Sexualidades pós-modernas

Sexualidades pós-modernas

A CULT ouviu escritores e críticos que discutem o conceito de “literatura gay” e mostram como sua interpretação é indissociável dos movimentos de emancipação homossexual e de questionamento dos cânones culturais que tiveram início no final dos anos 60.

Manuel da Costa Pinto

A existência de obras escritas por homossexuais ou com temática homoerótica coincide com a própria história da literatura, como demonstra o ensaio de Saulo Lemos publicado neste dossiê, ao qual poderíamos acrescentar alguns nomes (omitidos por economia de espaço) como Rimbaud, Verlaine, Kaváfis, Auden, Cernuda, Lezama Lima ou Severo Sarduy – numa lista quase infindável em que sempre será possível apontar lacunas.

Entretanto, as expressões “literatura homoerótica” ou “literatura gay” estão diretamente associadas a algo muito mais recente, ao movimento de emancipação política da comunidade homossexual que ocorreu no fim dos anos 60 – cujos reflexos podem ser sentidos hoje em uma série de “ações afirmativas” que incluem a criação de  espaços de convivência cada vez mais numerosos, um mercado de produtos gay, coleções de livros GLS e manifestações públicas.

Para alguns autores, os termos “homoerótico” ou “gay” se equivalem; para outros, a associação da produção literária aos movimentos reivindicatórios é decisiva para demarcar suas diferenças. “Pessoalmente, prefiro a categoria ‘literatura homoerótica’, mas entendo que a expressão ‘literatura gay’ faz sentido dentro de um marco histórico na cultura contemporânea”, afirma o poeta Italo Moriconi. “‘Literatura homoerótica’ é um termo mais geral, algo que pode ser encontrado em todas as épocas, ao passo que a ‘literatura gay’ propriamente dita seria uma vertente mais contemporânea, vinculada ao processo histórico de liberação gay, de conscientização gay, seja lá como se queira chamar esse processo; em suma, seria literatura homoerótica pós-68, pós-Stonewall” – completa Moriconi, referindo-se aos conflitos ocorridos em Nova York em 1969, quando policiais à paisana tentaram expulsar os freqüentadores homossexuais do bar Stonewall, gerando um conflito que envolveu cerca de 400 pessoas e catalisou o movimento. Desde então, o dia 28 de junho (data do “Stonewall Riot”) é comemorado em todo o mundo como “Dia Mundial do Orgulho Gay”, com paradas como a que acontece anualmente em São Paulo desde 1997, reunindo uma multidão de casais homossexuais, travestis, drag queens e simpatizantes da causa da liberdade sexual.

Quando se pensa em termos estritamente literários, contudo, a vinculação de obras e autores a uma bandeira política pode ter um efeito inverso. Afinal, a categoria “literatura gay”, ao tentar dar visibilidade a uma produção que sofre um preconceito social e mercadológico, não acabaria desqualificando essa literatura, como se ela tivesse a uma espécie de “legitimidade inferior”? A ficção e a poesia homossexuais não estariam ganhando visibilidade menos em função de suas virtudes literárias do que por sua opção temática em tempos politicamente corretos e por causa do crescente mercado que atende à comunidade gay? O recorte classificatório “literatura gay”, enfim, não corre o risco de insularizar a produção homossexual em um gueto poético no qual não cabem as avaliações estéticas usadas para os autores ditos “canônicos”?

A crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda discorda: “Hoje, a diversificação é um critério forte de mercado e pode ter sido por essa brecha que se afirmaram alguns segmentos que tinham enorme dificuldade de se fazer ouvir. Por outro lado, acho interessante, do ponto de vista político, essa afirmação gay ou homoerótica, uma vez que esta é uma literatura de ponta, que coloca em pauta novas questões teóricas e literárias. Torço para que ela consiga conquistar definitivamente o lugar de uma potente interlocução com a própria noção do valor canônico.”

A idéia de discutir o “valor canônico” das obras literárias – ou seja, os critérios de inclusão ou exclusão das obras em uma lista (cânon ou cânone) que definiria a espinha dorsal de uma cultura – faz parte de uma das tendências mais fortes da crítica literária contemporânea: os chamados estudos culturais.

Essa vertente surgiu na esteira da conceituação do pós-modernismo e corresponde, por assim dizer, à sua dimensão crítica. Se o pós-modernismo era uma espécie de superação (ora hedonista e conformista, ora militante e antiformalista) do triunfalismo modernista (com suas vanguardas que acreditavam na transformação radical do mundo através da arte), os estudos culturais são sua contrapartida.

O modernismo produziu tantos movimentos diferentes (futurismo, dadaísmo, surrealismo etc.) quanto escolas de crítica (formalismo, new criticism, crítica sociológica, fenomenologia, crítica psicanalítica, estruturalismo, etc.). Mas o fato é que cada uma dessas escolas advogava um critério central de definição do artefato literário (estilo, representação da realidade, psique, ideologia).

