Rumos da MPB

Rumos da MPB

Hoje, a musicalidade brasileira se reproduz e renova pela introdução dos meios eletrônicos e da valorização da palavra falada.

 

A concepção de MPB surgiu em meados da década de 1960 no meio de músicos populares, artistas de outras áreas (como a literatura, o teatro e o cinema) e intelectuais esquerdistas, alguns oriundos do Centro Popular de Cultura (CPC), criado em 1961 pelos estudantes vinculados à União Nacional dos Estudantes (UNE) e fechado em 1964 com o golpe militar. A sigla MPB era reveladora da perspectiva que orientava os intelectuais da cultura, caracterizada pelo propósito de criar uma linguagem artística congruente com o ideal de brasilidade — frente ao que se considerava o avanço da interferência estrangeira, principalmente norte-americana, na nossa cultura — e ancorada nas manifestações culturais dos segmentos populares. Assim, os ingredientes usados para o desenvolvimento da MPB seriam elementos considerados populares e nacionais.

A valorização do nacional criou uma certa ambivalência, pois, se por um lado não houve, por parte dos “emepebistas”, restrições à fórmula “bossa-novista” de estilizar o samba a partir de informações musicais estrangeiras, como o cool jazz, por outro, houve um sentimento de rejeição profunda às manifestações do rock norte-americano no Brasil, como a Jovem Guarda. As concepções de “nacional” e “popular”, tal como trabalhadas pela MPB, resultaram, de certa forma, da maneira como se retomou um certo ideal modernista — no caso, o de Mário de Andrade — de costurar o Brasil por meio da música. Para Mário, o que estava em jogo era a música erudita alimentada pelo “populário”, ou seja, as canções populares ou folclóricas não contaminadas pelo processo de modernização. Os compositores da geração pós-bossa-nova atualizaram o projeto musical modernista de Mário de Andrade. Assim, em vez de buscarem uma transfiguração erudita das sonoridades populares, procuraram desenvolver esse mesmo processo no âmbito da música popular. Músicos associados ao momento heróico de criação da MPB, como Edu Lobo e Chico Buarque — figuras emblemáticas desse contexto cultural —, geralmente pertenciam a uma extração universitária, intelectualizada e politizada, de classe média. E a despeito de incorporarem o legado harmônico e rítmico da bossa nova, procuraram introduzir em suas músicas elementos de outras regiões do Brasil, notadamente o Nordeste. Em vez de se restringirem ao comentário musical da zona sul do Rio de Janeiro, partiram para uma proposta mais ampla, no sentido de comentar o Brasil através da música popular.

É importante observar que os compositores “emepebistas” não utilizaram sempre a canção como veículo para propagar programas doutrinários. O que predominava entre os músicos era um cuidado muito grande com a elaboração formal. Entende-se, por esse motivo, por que não se pode limitar a canção da MPB que se desenvolveu nos anos de 1960 à noção de música de protesto. É comum afirmar que a música engajada se preocupava com a mensagem em detrimento da forma, mas tal afirmação não procede, pois a MPB primava pelo preciosismo prosódico: letra e música interagiam de maneira equilibrada. O compositor eximia-se de fazer discursos politizados de sentido literal, porque bastava que os aspectos musicais e poéticos da canção remetessem a segmentos populares para se configurar uma “atitude” política. “Ponteio”, entre outras composições de Edu Lobo (em parceria com José Carlos Capinam), é representativa deste tipo de procedimento. Vencedora do III Festival da TV Record de 1967, a música, pela própria temática nordestina realizada em letra e música, assumia, naquele momento, um caráter político, ao mesmo tempo em que era resultado de um fino artesanato musical.

