Sobre o aparelho, o jugo e a alma

Sobre o aparelho, o jugo e a alma
Arte Andreia Freire

 

La Boétie em seu famoso Discurso sobre a servidão voluntária condenou a tirania enquanto governo de um só sobre a maioria, e o fez de certo modo espantado com os submissos. Dentre os motivos que levam à servidão voluntária, ele destaca o hábito facilmente manipulado pelos tiranos.

Ora, o hábito define o modo de ser. O subjugado, ou aquele que se habitua ao jugo, é também disciplinado a partir do que aprendeu, e se torna o fiel seguidor da verdade do jugo. Acostumamo-nos ao jugo como às mentiras que são mais fortes do que nós.

Sabemos, desde La Boétie, que não existe uma pura e simples escravidão voluntária. Qualquer escravidão conta sempre com a fragilidade do escravo. O escravizado é sempre de algum modo capturado, seja pela violência, seja pela sedução, ele se entrega muitas vezes por não ter conhecido nada diferente.

O termo web, que traduzimos por rede, é o nome próprio da arma usada pela nova escravização, a digital. Na rede, nós somos os capturados, não somos apenas transformados em funcionários, como dizia Vilém Flusser. Ela nos põe a “funcionar” de um determinado modo. Programa nosso cotidiano, nossa vida, nosso corpo, nossos gestos, nossos gostos e até mesmo nossos pensamentos. Usamos seus serviços e somos usados por ela. Somos seus servos.

Servimos não mais como trabalhadores pagos, mesmo que mal pagos. Servimos no sentido antigo de que tinham os servos aos senhores de engenho, das casas-grandes, dos donos das terras, da nobreza antiga ou feudal, sempre aristocrática, sempre a cercar-se de corpos disponíveis para o trabalho sem direitos.

“Curtir”, “compartilhar”, “enviar”, “publicar” são ações que escondem o esforço atrás de um simples clique, o ato digital. Tem que parecer que não custa nada, que cada uma está “participando”. Soa quase como uma avareza não se manifestar. Somos todos carteiros, mensageiros, jornaleiros, meninos de recado, afinal servos digitais não precisam de muita qualificação para o serviço que prestam e, de quebra, tem seu narcisismo bem compensado.

O servo digital é aquele que está sempre a serviço. Duplamente explorado ele compra o próprio jugo: o “aparelho” (se quisermos lembrar Flusser), o “dispositivo” (se quisermos lembrar Foucault) que transforma cada um em servo digital. Presos ao jugo, servimos a grandes senhores feudais, às corporações que por meio da internet administram miudamente nossa vida. As redes sociais são a parte aparentemente mais inofensiva das redes corporativas que tudo sabem sobre os hábitos de todos.

Aquele que não é pego pela rede, ou não cabe nela, pertence ao mundo dos excluídos. Nenhum excluído o é simplesmente em forma digital. No tempo em que o trabalho foi substituído pelos atos digitais, já não trabalhamos, servimos como se estivéssemos sem fazer nada, como se estivéssemos apenas brincando com um computador, um tablet, um celular.

Na frente do computador, produzimos duramente como se não estivéssemos fazendo nada. Se antes éramos seres de pensamento e ação, se a relação entre teoria e prática sempre nos pareceu tensa, agora esses fatores foram eliminados. Operadoras de máquinas que não se movem, populações inteiras entregam-se a um ritual diário de alienação e esvaziamento de si produzido em escala industrial e acessível a cada um nanotecnologicamente.

Nos cabe perguntar pelas novas condições de possibilidade da ação humana já que o servo digital nasce entre a produtividade e o consumismo diante das telas que administram o desejo. Inertes, no trabalho alienado de nossos membros adoecidos por esforços repetitivos, já não contemplamos o mundo. O que pensamos dele? Basta-nos a paisagem digital exposta na forma de ofertas pipocando na tela. Enquanto isso, nossa alma, alimentada digitalmente, configura em nós uma outra natureza.

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