Simplificando brutalmente, pode-se dizer que, com o fim do ímpeto vanguardista, surgem tanto uma arte eclética – que assimila discursos estranhos à tradição modernista (a linguagem da indústria cultural e as vozes outrora excluídas da cultura hegemônica, como o feminismo e as manifestações de grupos étnicos não-ocidentais) – quanto tentativas de compreender essa cultura híbrida, sem centro ou tônica dominante, que impera nas cidades do mundo pós-industrial.

E essas tentativas acabariam redundando, ao longo dos anos 80 e até hoje, em uma vertente que questiona critérios unívocos de abordagem do “artefato literário” em nome de uma multiplicidade de paradigmas críticos, dialogando com diversas áreas das ciências humanas (em especial a antropologia), valorizando a cultura das minorias políticas e questionando aquele cânone de obras e autores do qual o modernismo deveria ser a conseqüência lógica e a superação dialética.

A inclusão de uma linhagem de escritores gays em nossa tradição literária, portanto, não poderia obedecer a ditames meramente estetizantes: “Do ponto de vista literário, não vejo na linguagem dita gay nada de muito diferenciado das formas e estilos da produção ficcional ou poética; vejo, sim, uma diferença clara no projeto político desta produção, que flagra e denuncia algumas caixas pretas da subjetividade masculina ‘ortodoxa’ através da encenação agressiva da sexualidade ou da valorização da ‘inteligência afetiva’ como forma cognitiva e produtiva”, afirma Heloisa Buarque de Hollanda.

Uma das mais importantes pesquisadoras brasileiras no âmbito dos estudos culturais, ela tem realizado em sua editora, a Aeroplano, um trabalho sistemático de publicação de autores que orbitam em torno do homoerotismo. Além de ter organizado antologias da poesia brasileira (26 Poetas hoje e Esses poetas – Uma antologia dos anos 90) em que o recorte multiculturalista é bastante pronunciado, Buarque de Hollanda acaba de lançar três livros sobre o tema: Os perigosos, de Marcelo Secron Bessa (que aborda a Aids de modo ao mesmo tempo ensaístico e autobiográfico); o volume Caio Fernando Abreu: Cartas, organizado por Italo Moriconi (reunindo correspondências do escritor morto em 1996); e O homem que amava rapazes, com ensaios de Denilson Lopes.

O livro de Denilson Lopes, aliás, expõe de modo arguto o dilema que atravessa a literatura gay. Em um dos ensaios de O homem que amava rapazes, por exemplo, ele escreve que “o século XXI bem pode ser aquele em que a homossexualidade se institucionaliza e se estabiliza socialmente” – uma afirmação que revela o movimento pendular entra a necessidade de uma “ação afirmativa” e o risco da “guetização” da homossexualidade e de sua expressão literária.

 “Os riscos, que julgo necessários, da visibilidade pública da homossexualidade estão certamente em pensar esta construção como isolada e desvinculada das ansiedades de nossa época; mas, se entendemos esta politização do privado – de resto empreendida por vários grupos minoritários, excluídos – como uma possibilidade de maior vínculo ao mundo, de busca de formas de pertencimento, em meio ao cinismo e ao ceticismo que parecem grassar, ela só pode trazer benefícios para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. O grande desafio dos militantes e estudiosos é o de colocar a questão da homossexualidade não só como algo que diga respeito a um grupo específico, mas ao conjunto da sociedade. O desafio é como aprender com o que somos, mas também com o que não somos” – declarou Denilson Lopes à CULT.

Em um meio que valoriza a pluralidade, não é de se estranhar que existam discordâncias explícitas. Diógenes Moura – escritor, jornalista, curador de fotografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo e de uma exposição anual das imagens realizadas durante a Parada do Orgulho Gay – não hesita em rejeitar a “literatura gay como fenômeno mercadológico que explora perversamente uma forma de sexualidade: “É muito fácil dar nome a uma literatura, fechando-a em guetos, como no caso da literatura gay. E é muito fácil vendê-la, porque virou moda ser viado. Nada do que li da chamada literatura gay ficou guardado. O que é literatura gay? Uma literatura que fala de um homem transando com outro? Ou de alguém que quer entrar na sociedade – aquilo que muito homossexuais chamam de ‘ser normal’? Eu não sei o que é isso, pois nunca tive problemas com nenhum de meus desejos.”

Para Diógenes Moura, “o escritor não tem sexo” – uma afirmação corajosamente modernista, fiel à idéia da autonomia do artefato literário em relação aos acidentes da vida pessoal do escritor e do ethos de uma sociedade. Mas a frase aponta para uma outra questão recorrente: haveria na experiência homossexual algo ao mesmo tempo singular (em termos existenciais) e universal (em termos literários)?

Segundo Italo Moriconi, existe na criação homoerótica “um tipo de valoração específica, distinto do valor estético no sentido tradicional, se por este se entende um certo nível de sublimação, de perfeição e beleza, de busca de uma modelização válida para as instituições pedagógicas. Existem textos ou objetos de arte que podem ter um valor positivo na questão homoerótica e negativo na estética stricto sensu, assim como pode se dar o contrário. Podemos citar o uso da imaginação pornográfica. Este uso pode se concretizar de maneira negativa ou positiva em cada um dos aspectos”.

