Em defesa de um julgamento justo e imparcial para Lula
Lula é recebido por movimentos sociais em Curitiba (Foto Ricardo Stuckert / Fotos públicas)
Nesta quarta-feira (24), um evento de importância histórica e política ímpar terá lugar nas dependências do Tribunal Regional Federal da 4º Região, na cidade de Porto Alegre.
Dentre os milhares de processos julgados todos os meses na Corte gaúcha, destaca-se um caso que terá impacto direto na já combalida democracia brasileira: o recurso do ex-presidente Lula contra a sentença proferida, em primeiro grau, no processo do triplex no Guarujá pelo juiz Sergio Moro no âmbito da Operação Lava Jato.
Uma turma colegiada, composta por três desembargadores, deverá apreciar as razões da defesa do ex-presidente para avaliar se e em qual medida a condenação a nove anos e meio de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, com base quase que exclusivamente na delação premiada de Leo Pinheiro, deverá prosperar.
Se não houver um pedido de vista do processo pelo terceiro juiz ou algum outro incidente excepcional, é bastante provável que, no próprio dia 24, tenhamos um veredicto sobre a acusação de que o ex-presidente teria sido beneficiado, com um triplex e suas reformas, pela OAS em troca de favorecimento ilegal da construtora em três contratos junto a Petrobrás. Lembrando que este caso teve início com aquela memorável denúncia baseada em um PowerPoint.
Ainda que haja possibilidade de recorrer também de tal decisão, após a recente mudança de entendimento do STF que passou a admitir o cumprimento da pena após a condenação em segunda instância (e não mais após o trânsito em julgado), a verdade é que pouco resultado prático – jurídico ou político – pode-se esperar de um eventual recurso ao STJ ou STF.
Isso porque a campanha midiática que embala o ritmo acelerado de tramitação deste processo tem um objetivo bastante claro: retirar Lula da disputa presidencial de 2018 com base na Lei da Ficha Limpa.
A corrupção sistemática do Direito pela política na Operação Lava Jato
Ainda que se trate de esferas da existência humana profundamente interrelacionadas e mutuamente implicadas, com zonas de indistinção relevantes, há uma diferença inquestionável, com relativa autonomia e certas peculiaridades, entre tais esferas que não deveriam permitir uma redução do direito à política.
Assim, o problema não reside no empoderamento das instituições do sistema de justiça, efetivadas sobretudo a partir de 1988, para que cumpram suas elevadas atribuições constitucionais. O que tem chamado a atenção, mais recentemente, é a politização excessiva do direito combinada com a judicialização da política, como tem ocorrido com frequência no país, mediante a qual um poder com membros não-eleitos, que gozam de privilégios corporativos e super salários, interferem, indevidamente e sem fundamento, em atos de competência de outros Poderes e em questões pertinentes ao exercício do livre jogo político. Tão grave ou mais grave do que a corrupção de dinheiro público que se declara combater com a Operação Lava Jato é a corrupção institucional do direito pela política.
O uso do direito para fins políticos, nomeadamente para salvaguardar os interesses do partido da ordem, certamente não é uma novidade na história do Brasil. Para nos atermos ao exemplo mais recente, em 2016, utilizaram-se de um simulacro do direito, de seus ritos e instituições, passando um golpe no Legislativo e com respaldo do Judiciário como se um “impeachment” fosse, para cassar o mandato da presidenta legitimamente eleita; agora, valem-se dos mesmos procedimentos e estratagemas para, judicialmente, cassar os direitos políticos de Lula de modo a impedir, à força, que o pré-candidato mais bem avaliado nas pesquisas eleitorais concorra a presidente no pleito de 2018.
A Operação Lava Jato, a despeito de alegar a finalidade de combate à corrupção, tem rotinizado as piores práticas investigativas e feito da exceção a regra, como se fins justificassem os meios. Nesse sentido, o que se poderá consumar no dia 24 caso a condenação seja mantida é a consagração do processo penal de exceção e um desdobramento direto e judicial do golpe parlamentar, aprofundando a ruptura institucional que desqualifica as eleições como meio legítimo de expressão da soberania popular.
Um processo de irregularidades e abusos
Do ponto de vista jurídico, o processo está eivado de irregularidades e abusos flagrantes.
1 – Sérgio Moro, na decisão que julgou os Embargos de Declaração da sentença opostos pela defesa de Lula, afirmou categoricamente que não há elementos que vinculem o suposto favorecimento a fraudes nos contratos da Petrobrás. Assim consta na decisão: “Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-presidente”. Ora, como então se pode sustentar a competência da Vara de Curitiba para processar e julgar este processo? Mesmo diante da normalização da exceção da Lava Jato, não se justifica a tal jurisdição quase universal de Moro, ainda mais com todas as evidências de parcialidade que levariam à suspeição de qualquer juiz.
