Silvina Ocampo, a dama oculta

Silvina Ocampo, a dama oculta
A escritora argentina Silvina Ocampo em retrato de 1983 (Foto: Pepe Fernandez/Divulgação)

 

Quem tem medo de Silvina Ocampo? É provável que muitos, dada sua personalidade extravagante, a literatura fora de quaisquer padrões e um histórico cercado de mistério e suposições de todo tipo. No Brasil, certamente há esse “medo”, pois é a primeira vez que uma editora se aventura a lançar a autora.

Já não era sem tempo. Admirada por grandes nomes, como Cortázar, Borges (amigo íntimo que lhe dedicou um de seus textos mais famosos, “Pierre Menard, autor do Quixote”), Italo Calvino, Roberto Bolaño, Alejandra Pizarnik (que lhe devotava paixão suicida) e Camus, com quem manteve amizade e correspondência, Silvina era casada com Bioy Casares e irmã caçula de Victoria Ocampo, escritora e editora da revista Sur, em torno da qual circulava a moderna literatura sul-americana do século 20.

Vivia à sombra, portanto. E não ligava para isso. De uma das famílias mais ricas da Argentina, passava os dias em sua mansão, às vezes vestida nas roupas do marido mulherengo, observando com indiferença o fluxo das ideias, pessoas e aventuras sexuais. De vez em quando, se detinha em algo e escrevia. E como escrevia! Seus contos começam já encarando o leitor de forma estranhamente perturbadora – sabemos, de alguma forma, que não sairemos incólumes da experiência. Como se tecesse fábulas para adultos, ela muitas vezes apresenta pequenos animais no limite da racionalidade ou de algo incompreensível para nós, tolos humanos. A perversidade latente das crianças também a atraía, assim como sua total abertura para o mundo. Seu desdém pela mediocridade do ser humano, com fraquezas e sonhos inúteis, aliás, é visível. Qualquer rastro de compaixão é sutil. A elegância das frases (traduzidas com rara cumplicidade) e o inusitado das situações faz supor que a autora se aproxima do universo mesquinho com um arquear de sobrancelhas, pronta a transformá-lo em algo muito mais interessante. Um método espontâneo, alheio a convenções.

Assim, as disputas entre casais ganham ares quase surrealistas – John Cheever chegaria perto desse tom. A ameaça que paira sobre os amantes é indistinguível do dia a dia, o que os aproxima da loucura. Há trocas de identidade, trocas de gênero, dúvidas intimamente aterradoras, a solidão olhando de soslaio pela porta entreaberta, perversões imaginativas e traições que mais parecem surdas discussões metafísicas – ou oníricas. Ninguém está a salvo – nem os personagens, nem os leitores, nem a autora.

Como também pintava (em Paris, foi aluna de De Chirico e Léger), a força de suas imagens, por vezes camufladas em meio à prosa aparentemente linear, se destaca, nem sempre de forma pacífica, como mostra o conto que dá título a essa coletânea, para muitos a mais representativa em seus 90 anos de vida (1903-93). Era fã de Clarice Lispector, o que explica alguma coisa – ainda que o marido famoso, 11 anos mais novo, dissesse que ela não tinha sofrido influência de ninguém, era uma cria de si própria. Ao final de Fúria, tendemos a concordar com Bioy, assim como a torcer para que tudo o mais de Silvina seja traduzido por aqui.

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