Risos e sorrisos de Michel Foucault

Risos e sorrisos de Michel Foucault
Roberto Machado, década de 1980 (Cortesia Roberto Machado)

 

Formado em filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco e mestre e doutor em filosofia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, Roberto Machado fez vários estágios no Collège de France sob a orientação de Michel Foucault e pós-doutorado na Universidade de Paris 7 com Gilles Deleuze.

Professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Machado realizou pesquisas sobre medicina social e psiquiatria e estudos sobre a relação entre ontologia e estética como: Nietzsche e a verdade; Zaratustra, tragédia nietzschiana; Foucault a filosofia e a literatura; O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche; Deleuze, a arte e a filosofia. Prepara, atualmente, um livro sobre Proust e as artes.

A elegância de seu texto, nos livros, reaparece nesta entrevista que Roberto Machado concedeu por escrito à CULT.

Uma das impressões mais marcantes de seu livro está expressa numa frase quando você diz de Michel Foucault: “Ria-se muito com ele”. No início do livro, acentuando o fato de que Foucault sempre buscava levar em consideração com quem estava falando para saber o que dizer, você recorda momentos em que ele, no Japão, trata da possibilidade de uma cultura e de uma filosofia não capitalistas. Assunto muito sério, sem dúvida, principalmente porque “a era de uma cultura não ocidental do mundo capitalista estava começando”. Em 1973, por exemplo, vocês estão na casa de um de seus colegas, professor da PUC, e alguém pergunta pomposamente a Foucault sobre o seu “lugar de fala”. Você poderia nos contar esse episódio e o seu vínculo com a questão do nascimento de uma “filosofia no futuro”?

ROBERTO MACHADO Quando reli pela primeira vez o livro que estava escrevendo, fiquei impressionado com a presença do riso na vida de Foucault, a ponto de pensar em intitulá-lo “Risos e sorrisos de Michel Foucault”. Várias vezes chamo atenção para o quanto ele era engraçado. Mas também para o quanto ele se divertia com o que fazia, sem dar a suas palavras a seriedade que os outros, inclusive eu, víamos nelas. É verdade que, às vezes, eu o vi exibir diante de adversários ou críticos, com quem não interessava dialogar, risos de mofa. Como no episódio, lembrado por você, do professor que lhe perguntou pomposamente de onde ele falava, querendo que ele exibisse os princípios que autorizavam ou legitimavam sua maneira de pensar, e ele respondeu: “Daqui desta cadeira!” Felizmente durante nossos contatos, mesmo quando estridentes, seus risos eram ternos e compreensivos, e estampavam no rosto que o outro merecia um esclarecimento. Muito provavelmente isso aconteceu porque desde o início eu compreendi que o importante para ele não era ter a última palavra; era ter sua palavra.

Mas há outro aspecto importante na sua pergunta: o fato de que Foucault jamais falava do mesmo modo sobre os mesmos temas, e de que isso foi importante para eu relativizar o que ele dizia. Uma entrevista, por exemplo, não tem a importância do que é dito por ele num curso e muito menos do que é escrito num livro. Por isso suas entrevistas devem ser lidas com cuidado, exigindo atenção a quando, onde e a quem foram dadas. Dou vários exemplos disso no livro. E, embora as utilize tanto, em geral não as valorizo muito para entender sua obra quando são de outra época. A razão mais profunda disso é que Foucault não é um pensador sistemático, alguém que constrói um sistema filosófico fechado, uma filosofia da identidade, alguém que elabora um método de investigação rígido, invariável, universalmente válido. Foucault é um pensador provisório.

Você mostra a que ponto chegava a admiração de Foucault por um “jornalismo radical”, ou seja, capaz de se perguntar pela forma política que toma a vontade popular, “dar voz aos excluídos” e ao momento em que se diz “não” ao soberano. Na análise das forças em presença, opondo lutas concretas a governos repressivos, Foucault foi muito criticado por suas posições sobre a sublevação popular contra forças de repressão fortemente armadas do xá Reza Pahlevi. Ao encontrá-lo em Paris, no ano de 1979, você lhe perguntou sobre essas críticas, e ele respondeu: “As pessoas confundem um juízo de valor com um juízo de realidade. Quis dar conta do que estava acontecendo”. Essa atenção de Foucault à singularidade dos fatos políticos e teóricos reaparece numa entrevista concedida a Le Monde (maio do mesmo ano). Pode falar sobre isso?

RM Foucault não era apenas um universitário, um acadêmico, um especialista numa área de conhecimento. Ele também era um intelectual. Não no sentido de querer modelar o projeto político dos outros, mas de questionar as evidências, os hábitos, os modos de agir estabelecidos. E pelo fato de pensar que a crítica é um instrumento de luta, de resistência, gostava de intervir na imprensa, tendo sido um dos criadores do jornal francês Libération. Chegou até mesmo a expor sua ideia de que a filosofia deve fazer o diagnóstico do presente, compreender a atualidade, definindo-a como um tipo de jornalismo radical.

Esse episódio ao qual você se refere diz respeito à série de artigos que Foucault escreveu sobre o Irã em 1978. Penso que essa atividade jornalística é profundamente coerente com seu interesse pelo novo, por novas formas de agir e de pensar. Pois o que o motivou nesse episódio foi procurar entender como se dá uma sublevação popular contra uma repressão fortemente armada e a relação profunda que havia, no movimento revolucionário, entre política e religião, entre um levante popular e uma instância religiosa. E isso era novo na época.

