Sobre fé e liberdade
Lutero é um dos teólogos mais preocupados com o tema da liberdade humana, expresso pelo paradoxo segundo o qual o cristão é um ser absolutamente livre, ao mesmo tempo em que é servo de tudo e sujeito a todos
Lauri Emilio Wirth
Falar de liberdade implica pensar relações. Assim o aprendemos na hodierna escola da vida, no jogo cotidiano das relações humanas. É ali, no dia-a-dia, que realizamos a liberdade, permeada por contingências históricas, valores culturais, preceitos religiosos e, acima de tudo, pelo complexo jogo das relações de poder. Vista assim, a liberdade é uma conquista, um resultado em constante mutação, pois transforma-se através dos tempos e lugares, assume conteúdos diversos na dinâmica viva das culturas e civilizações. A experiência da liberdade é decididamente plural. Sua falta nos lembra escravidão, tirania, opressão. Aliás, quando a liberdade se nos impõe como tema de debate, certamente o motivo é a sua falta. A experiência da privação faz da liberdade um desejo, tanto nas invisíveis redes cotidianas das tramas interpessoais quanto no complexo jogo das relações sociais.
Há contudo uma outra possibilidade de pensar a liberdade. É a liberdade como sentimento, mais ainda, como consciência de profunda dependência. Esta percepção não pretende desqualificar relações humanas, nem questionar sua autonomia. Antes, lhes confere um sentido ontológico, que as antecede e fundamenta. Para o cristianismo, embora isto nem sempre transpareça em suas práticas, o tema da liberdade extrapola relações puramente humanas. Antes, articula a transcendência do humano, sua relação com o sagrado. Assim fazendo, dá à liberdade um caráter incondicional, porque ontológico, e ao mesmo tempo a remete à responsabilidade e ao engajamento como exercício de liberdade.
Lutero, um dos teólogos certamente mais preocupados com o este tema, formulou a questão em termos de um paradoxo: o cristão é um ser absolutamente livre e a ninguém sujeito; o cristão é servo de tudo e a todos sujeito. A liberdade assim concebida é inerente à condição humana e absolutamente incondicional. É expressão da irredutível dignidade humana e não depende de contingências e relações. Assim concebida a liberdade é fundamento ontológico, expressão da transcendência do humano. Nas palavras de Lutero, liberdade é dom de Deus, não como doutrina ou norma de conduta, mas como graça que confere ao ser humano dignidade a priori, irredutível e incondicional. Uma dignidade que independe das contingências da vida, de sucessos ou fracassos. Nada e ninguém pode cerceá-la. A vida assim fundamentada não restringir-se-ia a desejos de consumo, ao cultivo de caprichos, a sucessos passageiros. E teria também uma referência para enfrentar limites, uma idéia força em meio a situações em que a percepção da liberdade se restringe à experiência de sua falta.
Mas reduzir a liberdade a uma referência ontológica poderia resultar em um difuso subjetivismo, propício para camuflar relações de conflito e exclusão. Isto não é assim para quem entende a liberdade como perfil de vida. Pois o ser humano que assim se sabe livre faz da liberdade um exercício de gratuidade. Livre para servir é um lema paradoxal. Só a liberdade concretizada no serviço é digna de credibilidade e explicita seu caráter incondicional. No linguajar das pessoas que têm fé, o fruto da liberdade é o amor. Seu critério é o engajamento pela vida, principalmente ali onde a vida demanda solidariedade e partilha.
Longe de ser reflexão introspectiva, esta percepção da liberdade nasceu de embates históricos bem concretos, em que lutas corporativas, disputas de poder e a manutenção de velhos privilégios eram instituídos e defendidos em nome da liberdade, mesmo quando seus resultados se concretizavam em guerras e massacres. Perceber a liberdade como algo transcendente não desqualifica a luta por justiça, nem sublima relações que potencialmente ou de fato instituem a escravidão. Mas confere a esta luta um novo fundamento. Pois aposta na capacidade dialogal do ser humano, não como virtude, mas como exercício de humanização. Pode assim apontar novas possibilidades, que permitem sonhar um mundo para além da luta entre vencedores e vencidos.
Aos olhos da fé, esta liberdade só é possível quando tem na transcendência sua referência principal. Revela assim profundo ceticismo em relação a um conceito não mediado de liberdade. Percebe o livre arbítrio incondicional como destrutivo e perigoso. Pois duvida da capacidade dos humanos de instituir a liberdade por seus próprios meios. Este pessimismo antropológico, contudo, aposta no ser humano como um vir a ser, como alguém que se cria e recria no exercício da liberdade ontologicamente referenciada. No exercício da liberdade como serviço à vida exercita sua própria humanização, pois transcende o mundo estreito de desejos individuais e se alimenta do desejo de vida plena para todos.
Colocado está um tema antigo, mas teimosamente recorrente e persistente através da história. É a pergunta pelas condições de plausibilidade da liberdade humana. Desconfiada do livre arbítrio dos humanos, a fé cristã explicita a suprema liberdade no exercício do amor, uma opção incondicional pela plenitude da vida. Oxalá tivéssemos aí um dado maior, um ponto de convergência entre crenças e filosofias: a preservação da vida como exercício de plena liberdade. Exercício que requer autocrítica constante dos cristãos em primeiríssimo lugar. Pois, a julgar pela grande maioria das cristianizadas práticas, o ideal da liberdade segue sendo uma idéia força em busca de um lugar.
Lauri Emilio Wirth
teólogo e professor na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)