Assumir-se ou não, eis ainda a questão
Martin Sheen e Sam Waterston em cena como o casal Robert e Sol na série Grace and Frankie (Foto: Divulgação)
Por que homossexuais devem “assumir-se” homossexuais enquanto nenhum heterossexual precisa assumir sua heterossexualidade?
Nos últimos dias, circulou amplamente, pela imprensa e pelas redes sociais, uma notícia um tanto inusitada. Meet Roman, casado com uma mulher há 67 anos, com quem tem filhos, netos e bisnetos, decidiu assumir-se gay.
Alguém “sair do armário”, a princípio, não deveria ser um fato merecedor de tanta repercussão pública. Fosse ele uma celebridade ou um grande astro, seria compreensível a curiosidade despertada em torno de sua orientação sexual. No entanto, o surpreendente, no caso deste homem “comum”, parece repousar no fato de um idoso tomar a decisão de assumir sua homossexualidade aos 95 anos de idade.
Situação bastante semelhante, mas na ficção, pode ser vista no seriado Grace and Frankie, disponível na Netflix. Trata-se da história de duas mulheres que chegam à terceira idade com a revelação inesperada de que seus maridos, em vez de apenas amigos e sócios em um escritório de advocacia, são amantes há mais de vinte anos.
Depois de receber tal notícia um tanto desconcertante, uma das primeiras reações de Frankie (Lily Tomlin) foi questionar Sol (Sam Waterston), seu marido: “mas você não poderia ter me dito isso uns 20 anos antes?”. Por sua vez, Gracie (Jane Fonda) interpelou Robert (Martin Sheen) perguntando: “por que você demorou tanto?”
As situações de Roman, Sol e Robert, apesar das diferenças entre o mundo real e o ficcional, parecem guardar entre si uma semelhança fundamental: são todos eles homens considerados idosos, que foram casados com mulheres por décadas e que resolveram, em determinado momento da vida, assumirem uma orientação ou identidade homossexual.
Quando sair do armário?
Diante desses casos, é comum que apareçam diversas questões que nos intrigam diante de um processo que desafia a conduta que seria esperada de homens heterossexuais e casados. A depender de nossos valores, perguntamo-nos: será que ele sempre foi gay? Será que a mulher nunca desconfiou? Por que demorou tanto tempo? Será que ele precisava mesmo se assumir a essa altura da vida? Não seria melhor guardar para si esse segredo?
Todas estas são perguntas recorrentes e que refletem um misto de indignação por ter demorado tanto tempo, de compaixão pelo sofrimento (seja do marido, seja da mulher) e até de alegria por alguém escapar de uma situação de clandestinidade para uma vivência mais autêntica de sua própria sexualidade.
Mas uma questão fundamental e que poucas vezes nos fazemos poderia ser assim formulada: por que homossexuais devem “assumir-se” homossexuais enquanto nenhum heterossexual precisa assumir sua heterossexualidade?
A resposta, em boa medida, está na constatação de que vivemos em sociedades reguladas por uma “heterossexualidade compulsória” ou, ainda, por uma “evidência heteronormativa”. Isso significa que a “regra geral”, produzida pela interação de discursos médicos, legais, criminológicos, religiosos e morais,é a de que todos homens e mulheres devem ter como objeto de seu desejo sexual somente pessoas do sexo oposto. Os que destoam de tal “evidência”, quase naturalizada, é que devem se questionar sobre sua sexualidade, expô-la publicamente, assumir então o seu “desvio” sempre e por toda a vida, suportar os ônus e dificuldades daí decorrentes.
Pouco importa, para essa discussão, se o homossexual já “nasce assim” ou se ele acaba se tornando um homossexual. Independentemente da gênese da orientação sexual na constituição do sujeito, que parece envolver tanto fatores biológicos quanto sociais, interessa mais aqui apontar que o momento dessa “descoberta de si” emerge como um dos aspectos mais centrais para um homossexual.
Meet Roman, 95, conversa sobre sua homossexualidade com David Wavey
Sair do armário até quando?
