São Paulo: uma noite em duas pólis

São Paulo: uma noite em duas pólis
Baile Funk DZ7 em Paraisópolis, zona sul de São Paulo (Foto: José Barbosa/Futura Press/Estadão Conteúdo)

 

  1. Higienópolis

Céu de São Paulo, quase 23 horas. A garrafa de vidro encontrava-se sete metros acima do asfalto (por um momento próximo a um segundo, apenas). Caso a garrafa pudesse olhar para baixo, já não veria aquele homem branco que investiu uma quantidade razoável de força para jogá-la para cima. O homem não havia exatamente sumido: ele tinha a experiência necessária para arremessar a garrafa a quase noventa graus e deslocar-se entre a turba, rapidamente e resoluto, sem desviar dos obstáculos. O choque do seu pesado corpo contra os outros corpos à sua volta provocava a reconfiguração de posições, de modo que a dança da garrafa era diversão certa: alguém toma involuntariamente o lugar do arremessador, que por sua vez se situa em uma posição que apaga as provas – quem jogou essa merda? – mas de onde consegue observar os atingidos.

Como o jogo já era conhecido, bixos e veteranos começaram a se livrar da garrafada na cabeça. Uma pequena roda se abre e a garrafa quebra no chão. O arremessador ainda se diverte: entre tantas regatas e shortinhos os estilhaços têm sua vez e dão o sangue  desejado pelo homem de vinte e dois anos, cabeça raspada, braços enormes: Tatá, como o chamam o avô seu homônimo e os amigos de sempre, ou Tavão, como o chamam os colegas arrivistas, é movido por uma excitação estranha e constante potencializada por dopamina e esteroide – espécie de vontade de morder e arrancar pedaço, de gozar em cima de absolutamente tudo, de sentir a dor dos pelos arrancados pela cera quente, de acertar alvo sem mirar.

Depois da explosão da garrafa, a procura. Momento raro de ensimesmamento, ele arrasta os olhos autoconfiantes pela multidão. Uma dúvida: não sabe se escolhe a garota que ri da própria perna sangrando ou daquela que ri da perna sangrando da outra. Algo lateja dentro dele: vai na segunda. As que riem das outras se assustam mais no momento decisivo, fato que via de regra gera mais divertimento. Ereto, de regata, encosta a mão no ombro da menina que ri: um cortezinho e tanto sangue – é uma fresca. Depois de tanta vodka bebida no bico da garrafa, ela vê sem estabilidade aquela face de topo careca, mas percebeu que foi eleita; a regata da Atlética, o porte físico, o relógio. Tudo indica que não é qualquer um a lhe dirigir a palavra, e ela deveria agradecer a sorte. Mas nenhum pensamento lhe ocorre. Gargalhou (a avó já havia alertado para as vulgaridades que gravitam em torno de uma gargalhada, quando se abre demais a boca mostram-se os dentes, a língua, quem sabe até a garganta. A mesma avó também lhe ensinara a identificar um homem rico).

Gargalhada dada, a porta estava escancarada. Segura quase de leve o braço da bixete; seu braço, como cancela, para o vendedor ambulante: duas heinekens. A cerveja já vem aberta, basta fazer a menção de despejar o líquido e ela abre a boca ( já bebeu muito mais na noite de hoje). Ela baba um pouco, mas dá o seu melhor. O próximo passo é o beijo, o aperto, o arrasto, já ultrapassaram o cerco que a polícia faz para a calourada, as vozes mais distantes, o beijo e o aperto, um carro, muito sangue para pouco corte, uma fresca.

2. Paraisópolis

São Paulo, quase 23 horas. Você conhece o anjo azul? , perguntava o amigo do primo. Ao fundo, a bola que jogava o irmãozinho não batia regularmente contra o muro. Você conhece o anjo azul? Os meninos riam e as meninas também, ela também. Saíram todos juntos pelo portão, caminharam até o fim da rua, passaram por outro portão, na sala três mulheres conversavam sobre o som do louvor. Alcançaram o quintal, e lá o amigo do amigo do primo já preparava a substância. Era incrivelmente roxa. Passa de mão em mão, dois ou três copos. Braços dormentes, sensação de voo, um piscar de olhos e já estava no baile. Rua lotada, ar livre, música invade: basta estender a mão com dois reais. O loló passa de rosto em rosto. Agora os pés também flutuam e o beat parece vir de outra atmosfera. Concentrar e aproveitar a sensação antes do cheiro do gás. O cheiro do gás geralmente vem antes do barulho. Eles aparecem de um lado, corre-se para o outro. Antes do cheiro, antes do ruído: dançar muito. Um beijo e um aperto, braços e pernas dormentes. Atravessando a sensação, o cheiro do gás. Não sabe exatamente de onde vem a vontade de vomitar. Corre como de costume, mas dessa vez do outro lado também há disparos – de gás, além de outros. Cercada, não sabe de onde vem a vontade de vomitar. A irmã a pega pela mão, como anjo, voam para uma viela. Cheiro de gás, gritos, vozes alheias invadem. A brisa parece que passa, braços e pernas ainda dormentes. A mão da irmã talvez tenha sumido, uma outra segura o seu braço. Quer respirar, não consegue. Vê estrelas e um brasão embaralhados, quer respirar e não consegue, a mão que já não é a da irmã não lhe solta. Um pau bate, um braço sufoca. No dia seguinte, culpada será a viela.

Carolina Serra Azul é pesquisadora e professora de literatura. É mestre em Teoria Literária pela FFLCH-USP, com dissertação sobre as relações entre Guimarães Rosa e o primeiro modernismo brasileiro. Atualmente, é doutoranda na mesma instituição, onde pesquisa os nexos entre literatura e cinema no Brasil da década de 1970.


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