2 – Não se prova que Lula praticou ou deixou de praticar um ato de ofício para receber algum benefício em contrapartida. A sentença assume que os atos são indeterminados, ou seja, não se especifica que atos seriam estes pelos quais ele recebeu um apartamento que nunca foi de propriedade de Lula e do qual ele nunca teve a posse. Não é possível considerar um “proprietário oculto” invertendo o ônus da prova sem qualquer elemento que justifique a “atribuição” do bem ao réu.
3 – Em 4 de março de 2016, Moro ordenou a condução coercitiva de Lula para Curitiba, em um espetáculo midiático e gerando enorme comoção. No entanto, o procedimento era totalmente injustificado e abusivo. Não houve, em momento algum, recusa por parte do ex-presidente, que sempre teve endereço certo e conhecido, a uma intimação legítima. Aliás, até onde se sabe, ele tem contribuído com as investigações, seja comparecendo pra depor, seja por meio das notas públicas que seu instituto tem publicado dando suas versões dos fatos em questão. Se tais versões correspondem à realidade, caberá às investigações apurar, mas estritamente dentro da legalidade.
4 – Poucos dias antes da condução coercitiva, Moro havia determinado a interceptação telefônica ilegal do escritório Teixeira, Martins e Advogados, que defende Lula no processo. Tal procedimento configura frontal violação ao Estatuto da Advocacia e permitiu que o juiz tivesse ciência prévia da estratégia e argumentos de defesa de Lula, o que é um absurdo.
4 – A intercepção telefônica entre a então presidente Dilma e Lula, também no mês de março de 2016, foi flagrantemente ilegal por usurpação de competência, pois envolvia autoridade com prerrogativa de foro e só poderia ser determinada pelo STF, como reconheceu o Ministro Teori Zavascki ao declarar a nulidade do conteúdo jurídico das conversas.
5 – Mas a ilegalidade não se resumiu à interceptação. Outro absurdo, quanto às conversas entre a então presidenta e Lula e deste em outras conversas privadas sem qualquer relação com o objeto da investigação, foi o “levantamento de sigilo” ou vazamento para a imprensa, procedimento ilegal apontado pelo próprio Ministro Teori.
Isso tudo sem falar no impedimento casuístico, por Gilmar Mendes em consonância os clamores populares insuflados por Moro, da nomeação de Lula como ministro de Dilma, sendo que Moreira Franco foi nomeado ministro mesmo denunciado pouco tempo depois por Michel Temer após o golpe.
O direito a um julgamento justo, independente e imparcial
O problema, assim, não é colocar Lula no banco dos réus. Todos os cidadãos, sobretudo os que exercem funções públicas, devem responder por seus atos e, quando houver materialidade na acusação, devem ser julgados pela Justiça. No entanto, o julgamento deve ser justo, imparcial e independente. Para todos.
Não é isso que se tem verificado, desde o princípio dessa ação, nas medidas da Operação Lava Jato sob condução do juiz Sérgio Moro, que há muito deixou de ser juiz para tornar-se acusador.
Lula não está acima da lei, mas tampouco pode ser atirado para debaixo da lei. O fato de haver centenas de milhares de presos sem julgamento em nosso falido sistema carcerário e o de ser rotina a violação de direitos básicos das populações pobres e periféricas por parte do Estado penal não são suficientes para afastar as ilegalidades em que incorreu o juiz Moro. Agora que o mesmo se passa com os do “andar de cima”, não temos motivo para comemorar a distribuição igualitária da injustiça e da ilegalidade, mas sim uma boa oportunidade para mudar essa realidade para todos, já que a arbitrariedade atingiu um ex-presidente e conferiu uma enorme visibilidade para esse problema estrutural.
Além disso, o caso de Lula assume relevância particular por se configurar um claro cerco judicial com o objetivo de pautar as eleições de 2018. A destituição, ilegal diga-se de passagem, de uma presidenta legitimamente eleita encontra agora seu complemento na suspensão arbitrária dos direitos políticos de um ex-presidente. Cassação de direitos políticos com o claro objetivo de neutralizar adversários é típico de regimes autoritários que realizam eleições de fachada, como foi a ditadura brasileira.
Por isso, é hora de nos posicionarmos claramente contra o absurdo da perseguição judicial a que Lula tem sido submetido. A defesa do direito de Lula ser candidato, independentemente das nossas preferências para as próximas eleições, é impositiva e urgente. Ninguém precisa votar em Lula para assumir a defesa de seus direitos fundamentais. Trata-se de uma defesa da soberania popular, da democracia e do que nos resta de Estado de Direito.