Muitos homossexuais acabam vivendo por anos e até por décadas, desde as primeiras sensações e sentimentos conscientemente percebidos, guardando a sete chaves seu desejo. Uma espécie de obrigação de segredo e de clandestinidade marca a maneira como o homossexual se coloca para a família, para os amigos, para a escola, para o trabalho e nas diversas outras dimensões da vida.
Dessa forma, a tensão entre a vontade de dizer e a pressão por calar atravessa a maior parte das experiências homossexuais. Carregar um estigma muitas vezes invisível tem, como contrapartida, um receio permanente de “ser descoberto”. Assim, quando contar, para quem contar, como contar são questões incômodas com que homens e mulheres que desejam pessoas do mesmo sexo acabam se deparando em algum momento de sua trajetória.
Não à toa, a metáfora mais difundida para representar o lugar psicológico e social em que um homossexual se encontra antes de assumir-se é um armário (closet). Ele materializa o drama do homossexual que não pode, não consegue ou não tem condições de viver uma sexualidade aberta e mais autêntica.
Mas o armário não foi somente sinônimo de opressão. Muitas vezes, conforme lembra o escritor e filósofo francês Didier Eribon, ele “também foi o lugar da resistência à opressão, uma maneira de viver a homossexualidade em épocas ou lugares em que não era possível vivê-la ao ar livre”.
O ato de abrir a porta e “sair do armário” (come out ofthe closet), apesar das peculiaridades inevitáveis de cada caso, significa um processo geralmente longo e conturbado de uma busca da verdade de si, de auto-aceitação, de construção de uma identidade e até de uma epifania pessoal. Em muitas situações, esse trânsito torna-se um ritual de passagem de uma condição de estigma para a libertação e até mesmo o orgulho, tornando-se um suporte para a ação política.
Alguns, no entanto, identificam neste ato não a emancipação, mas uma operação de normatização e enquadramento. O assumir-se, assim, seria um subproduto dessa evidência normativa, que faz apenas com que os homossexuais carreguem o fardo de uma sexualidade estigmatizada. Ao assumir-se, o homossexual estaria afirmando as estruturas de poder que lhe interpelam.
Ainda que carregue essa ambiguidade, como ato complexo que é, assumir-se não se resume a um ato de coragem e desprendimento individual. É inegável a dose de bravura necessária para alinhar o comportamento sexual, publicamente, ao seu desejo mais íntimo, mas em uma sociedade heteronormativa, tal postura é, antes de mais nada, um ato político fundamental.
Graças a homens e mulheres que saíram do armário e lutaram por reconhecimento na cena pública é que muitos direitos de igualdade hoje são garantidos a esses grupos vulneráveis. Mas as mudanças, no campo da sexualidade, são grandes e isso afeta diretamente a discussão sobre assumir-se em nossos dias.
As identidades, outrora tão sólidas e claramente demarcadas, parecem sofrer um processo intenso de erosão na era de uma fluidez crescente das vontades e desejos. Uma nova geração, que vem chegando agora à adolescência, já apresente um nível de conexão ao mundo, de exposição às diversidades e de acúmulo de informações nunca antes visto. O reconhecimento de direitos da diversidade, como o casamento homoafetivo, e o número expressivo de figuras públicas que se assumem como homossexuais fazem com que essa juventude tenha outra visão sobre o tema.
De um lado, isso indica que vem avançando a guerra cultural travada contra os conservadores que insistem em catalogar e colocar dentro de caixas qualquer comportamento sexual que não reproduza seus próprios padrões morais estreitos. De outro, a desconstrução aparentemente radical de qualquer identidade mais estabilizada, por vezes, esconde o reforço à repressão que vem em reação a esses avanços e, não poucas vezes, dificulta uma ação política nos moldes tradicionais.
Sem dúvida, os tempos são de mudanças, dentro e fora do armário. Talvez não demore tanto tempo para chegarmos a uma realidade em que não seja mais necessário assumir o desejo, mas apenas vivê-lo livremente. Nesse momento, ele não será mais um tabu interditado sobre o qual os homossexuais são interpelados e incitados a falar.