?A sigla MPB foi mudando de significado ao longo dos anos, mas, sem dúvida, ela continua viva. Não se pode decretar a morte do conceito por critérios técnicos, ou musicais: não existe uma suposta essência da MPB que tenha perdurado até agora e que, se um dia deixar de existir, levará à extinção o termo que a designa. Só se pode dizer que uma coisa acabou quando seu nome deixa de ser proferido. Se a MPB não tem mais o significado dos anos 1960, ela nos é ainda muito familiar. Nós a encontramos nas lojas de discos, para designar, de maneira geral, musicalidades produzidas no Brasil que não se encaixam no rótulo world music, entre outros, assim como no rádio, na televisão e em outros meios de comunicação. O que talvez tenha acontecido é que a MPB tenha perdido a hegemonia que teve nos anos 1960 e 1970, pois hoje ela divide o cenário musical com várias outras musicalidades. Atualmente há rádios especializadas em gêneros específicos, do rock ao rap, da MPB à música de concerto.

Não poderia prever o futuro da MPB, mas é possível falar sobre o presente, em que a MPB convive com outras modalidades musicais, assim como proliferam idéias relativas à cultura que estão longe de um consenso e que informam, em linhas gerais, musicalidades específicas. Assim, a MPB, fundamentada desde a sua origem na idéia modernista das “três raças” (em termos culturais), à medida que pressupõe uma musicalidade resultante do encontro de informações européias, africanas e indígenas, convive com sonoridades que negam frontalmente este postulado. Há uma certa tradição do rap, representada, por exemplo, pelos Racionais MC’s, que se orienta por uma redefinição da idéia de nacionalidade, ao passo que ela não mais se confunde com os limites geográficos do Estado-nação. Em vez de postular a miscigenação em termos culturais, o que esses rappers buscam, pelo contrário, é o fortalecimento da etnia negra. Reforçam-se, dentro deste estilo,?identidades cuja ancestralidade é atribuída a povos de localidades diferentes, criando-se um mapeamento alternativo ao que conforma o Brasil, e que obedece ao um corte transversal no planeta, privilegiando redutos negros dos Estados Unidos, do Caribe, da África e do Brasil, principalmente os periféricos.

Há também outras tradições do rap que, como aconteceu com roqueiros que aqui surgiram nos anos 1980, namoram a MPB, o que significa, de uma certa maneira, a troca de uma doutrina por outra: em lugar bandeira da negritude, a volta do ideal da mestiçagem. Se Marcelo D2 realiza um casamento do rap com o samba e a bossa nova, há uma série de experiências, no Brasil, de junção do rap com a MPB. O mesmo se pode dizer com relação à música eletrônica, cujas balizas ideológicas passam, além da negritude, por identidade sexual, orientalismo e ecologismo, entre outras opções políticas e culturais, que também indicam o retorno da fábula modernista das três raças. É o caso de Marcelinho da Lua e o Bossacucanova, que mistura o drum and bass, uma das vertentes da música eletrônica, com bossa nova e outros ritmos associados à MPB. O cd Tranqüilo (primeiro disco solo de Marcelinho da Lua, lançado em 2003) é híbrido com relação a gêneros musicais: a base eletrônica do drum and bass convive com rap, reggae, rock, soul music, ritmos cubanos e bossa nova, e reúne músicos de gerações diferentes, de Luís Cláudio Ramos e João Donato a Pedro Sá. Assim, “Cotidiano”, composição de Chico Buarque de 1971, ao ser recriada pelo Bossacucanova, compatibiliza numa mesma faixa o som do drum and bass, o violão de Luís Cláudio Ramos e a voz de Seu Jorge; e para a interpretação de “Tranqüilo”, Bi Ribeiro, baixista do Paralamas, junta-se ao rapper Gustavo Black Alien.

Podemos observar que, pelo menos no momento atual, a musicalidade brasileira se reproduz e renova em grande parte através dos meios eletrônicos e da valorização da palavra falada. É possível que, nas próximas décadas, justamente aqueles músicos que afirmam estar rompendo com a MPB tradicional — tal como ocorreu com o rock que aqui se desenvolveu nos anos 1980 e, antes dele, com o tropicalismo — venham a ser lembrados como os legítimos herdeiros da sigla heróica.

Santuza Cambraia Naves
é professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio. Coordena o Núcleo de Estudos Musicais da Universidade Candido Mendes. Publicou entre outros: A MPB em discussão — entrevistas (org. com Frederico Oliveira Coelho e Tatiana Bacal; Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006)

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