Pornografia, corpos em combustão, sedução, violência, morte – nenhum desses temas impediu que os leitores reconhecessem indistintamente a universalidade do homossexual Genet, do libertino heterossexual Restif de la Bretonne ou do libertino panssexual que foi o Marquês de Sade. Quando se fala em “literatura homoerótica”, entretanto, estamos num terreno minado, em que sexualidade conjuga com tolerância, em que o discurso politicamente correto predispõe a uma sexualidade pacata, inofensiva, cantada em prosa e verso na maioria das coleções de livros GLS (sigla que designa a afinidade comum de “gays, lésbicas e simpatizantes”).

Para Diógenes Moura, isso escancara o oportunismo comercial (“Ninguém lança uma coleção de livros sobre heteros felizes. É uma questão de consumo.”). Mas há aí também um desafio artístico: como recusar a mercantilização dócil e, ao mesmo tempo, representar a dor humana – no que ela tem de volitivo, perverso, desviante (seja entre heteros ou homossexuais) – sem circunscrevê-la ao domínio de uma vivência isolada, que não se comunica com o outro?

“A emergência da literatura coloca o problema de sua possibilidade de universalização. Haveria um limite na literatura gay, na medida em que ela se torna o veículo corporativo de uma sensibilidade restrita. O potencial universal da literatura gay é uma questão em aberto” – diz Italo Moriconi. “Genet sempre escreveu literatura homoerótica e nunca questionaram se ele é ou não um autor de interesse universal. Portanto, o perturbador não é a literatura gay em si, mas a existência na sociedade de um grupo de pessoas que quer viver abertamente sua condição homossexual, saindo do esquema clandestino tradicional. Se isso beneficia ou não a arte é outra questão interessante. Para muitos, a homossexualidade como experiência de vida só interessa enquanto vivência permanente de transgressão. Nesse sentido, a literatura gay representa uma ruptura bem pós-modernista, pois trata-se de pensar e expressar artisticamente uma vivência normalizada da homossexualidade como um afeto entre outros, todos iguais.”

Seja como for, essa “vivência normalizada da homossexualidade” tem dado frutos editoriais na forma de coleções publicadas por editoras tradicionais como Brasiliense e Record ou como as Edições GLS.

A editora foi lançada por Laura Bacellar em 1998, durante a Bienal do Livro de São Paulo. Mas, apesar dos ventos favoráveis, enfrentou a resistência de livrarias e de distribuidores. “O maior problema não é o preconceito aberto, que é raro e vem diminuindo com a atuação dos homossexuais na mídia, mas a falta de flexibilidade e interesse dos livreiros em abrir espaço para algo novo. Não há prateleiras para livros GLS. Talvez achem que a livraria vai ser invadida por uma legião de travestis. Ou que vão lutar com unhas afiadas contra a Liga das Senhoras Católicas de Santana…”

Segundo Bacellar, a idéia de criar a editora nasceu a partir da constatação de que não havia nada de interessante para uma lésbica ler no Brasil. A partir daí, ela reuniu uma série de títulos que trazem “informação fácil, positiva, para as minorias sexuais”, uma literatura de consumo que “afirma, através de romances e histórias eróticas, o direito a uma vida feliz e realizada para gays, lésbicas, bissexuais e também para as pessoas que rompem com seu papel de gênero, como os travestis”.

Os parâmetros de seleção das obras publicadas pelas Edições GLS não deixam dúvida de que o fenômeno dos livros homoeróticos não é afetado pelas discussões acadêmicas. “Os critérios literários não foram predominantes”, diz Laura Bacellar. “A boa literatura homoerótica já é, e sempre foi, publicada por grandes editoras. Vide Caio Fernando Abreu. Preferi as obras que apresentassem conteúdo não-ficcional prático e sem preconceito, ou obras de entretenimento com modelos de vida e consciência homossexual bem positiva.”

Do ponto de vista estético – se é que esse termo faz sentido em tempos pós-modernos –, o catálogo das Edições GLS poderia ser descartado como literatura de auto-ajuda. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma ilha de maturidade em um país cujo erotismo midiático (e heterossexual) camufla uma sociedade patriarcal e moralista, na qual a “literatura gay” ainda provoca querelas conceituais eivadas de preconceito.

Enfim, se os critérios formalistas põem a perder a especificidade da experiência homossexual, restringir-se a esta esfera “empírica” acaba esvaziando o poder transformador da ficção e da poesia. Mas, se uma das tarefas da literatura é justamente solapar a linguagem ordinária, produzindo abalos sísmicos em nossa representação do mundo e, por extensão, no modo como o compreendemos, o que talvez essa literatura esteja nos dizendo é que há, na obra dos escritores homossexuais, um novo código que rege as relações entre o real e seu duplo. “Fico com a convicção de que ser um ‘escritor, gay’ – para usar a formulação de Siviano Santiago – não consiste apenas em considerar a homossexualidade como um tema, mas afirmar uma experiência que interliga vida e obra, sem reduzir a obra a um dado da biografia; a experiência gay nada tem de redutora, é um mistério insondável, implica uma ética e uma estética” – conclui Denilson Lopes.

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