Ora, quando o movimento popular, que ele sentiu como libertador, torna-se intolerante e sangrento, com a tomada do poder por Khomeini e o estabelecimento de um Estado teocrático, Foucault critica o caminho tomado pela sublevação, ressaltando não ter mudado de posição porque continuou contra qualquer regime repressivo. É nesse contexto que ele defende o direito e o universal. Se eu chamei atenção para isso foi porque até essa época era difícil vê-lo pensar assim. E porque essa referência ao direito e ao universal se dá no âmbito de uma análise política. Como também aconteceu, na mesma época, quando ele defende Klaus Croissant, advogado do grupo Baader-Meinhof, preso pela polícia francesa e extraditado a pedido do governo alemão, e os militantes políticos espanhóis condenados pelo regime fascista de Franco ao garrote vil.

Vamos falar de sua temporada na Universidade Católica de Louvain? À primeira vista, sua formação filosófica esteve um tanto apartada das leituras de Marx e Althusser, feitas em paralelo, com militantes da Ação Popular da qual você foi membro e simpatizante. Você não foi tão obediente a seu tutor em Louvain?

RM Não fui inteiramente obediente a esse conselho de que o importante é conhecer o pensamento dos outros e não ousar pensar por si mesmo, por ter procurado, durante minha formação acadêmica, articular estudos de filosofia marxista com atividades políticas existentes no Brasil. Mas isso não foi o mais importante, inclusive porque eu não via aqueles estudos paralelos como se fizessem parte de minha formação filosófica. O que prevaleceu durante esse período na Universidade de Louvain foi a compreensão de que, se quisesse possuir uma boa formação filosófica, precisava privilegiar o conhecimento dos clássicos. E não tenho dúvida de que a tentação de reduzir a filosofia à história da filosofia esteve presente durante toda minha vida profissional.

Felizmente, de volta ao Brasil, passei a admirar Nietzsche por haver afirmado com destemor que mora em sua própria casa, sem jamais ter imitado ninguém, e criticado os filósofos que pensam como se fossem especialistas no cérebro da sanguessuga. Ou a valorizar o alerta de Deleuze de que a história da filosofia não deve funcionar como uma escola de intimidação do pensamento, ou exercer um papel repressor. Mas quem mais contribuiu para o que, bem ou mal, eu fiz esses anos todos foi Foucault. Não tenho dúvida de que minha relação com Foucault era motivada pelo desejo não de ficar repetindo os filósofos, mas de fazer alguma coisa a partir de seu pensamento, de utilizar o instrumental filosófico criado por ele para produzir um conhecimento novo.

E você seguiu outros caminhos, diferentes daqueles tomados por Foucault em 1977 ou 1980, quando Deleuze chegou a enxergar, nestes últimos, uma crise no trabalho intelectual. Você, por seu turno, parece reconhecer uma unidade temática na circunscrição do problema que relaciona o poder e a investigação de novas formas de governar, unidade entrevista retrospectivamente, e mais de uma vez, pelo próprio Foucault. Por outro lado ainda, a composição de seu livro atesta que você continua dando importância à relação entre filosofia e outros saberes, não apenas os produzidos pelas ciências, mas principalmente pelas artes e filosofia. Como então o tema do trágico lhe permitiu articular estética e ontologia?

RM Esse desejo de produzir um conhecimento novo, levando em consideração exigências metodológicas criadas por Foucault, se realizou primeiro com a pesquisa que fiz em grupo – antes mesmo de concluir o doutorado – sobre o nascimento da medicina social e da psiquiatria brasileiras. Mas até mesmo quando abandonei a pesquisa de documentos médicos e psiquiátricos, o projeto de relacionar a filosofia com outros saberes, que ele realizou tão bem, foi o que me levou a privilegiar temas estéticos e ontológicos, como o trágico.

Quando se pensa em trágico geralmente se pensa em Nietzsche. Quis, no entanto, mostrar que Nietzsche se insere perfeitamente no projeto existente, na Alemanha, desde o final do século 18 de interpretar a tragédia como documento filosófico, ontológico, que apresentaria uma visão trágica do mundo. Pensadores importantes como Peter Szondi, Lacoue-Labarthe e Jacques Taminiaux me ensinaram isso e muito mais a esse respeito. Mas esse estudo que fiz sobre o trágico – do seu nascimento com Schiller até seu apogeu com Nietzsche – pode ser aproximado da história arqueológica de Foucault, por eu ter procurado fazer uma análise que privilegiasse o conceito, atento a seu aparecimento e a suas transformações no tempo.

Você poderia nos dizer em que medida – bem entendida: não como “homenagem” nem como uma “explicação” – a sua retomada dos temas e problemáticas iniciais de Foucault estaria aliada à sua própria perspectiva política hoje?

RM Quando escrevia esse livro, foi muito interessante relembrar que Foucault dissera numa entrevista a uma revista japonesa, em 1976 – época em que estava interessado em saber se vivíamos o fim da idade da revolução – que em países excessivamente explorados como o Brasil e a Bolívia a revolução ainda é efetivamente desejada, concluindo que o papel do intelectual deve ser restabelecer o mesmo desejo de revolução que havia no século 19 Acredito que esse desejo de revolução que ele detectou nas pessoas com quem teve contato no Brasil foi o que o motivou a vir aqui cinco vezes e contribuir para nossos trabalhos teóricos e políticos. E se achei interessante essa declaração foi porque Foucault foi justamente o pensador e militante que mostrou a muitos de nós, com mais argúcia e coragem, como é possível cultivar um projeto revolucionário socialista diferente do que ficou conhecido com o nome de “socialismo real”. Durante o período em que estive novamente mergulhado em seus textos para avivar a memória e escrever esse misto de testemunho e reflexão, uma pergunta esteve o tempo todo presente: “Que pensaria e faria ele hoje”?


SILVIO ROSA FILHO é professor do departamento de Filosofia da Unifesp

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