas e, ao mesmo tempo, assegurar que os judeus não voltem a ser uma minoria em um Estado fundado para servir como seu refúgio.
A solução de dois Estados continua sendo a mais viável, a mais pragmática e a que melhor responde às aspirações nacionais de ambos os povos. No entanto, o verdadeiro desafio reside na implementação dessa solução – um processo que seria repleto de nuances que poucos conseguem compreender plenamente.
Matheus Alexandre é Cientista Social, mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).