Dossiê | Saussure, 100 anos depois
O linguista e filósofo suíço Ferdinand de Saussure (Andreia Freire)
Em 1916, a editora Payot publica em Paris Curso de linguística geral, obra póstuma atribuída a Ferdinand de Saussure, organizada e publicada por seus colegas – Charles Bally e Albert Sechehaye – com a colaboração de um dos seus alunos, Albert Riedlinger, e tendo como base os cadernos de estudantes que frequentaram os cursos sobre a Linguística Geral, oferecido por Saussure entre os anos acadêmicos de 1906/1907 a 1911. A esse acervo incluíram-se também notas preparatórias pessoais do professor, encontradas depois de sua morte. Esse livro recebeu sua primeira edição brasileira em 1970.
O Curso conheceu uma fortuna extraordinária para um texto de Linguística, já que foi amplamente reconhecido pelo seu valor para as Ciências Humanas. Exemplo mais conhecido dessa fortuna é o estruturalismo, movimento intelectual que ultrapassou os limites da Linguística para produzir efeitos no pensamento das Ciências Humanas, como por exemplo, na Antropologia e na Psicanálise.
A partir do Primeiro Congresso Internacional dos linguistas (1928), em Haia, nota-se que a noção de sistema presente no CLG desdobra-se no aparecimento dos termos estrutura e estruturalismo, no centro do desenvolvimento da Linguística europeia e, no pós-guerra, no campo das Ciências Humanas.
Hoje, discutir o Curso de linguística geral implica também considerar o impacto que suas edições críticas e os cadernos dos alunos provocaram no debate sobre o texto organizado por Bally e Sechehaye, assim como os efeitos do aparecimento e do estudo das Fontes Manuscritas – textos inéditos do autor que trataram da Linguística Geral, mas também de temas como as lendas germânicas e a poesia latina, que expandiram o campo de reflexão sobre a obra saussuriana.
O volume Escritos de Linguística
Geral, publicado na França (Seuil)
em 2002 e no Brasil em 2004
(Cultrix), é uma edição de parte desses manuscritos.
É a partir dos anos 1950 que os pesquisadores se voltam para esses documentos e para uma retomada das questões relativas às bases da constituição do CLG pelos seus editores, à fundação da Linguística e à irradiação da ciência da linguagem.
Seria o CLG um texto fundamental ou um texto fundador? A primeira hipótese é admitida praticamente por todos, observa Claudine Normand. A segunda hipótese, contudo, defendida desde os anos 1960, supõe no CLG uma ruptura ou um “corte epistemológico”, alçando-o a texto fundador de uma nova ciência.
Qualquer que seja a resposta a esse debate, ainda aberto, deve-se dele extrair a conclusão a que chegou o linguista Jean-Claude Milner (2002) e afirmar que não se pode fazer como se o CLG nunca tivesse sido publicado.
Os textos reunidos neste dossiê comemoram o centenário da publicação do Curso de linguística geral com artigos que tratam dos fundamentos saussurianos na letra do Curso, mas também além dele, acompanhando o movimento de Saussure nos manuscritos autógrafos, extraindo novas indagações no confronto com a vulgata, dando voz ao que diz Christian Puech (2013) sobre a permanência do Curso como um texto “que não cessa de se escrever e de se modificar ao longo e à medida de suas recepções”.
Se para Saussure é o ponto de vista que cria o objeto da Ciência Linguística, que ao contrário de outras ciências, não o tem dado de antemão, o artigo de Maria Francisca Lier-DeVitto parte da determinação desse objeto, a língua (la langue), para discorrer sobre os impasses que advêm ao se extraírem as consequências teóricas de tal delimitação, que funda a Linguística Científica e afeta as Ciências Humanas.
Claudia Lemos, no segundo ensaio,
afirma que o retorno a Freud de
Jacques Lacan passa por seu encontro
com Ferdinand de Saussure.
Avança no sentido de uma discussão sobre a intervenção de Lacan no signo saussuriano. Na tensão entre o que move Saussure e o que move Lacan, a autora reconhece que a intervenção interessa à Psicanálise, mas não à Linguística e sim a Saussure; afirma, com Lacan, que “o signo assim escrito merece ser atribuído a Saussure”.
Maria Fausta Pereira de Castro se volta para um dos temas centrais do Curso ao tratar da língua no tempo. Do seu ponto de vista, Saussure propõe um verdadeiro teorema ao afirmar que o princípio da arbitrariedade do signo explica tanto a continuidade da língua como a sua mutabilidade. No acompanhamento dos argumentos formulados por Saussure, a autora conclui que na teorização saussuriana o tempo é a condição pressuposta pelo próprio conceito de mudança, mas o verdadeiro agente da mudança é a massa falante.
O artigo de Roberto Zular aborda a teoria do signo a partir da releitura dos manuscritos de Saussure por Patrice Maniglier no livro A vida enigmática dos signos – Saussure e o estruturalismo, que tem como pano de fundo um “questionamento da ontologia do signo”. Zular retoma algumas questões levantadas pelo autor para desenvolver uma reflexão sobre os signos, que se extrapola o que diz o Saussure do Curso, ou se se inspira na revisão do estruturalismo por Maniglier, não deixa, contudo, de nos fazer ouvir Saussure no encaminhamento teórico e literário que dá ao seu texto.
Eliane Silveira traz uma reflexão sobre o movimento de Saussure em seus manuscritos, lembrando a importância crescente desses documentos para a indagação sobre a teorização saussuriana, sobre o processo de elaboração de questões presentes no CLG ou fora dele. A autora oferece também ao leitor um material novo sobre o qual se debruçar, na medida em que acompanha alguns passos de Saussure mostrando que qualquer acontecimento acadêmico ou de outra ordem pode ser razão para uma reflexão teórica pelo mestre genebrino. Até um obituário se transforma em um texto teórico, teórico demais para o seu primeiro objetivo…
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